Ratos?
O sítio era muito distante. O atrativo era a boa lucratividade que poderíamos ter na venda do mesmo. Fruto de uma herança, sendo que os herdeiros queriam vê-lo logo vendido, não tendo nunca ali colocado os pés, era uma boa oportunidade de gorda comissão para a nossa conceituada imobiliária.
Eu era o sócio especialista em avaliar e vender imóveis rurais. Viajei por um dia inteiro e cheguei à propriedade quando se fazia noite. Cansava-me a história de descer do carro, abrir porteira, fechar porteira. Eu comi muita poeira. A garrafa térmica com água estava no fim. O ar-condicionado do carro quebrado. Abrir o vidro e engolir poeira ou sofrer com o calor? Sentia-me irritado.
Ver a propriedade sendo parcialmente iluminada pelos faróis foi um alívio. Fui direto à casa do caseiro. Estacionei. O latido impertinente dos cães cercou o veículo.
- Fora! Fora! Não paravam de latir.
- Jiló! Cabré! Tica! Calados! Calados! O caseiro veio em socorro.
Desci desconfiando, saudando-o e me apresentando.
- Já esperava o senhor. Entre.
A moradia era simples. Sem forro. Móveis muito usados. Três pequenos filhos com olhos abertos e apáticos. Uma mulher de cara amarrada serviu um café grosso e mal passado.
- O senhor pode passar a noite aqui e avaliar as terras durante o dia, disse o homem depois de me acomodar.
- Prefiro dormir na sede da fazenda.
O caseiro olhou para a mulher que limpava as panelas na pia da cozinha.
- Acho que não convém, seu moço.
- E por quê? Soube que a mobília é completa.
- Está um tanto sujo...
- Eu não me importo.
- E tem alguns ratos...
- Ratos?
- Sim senhor, dos grandes.
Aquilo deixou-me perturbado. Odeio ratos. Mas a propriedade deveria ser avaliada. E, além disso, pelo que eu percebi, retiraria as crianças da única cama sobressalente, o que me causava embaraço e desconforto. Se os ratos realmente incomodassem dormiria no carro.
- De qualquer forma, o senhor me leve até a casa principal e eu decido o tamanho do incômodo. O homem e a mulher trocaram olhares. As crianças riram cochichando.
A sede situava-se a poucos metros e encontrava-se em péssimo estado de conservação. Talvez fosse melhor demolir, pensei. A casa era grande, quadrada, amplas janelas pintadas em verde. Pude sentir o assoalho oco ao pisar na madeira que revestia o piso da varanda. O caseiro, com uma lanterna em mãos, abriu a porta que rangeu. Entramos. Ele dirigiu-se a uma caixa de força e assim que a acionou as luzes acenderam iluminando a ampla e despojada sala. Uma grande mesa de carvalho destacava-se ao centro. Poucos móveis. Um sofá velho e empoeirado diante de uma antiga televisão que não pegava sinal. Era uma mania do velho. Um rádio que há muito devia ter sido aposentado. Algumas cadeiras, um velho armário com louças e um baú de roupas de cama. Alguns quadros antigos, com fotos do proprietário, da esposa e dos ancestrais conferiam um aspecto ainda mais sombrio ao local.
- O velho gostava de ficar sozinho. Consenti com a cabeça.
- Venha ver a cozinha e o resto da casa.
- Tudo me parece muito limpo, inclusive os quartos.
- Os ratos vão aparecer, eu tenho certeza. O senhor não vai conseguir dormir.
Estranhei a presença de frutas e legumes na cozinha, novos e recém colocados. O caseiro, percebendo o meu olhar antecipou-se:
- Coloco-as aqui todos os dias e os ratos nos deixam em paz.
- O senhor alimenta os ratos?
- É o melhor, doutor. É o melhor. Achei o homem ainda mais estranho.
- O senhor já tentou eliminá-los? Ele, branco como cera, encarou-me.
- Doutor, com certas coisas não se brinca. Vamos tomar uma sopa lá em casa e depois o senhor vai poder descansar.
- Obrigado. Eu trouxe um lanche na mala e vou comer algumas frutas, se não se importa. Depois, acho que vou repousar aqui mesmo. Os quartos estão limpos e eu trouxe roupa de cama no carro.
- Doutor, eu não aconselho...
- Pode deixar homem, sei o que estou fazendo.
O insistente caseiro tentou convencer-me a não pernoitar na sede. Resisti. Eu queria privacidade e o dispensei rispidamente. Ele ligou a bomba d`água e pude tomar um banho gelado. Arrumei a minha cama. Os ratos. Lembrei. Espero que não sejam assim tão grandes. Fui até a cozinha. Comi os sanduíches que trouxera e algumas laranjas. Até agora nem sinal de ratos. Sentei-me na velha mesa da sala e comecei a inventariar os móveis. Não valiam quase nada. A estrutura da casa era péssima. O terreno e a localização é o que nos salvaria.
