Prisioneira do Desejo
Pela janela do quarto, ela observa a cidade.
É noite. As luzes das casas piscando ao longe lembram estrelas no céu. Algumas com o tempo se apagam, outras tremulam, mas também existem as que permanecem acesas por toda a noite.
Ela imagina a quem pertence cada luz que brilha, e imagina o porquê de cada luz apagada. É um passatempo aparentemente inofensivo, e até um sonífero muito eficaz. Ao contar as luzes que se apagam, ela vai sentindo suas pálpebras cada vez mais pesadas, até que sem saber como, chega à cama e dorme um sono profundo, repousante.
É assim todas as noites, invariavelmente. Virou um vício, uma compulsão, um ritual a ser cumprido. Mas esta noite, até o momento, nenhuma luz se apagou.
Ela espera, ansiosa e nervosamente. O tempo passa... O relógio, em cima da penteadeira, marca meia noite. Lá está ela. Olhos atentos, fixos, à espera. Uma espera interminável.
O que ela mais quer é que tudo siga o roteiro de sempre, que ela possa assim, dormir e descansar. Descansar em seu colchão d'água novo, o que ela sempre quis e desejara com tanta força. Tanta, que o acabara conseguindo. Aliás, como tudo em sua vida: o quadro legítimo de Van Gogh, a coleção completa dos Beatles, o autógrafo de Angelina Jolie. Tudo, tudo sempre correu conforme seus desejos. Até hoje...
O telefone toca. Talvez seja ele, ligando de Paris. Ah...que saudade do seu querido, do seu "pitchuco", mais um de seus desejos realizados: Alto, incrivelmente bonito, olhos verdes e ainda por cima, louco por ela.
O telefone continua a tocar, tentador, com a promessa de mil juras de amor. Mas ela não ousa sair da janela... E se alguma luz se apagar enquanto ela não estiver olhando? Como poderá dormir? Não, ela não pode se arriscar.
O telefone toca pelo que parece ser uma eternidade, até que silencia. Ela sente um grande alívio. Por um momento quase cedera e correra a atendê-lo.
A cidade permanece acesa. "Serão que estão todos com insônia?" Ela pensa em desistir e ir deitar, mas as luzes parecem exercer um efeito hipnótico, mágico, e, além do mais, se sair da janela, como poderá dormir?
As horas passam e as luzes não se apagam. Já é muito tarde.
Batem à porta. Gritam seu nome. Que será? Quem será? Parece a voz de seu vizinho, Leonel...
"Fogo! Fogo! Saiam todos! Saiam todos!"
Ela sente um cheiro de coisas queimando...
"Meu Deus, é um incêndio! Mas eu não posso sair, as luzes não se apagaram!"
Ela sente um mormaço crescente. A fumaça que entra pelas frestas começa a arder em seus olhos. Ela começa a tossir.
O barulho das sirenes chega aos seus ouvidos, juntamente com os gritos dos que tentam fugir em pânico. O calor aumenta, e bem próximo, o crepitar das chamas. Talvez próximo demais...
Ela está com medo. Quer sair correndo, escapar, mas ela não consegue se mover, seus pés parecem presos, colados ao chão. Seus músculos estão enrijecidos, não obedecendo ao comando de seu cérebro em pane. A única coisa que a pode salvar é o simples apagar de uma lâmpada, e Deus, como ela deseja isso! Mas elas permanecem acesas, impassíveis, cruéis.
As chamas chegam até a cortina. Não há escapatória. Então, de repente, como se fosse milagre, uma luz se apaga, libertando suas correntes imaginárias. Ela realiza o único movimento que a poderia salvar das chamas mortais:
Ela salta para o vazio. De uma altura de mais de vinte metros, para cair de encontro à rede de segurança dos bombeiros.
Enquanto isso, ao longe, na cidade, outras luzes se apagam, algumas tremulam, mas outras permanecerão acesas por toda a noite.
Fim