O Ladrão de Sorrisos

“E o que você vê?”.

O preto absoluto lentamente se esvai, dando lugar à imagem de uma figura distorcida e rodeada de corvos, abutres, sombras e outros pássaros negros. Ela corria, e corria como se fugisse por sua vida. “Quando eu contar até três, você irá acordar...”, sua visão tornara-se turva. “Um...”, o breu voltara. “Dois...”, um sussurro propagara-se. “Três.”.

- Dimitri, como se sente?

- Cansado, confuso...

- Pode descrever como se sentiu?

- Acho que sim – Pausa por um breve período de tempo – Um profundo, evasivo e perverso vazio. Um medo bem humano e ressonante, como se saísse de mim e ao mesmo tempo estivesse me chamando.

- Tudo bem – conforta-o – Isso será tudo por hoje.

- Obrigado Dr. Weiz – Diz enquanto levanta do divã – Mas ainda não tenho certeza de que isso vá ajudar.

- Se há algo em sua mente que possa ajudar a resolver o caso, esse é o melhor jeito.

Assim como a neve que cobrira a ínfima fresta da janela do consultório, as memórias e os burburinhos estreitavam-se e lutavam para passar pela pequena abertura de sua mente. Não sabia dizer se a imagem que vira era derivada de suas preocupações – como sonhos costumam fazer – ou remetida aos fatos. “A memória é a janela da alma” era a frase que marcara sua infância – seu pai costumava lhe dizer sempre que podia. Lembrar-se dessa frase agora poderia ser algo do destino, ou uma derivada evidente, já que o corpo de sua falecida esposa havia sido encontrado na antiga casa de seus pais – Depois de um trágico e confuso acidente, a casa, junto da pequena ilha, foi dada a ele como herança. Há tempos considerava se mudar para lá, mas a lembrança de seus pais o entristecia. Evadiu sempre adiando e adiando, até finalmente desistir – acabou por não vender a casa, pois a ideia de seus futuros filhos viverem lá lhe agradava de alguma forma.

Um som incomum – ao menos para aquele clima – ecoou por toda a planície gélida. O gruído de um único corvo o surpreende como uma navalha que entrara em seu ouvido esquerdo. Imediatamente vira-se à esquerda e tenta achar o tal petulante – o que parecia fácil, afinal achar um pássaro negro em toda a branquidão... Por fim, foca-se em uma não muito grande árvore tão sem cor quanto a todo o resto. O corvo jazia em um dos galhos. Olhava atentamente para Dimitri, que enfim seguia ao seu carro.

Dirigia cuidadosamente rumo ao píer e notara que o corvo o seguira pelo caminho. Sempre à espreita.

A rádio transmitia uma música única e deprimente. Não havia notado quando começara, mas penetrava sua pele e passara a fazer parte da sua trilha sonora pessoal – bonita e melancólica. Solitária orquestra que tocava para o imenso vazio de cadeiras. Enquanto dirigia parecia dormitar atordoado pelo climatizado ambiente que o abraçara. À medida que se aproximava do píer, a sensação de dor o atingia – era como se quase sangrasse até a morte, mas precisava continuar. Por ela.

- Me sentei em seu túmulo vazio e imaginei tudo o que poderia lhe dizer. Em todas as situações – conversava sozinho – Talvez, quem sabe, poderia ter sido diferente.

Enquanto caminhava pela madeira velha do píer se podia ver um pequeno aglomerado de pássaros negros que o seguiam lá do alto, como narradores ou observadores evasivos e curiosos – ou intrigados pela reação do que já sabiam. Narradores que haviam desrespeitado a própria obra ao lerem o final primeiro – o lembrava da enorme plateia de vestidos e ternos pretos que esperavam pelo seu discurso no palanque da igreja. Como poderia resumir a personalidade de alguém em apenas algumas palavras? Em apenas alguns minutos? Tudo parecia tão ridículo e ofensivo. Seria ultrajante à sua lembrança tentar defini-la àquelas pessoas, portanto saíra sem dizer uma palavra ao meio de cochichos disfarçados. Lembrava também de Ryan, único que o seguira até a saída da igreja para lhe dizer que ainda estava vivo, apesar de tudo. Ele não estava totalmente certo. A única coisa que pensava o motivar a continuar de pé era descobrir a verdade, porém a única frase que saiu de sua boca durante todo o enterro foi precisamente “alguém não precisa morrer para estar morto”.

Provavelmente não conseguiria aprender a viver sem ela.

A neve começara a cobrir seu chapéu e seu casaco de lã marrom enquanto transitava nas lembranças. Embarcava rumo à ilha e não conseguia evitar a idealização de uma troca de papéis no palanque da igreja. O barco balançava e, sobretudo rangia – não precisava lutar para manter a estabilidade, mas sim para não cair em monotonia e no enjoo. Vislumbrava a ilha que surgira em meio de toda a neve com certo medo e inquietação não aparente – não era capaz de demonstrar muitas emoções, apesar de ainda senti-las. Nunca havia a imaginado como uma ilha muito grande, nem em suas referências infantis, mas ela parecia ainda menor. Afastada e sem graça. Isolada e calma. Corvos, abutres e sombras a rodeavam lentamente, como se fizessem parte do cenário – era seguro dizer, porém, que nunca havia os visto antes quando era miúdo.