Ouvi um barulho na cozinha. Os ratos devem estar atacando as frutas. Encarei a escuridão que vinha da mesma. Percebi que as frutas eram estilhaçadas com voracidade. Meu impulso foi ir até lá e verificar. Achei melhor não. Havia escolhido um quarto pequeno e verificado que não havia aberturas no forro, paredes ou assoalho. Nele apenas uma cama, uma escrivaninha sem gavetas sobre a qual deixei meus objetos e uma cadeira.
- Trancando as portas eles não irão incomodar, pensei.
O ruído era de ensurdecer. Parecia que havia trezentos animais. Em certo ponto acreditei que conversavam. De repente o ruído cessou. Meu coração estava disparado. Procurei algum objeto para defender-me. Um antigo candelabro era a minha arma. Aproximei-me da cozinha. O interruptor ficava logo à entrada. Respirei fundo. Pretendia surpreendê-los. Entrei de uma vez após acionar o dispositivo. A cozinha estava completamente vazia. Os vegetais haviam sumido. Nem mesmo as cascas sobraram, inclusive as que eu deixara sobre a mesa. Suei frio. Mas que ratos ordeiros.
Fui deitar-me cansado. Não escutei nenhum outro ruído. Durante a noite acordei com a estranha sensação de que era observado. Olhei para os pés da cama. Um grupo de pequenos olhos vermelhos observava-me. O interruptor era distante. Não havia lanterna por perto. Dei um salto e busquei logo acender as luzes. Os ratos não se moveram. Meia dúzia deles, com olhos vermelhos como rubis, grandes e feitos de pedra. Pedra! Eram como esculturas que se moviam. Saltaram da cama ao solo. Posicionaram-se sobre as patas traseiras e olhavam-me com admiração, sem medo.
Bati o pé no chão para tentar afugentá-los. Permaneceram imóveis e entreolharam-se. Emitiram ruídos estranhos, como se conversassem. Depois foi como se rissem juntos de minha ingenuidade. São espertos, pensei. Como fossem de pedra, achei que devia ser difícil liquidá-los. Meu natural medo por ratos, além do tamanho dos mesmos embaraçou-me. Aproximei-me da porta, girei a fechadura e preparei para sair. Como deixara as luzes da sala acesas, por precaução, tudo estava iluminado. Virei-me e notei a sala repleta, cheia de ratos, dúzias de pequenas esculturas vivas de pedra.
- Melhor voltar para o quarto. Ao entrar os ratos do quarto sumiram. Olhei para a sala. Deserta. Em um passe de mágica não vi mais nenhum rato. Procurei o meu relógio. Eram 3 horas. Não consegui pregar o olho até o amanhecer. Admiravelmente não ouvi mais nenhum ruído.
Logo aos primeiros raios dirigi-me à casa do caseiro. As olheiras profundas denunciavam minha noite perdida. Dediquei o resto da manhã a avaliar e a inventariar o local em tempo recorde. Não passaria outra noite ali nem que me pagassem. Comuniquei ao caseiro que tudo seria demolido. Ele receberia o que lhe era devido e uma boa indenização. Disse-me que já sabia que isso ocorreria e antecipadamente conseguira emprego em outra propriedade.
Antes de ir embora me alertou:
- O senhor devia deixar tudo como está.
- Por que não me avisou sobre os ratos?
- Eu avisei.
- Ratos de pedra?
- Mistérios, doutor. Mistérios. O senhor acreditaria se eu contasse?
Entrei no carro e parti aceleradamente. Nas semanas seguintes organizei a demolição. Não voltei à propriedade. Os técnicos fizeram tudo. Trouxeram-me fotos do local e perguntei ao responsável sobre os ratos, se ele vira algum.
- Ratos, que ratos?
Fiquei aliviado. Naquela noite voltei para casa. Residia em um belo condomínio nas cercanias da cidade. Abri a porta. O silêncio era incomum. Chamei pelos filhos e esposa. Não houve resposta. Saíram sem me avisar? Dirigi-me à sala de visitas onde as luzes estavam acesas. Meu coração quase parou. As veias saltaram para fora. O sangue gelou-me e todos os pelos do meu corpo eriçaram. Minha família encontrava-se no centro da sala, abraçados uns aos outros, trêmulos, cercados por centenas de ratos de pedra, encarando-nos com aqueles olhos vermelhos e cintilantes...
O sítio era muito distante. O atrativo era a boa lucratividade que poderíamos ter na venda do mesmo. Fruto de uma herança, sendo que os herdeiros queriam vê-lo logo vendido, não tendo nunca ali colocado os pés, era uma boa oportunidade de gorda comissão para a nossa conceituada imobiliária.
Eu era o sócio especialista em avaliar e vender imóveis rurais. Viajei por um dia inteiro e cheguei à propriedade quando se fazia noite. Cansava-me a história de descer do carro, abrir porteira, fechar porteira. Eu comi muita poeira. A garrafa térmica com água estava no fim. O ar-condicionado do carro quebrado. Abrir o vidro e engolir poeira ou sofrer com o calor? Sentia-me irritado.
Ver a propriedade sendo parcialmente iluminada pelos faróis foi um alívio. Fui direto à casa do caseiro. Estacionei. O latido impertinente dos cães cercou o veículo.
- Fora! Fora! Não paravam de latir.
- Jiló! Cabré! Tica! Calados! Calados! O caseiro veio em socorro.
Desci desconfiando, saudando-o e me apresentando.
- Já esperava o senhor. Entre.
A moradia era simples. Sem forro. Móveis muito usados. Três pequenos filhos com olhos abertos e apáticos. Uma mulher de cara amarrada serviu um café grosso e mal passado.
- O senhor pode passar a noite aqui e avaliar as terras durante o dia, disse o homem depois de me acomodar.
- Prefiro dormir na sede da fazenda.
O caseiro olhou para a mulher que limpava as panelas na pia da cozinha.
- Acho que não convém, seu moço.
- E por quê? Soube que a mobília é completa.
- Está um tanto sujo...
- Eu não me importo.
- E tem alguns ratos...
- Ratos?
- Sim senhor, dos grandes.
Aquilo deixou-me perturbado. Odeio ratos. Mas a propriedade deveria ser avaliada. E, além disso, pelo que eu percebi, retiraria as crianças da única cama sobressalente, o que me causava embaraço e desconforto. Se os ratos realmente incomodassem dormiria no carro.
- De qualquer forma, o senhor me leve até a casa principal e eu decido o tamanho do incômodo. O homem e a mulher trocaram olhares. As crianças riram cochichando.
A sede situava-se a poucos metros e encontrava-se em péssimo estado de conservação. Talvez fosse melhor demolir, pensei. A casa era grande, quadrada, amplas janelas pintadas em verde. Pude sentir o assoalho oco ao pisar na madeira que revestia o piso da varanda. O caseiro, com uma lanterna em mãos, abriu a porta que rangeu. Entramos. Ele dirigiu-se a uma caixa de força e assim que a acionou as luzes acenderam iluminando a ampla e despojada sala. Uma grande mesa de carvalho destacava-se ao centro. Poucos móveis. Um sofá velho e empoeirado diante de uma antiga televisão que não pegava sinal. Era uma mania do velho. Um rádio que há muito devia ter sido aposentado. Algumas cadeiras, um velho armário com louças e um baú de roupas de cama. Alguns quadros antigos, com fotos do proprietário, da esposa e dos ancestrais conferiam um aspecto ainda mais sombrio ao local.
- O velho gostava de ficar sozinho. Consenti com a cabeça.
- Venha ver a cozinha e o resto da casa.
- Tudo me parece muito limpo, inclusive os quartos.
- Os ratos vão aparecer, eu tenho certeza. O senhor não vai conseguir dormir.
Estranhei a presença de frutas e legumes na cozinha, novos e recém colocados. O caseiro, percebendo o meu olhar antecipou-se:
- Coloco-as aqui todos os dias e os ratos nos deixam em paz.
- O senhor alimenta os ratos?
- É o melhor, doutor. É o melhor. Achei o homem ainda mais estranho.
- O senhor já tentou eliminá-los? Ele, branco como cera, encarou-me.
- Doutor, com certas coisas não se brinca. Vamos tomar uma sopa lá em casa e depois o senhor vai poder descansar.
- Obrigado. Eu trouxe um lanche na mala e vou comer algumas frutas, se não se importa. Depois, acho que vou repousar aqui mesmo. Os quartos estão limpos e eu trouxe roupa de cama no carro.
- Doutor, eu não aconselho...
- Pode deixar homem, sei o que estou fazendo.
O insistente caseiro tentou convencer-me a não pernoitar na sede. Resisti. Eu queria privacidade e o dispensei rispidamente. Ele ligou a bomba d`água e pude tomar um banho gelado. Arrumei a minha cama. Os ratos. Lembrei. Espero que não sejam assim tão grandes. Fui até a cozinha. Comi os sanduíches que trouxera e algumas laranjas. Até agora nem sinal de ratos. Sentei-me na velha mesa da sala e comecei a inventariar os móveis. Não valiam quase nada. A estrutura da casa era péssima. O terreno e a localização é o que nos salvaria.