Deixara para trás o barco, agora que caminhava em terra molhada. Passo a passo, suas botas faziam um som grosseiro de couro contra areia molhada – até uma mudança repentina. Havia pisado em um pedaço de uma folha de papel levemente coberta pela neve. Lê-se então “Olá, olá, senhor coelho” evidenciado pela letra mais grossa, e seguia normalmente: “Senhor coelho, com seus brancos, brancos pelos... Tão inocente, não sabe o que está atrás de você. Ó quão ingênuo. Ó quão inocente. Senhor coelho, você não vê... Que lindo sorriso, que lindo choro”. O texto parava nessas palavras, mas não parecia ter acabado. À medida que caminhava por entre as árvores, descobria marcos. Não conseguia deixar de se preocupar cada vez mais – continuava, já era evidente pista sobre o que procurava descobrir. Na porta da casa antiga encontrara outra folha de papel que repousava sobre o tapete sujo. Nela a continuação: “Senhor coelho que perambula pela floresta, não tens medo do caçador? Tudo bem, senhor coelho, não se preocupe. Tão perdido... Irei sentir sua falta. Irei sempre vislumbrar aquele belo branco. Adeus e boa noite, senhor coelho. Não se preocupe, o mundo continuará sendo exatamente o mesmo. Afinal, ainda há muitos sorrisos a serem roubados.” – de dentro da casa podia-se ver um corvo o encarando pela janela.

A noite se aproximara e, prudentemente resolve ficar até amanhecer – até ser seguro para voltar. Seriam longas horas, mas poderia aproveitar esse tempo. Dimitri recolhe do chão um guarda-chuva antigo e negro – abre-o e sai para uma caminhada envolta da casa. Sentia-se nostálgico e confortável, mas logo passara à solidão. A neve cobria o telhado de madeira de um pequeno mirante – lugar onde adquiria lindas memórias com sua falecida esposa. Ao se sentar era quase como se a visse de novo, como se ela estivesse ali do seu lado. Podia até ouvir sua voz, doce e delicada voz. Seu belo sorriso que dava após cada silêncio constrangedor.

- “Durante toda a tarde assistia-los ali.” – Ela recitava para ele – “Fadas de neve caindo, caindo do céu, girando fantasticamente no ar enevoado.” – Os dois se entreolham e sorriem até que a imagem mental se esvaísse lentamente, dando lugar ao banco vazio.

- “Competindo com fervor pela supremacia daquele espaço.” – Responde como se a acompanhasse – “E eles voaram para baixo e com força superior durante a noite, como se no céu houvesse revolta e tumulto, e eles, as coisas frágeis haviam voado em pânico para a terra calma, buscando paz e sossego.” – Coloca a mão em seu próprio rosto demonstrando frustração – “Você se foi com o amanhecer. Deixou-me antes que o dia raiasse. Ator solitário de uma peça dos sonhos.”.

Horas se passaram sem que percebesse. Havia se perdido nas lembranças e nas imagens mentais que formara de sua amada.

- Você sempre gostou de poesias e romances, não é? Acabei decorando algumas por sua causa...

Um a um, os corvos, abutres e sombras chegavam e povoavam o mirante. Espalhados pelo teto, pelas laterais e pelos bancos. Dimitri, como se acordasse de sua consternação, corre assustado de volta para dentro da casa. O barulho incessante e o gruído horrível aumentara cada vez mais – um dos corvos colide contra a janela, quebrando-a e abrindo uma passagem para que os outros entrassem. A sombra profunda e negra adentrava a casa, como se todo o aglomerado de pássaros se tornassem somente uma massa e uma entidade sombria. Dimitri sobe as escadas e se tranca dentro do banheiro, enquanto procura algum meio de sair. A massa batia ferozmente contra a porta, que sofria para segurar toda aquela força. “Um...”.

Ele olha para o espelho do banheiro – ao lado de seu reflexo havia uma frase: “Boa noite, senhor coelho.”. “Dois...”.

A massa arromba a porta e ocupa todo o banheiro, tornando tudo em escuridão – ele escuta a voz doce de sua mulher em meio à imensidão negra.

- Você não precisa se preocupar. Você só precisa achar a paz e um lugar só seu. O destino irá com certeza lhe guiar – Ele a procura intensamente – Não me olhe assim, nós vamos nos reencontrar.

- Ainda vou descobrir o que aconteceu com você! – Exclama Dimitri, com seus olhos cheios d’água.

- Encare a verdade, isso tudo não é mais sobre descobrir o que aconteceu, mas sim sobre você mesmo. Continua vindo aqui para me encontrar. Acho que sempre nutriu essa pequena e louca esperança.

Pareciam ter trapaceado como narradores e o final terem lido, mas os corvos, abutres e sombras não eram os narradores ou observadores... Eles eram o final. “Três.”.

- Dimitri, como se sente?