Ouvi um barulho na cozinha. Os ratos devem estar atacando as frutas. Encarei a escuridão que vinha da mesma. Percebi que as frutas eram estilhaçadas com voracidade. Meu impulso foi ir até lá e verificar. Achei melhor não. Havia escolhido um quarto pequeno e verificado que não havia aberturas no forro, paredes ou assoalho. Nele apenas uma cama, uma escrivaninha sem gavetas sobre a qual deixei meus objetos e uma cadeira.
- Trancando as portas eles não irão incomodar, pensei.
O ruído era de ensurdecer. Parecia que havia trezentos animais. Em certo ponto acreditei que conversavam. De repente o ruído cessou. Meu coração estava disparado. Procurei algum objeto para defender-me. Um antigo candelabro era a minha arma. Aproximei-me da cozinha. O interruptor ficava logo à entrada. Respirei fundo. Pretendia surpreendê-los. Entrei de uma vez após acionar o dispositivo. A cozinha estava completamente vazia. Os vegetais haviam sumido. Nem mesmo as cascas sobraram, inclusive as que eu deixara sobre a mesa. Suei frio. Mas que ratos ordeiros.
Fui deitar-me cansado. Não escutei nenhum outro ruído. Durante a noite acordei com a estranha sensação de que era observado. Olhei para os pés da cama. Um grupo de pequenos olhos vermelhos observava-me. O interruptor era distante. Não havia lanterna por perto. Dei um salto e busquei logo acender as luzes. Os ratos não se moveram. Meia dúzia deles, com olhos vermelhos como rubis, grandes e feitos de pedra. Pedra! Eram como esculturas que se moviam. Saltaram da cama ao solo. Posicionaram-se sobre as patas traseiras e olhavam-me com admiração, sem medo.
Bati o pé no chão para tentar afugentá-los. Permaneceram imóveis e entreolharam-se. Emitiram ruídos estranhos, como se conversassem. Depois foi como se rissem juntos de minha ingenuidade. São espertos, pensei. Como fossem de pedra, achei que devia ser difícil liquidá-los. Meu natural medo por ratos, além do tamanho dos mesmos embaraçou-me. Aproximei-me da porta, girei a fechadura e preparei para sair. Como deixara as luzes da sala acesas, por precaução, tudo estava iluminado. Virei-me e notei a sala repleta, cheia de ratos, dúzias de pequenas esculturas vivas de pedra.
- Melhor voltar para o quarto. Ao entrar os ratos do quarto sumiram. Olhei para a sala. Deserta. Em um passe de mágica não vi mais nenhum rato. Procurei o meu relógio. Eram 3 horas. Não consegui pregar o olho até o amanhecer. Admiravelmente não ouvi mais nenhum ruído.
Logo aos primeiros raios dirigi-me à casa do caseiro. As olheiras profundas denunciavam minha noite perdida. Dediquei o resto da manhã a avaliar e a inventariar o local em tempo recorde. Não passaria outra noite ali nem que me pagassem. Comuniquei ao caseiro que tudo seria demolido. Ele receberia o que lhe era devido e uma boa indenização. Disse-me que já sabia que isso ocorreria e antecipadamente conseguira emprego em outra propriedade.
Antes de ir embora me alertou:
- O senhor devia deixar tudo como está.
- Por que não me avisou sobre os ratos?
- Eu avisei.
- Ratos de pedra?
- Mistérios, doutor. Mistérios. O senhor acreditaria se eu contasse?
Entrei no carro e parti aceleradamente. Nas semanas seguintes organizei a demolição. Não voltei à propriedade. Os técnicos fizeram tudo. Trouxeram-me fotos do local e perguntei ao responsável sobre os ratos, se ele vira algum.
- Ratos, que ratos?
Fiquei aliviado. Naquela noite voltei para casa. Residia em um belo condomínio nas cercanias da cidade. Abri a porta. O silêncio era incomum. Chamei pelos filhos e esposa. Não houve resposta. Saíram sem me avisar? Dirigi-me à sala de visitas onde as luzes estavam acesas. Meu coração quase parou. As veias saltaram para fora. O sangue gelou-me e todos os pelos do meu corpo eriçaram. Minha família encontrava-se no centro da sala, abraçados uns aos outros, trêmulos, cercados por centenas de ratos de pedra, encarando-nos com aqueles olhos vermelhos e cintilantes...