"Obsessão..." - Capítulo VII

Capítulo VII

“Amor azarado”

George ouve os gritos da empregada e, como se nada tivesse acontecendo, despe-se e entra no chuveiro. Um sorriso amarelo toma-lhe a face. Ao terminar o banho, veste-se com um pijama de seda e deita na cama, de onde confessa:

_ Falta pouco!

_ Ernestina, o que está acon... – assombra-se o motorista, ao adentrar a sala de jantar e encontrar Catharine desmaiada.

_ Venha, Joaquim! Ajude-me, por favor! – pede, derramando-se em lágrimas.

_ Dona Catharine... mas... mas... O que aconteceu?

_ Vamos, homem! Venha! Depois conversamos... Pegue-a no colo e traga-a para... – depara-se com uma realidade assustadora: para onde levá-la? Se George a ignorou, mesmo numa situação como essa, deveria levá-la para o quarto do casal?

_ Ela está sangrando, Ernestina! Aonde devo levá-la? – os papéis se invertem, agora quem exige uma atitude imediata é o motorista. _ Fale, mulher!

A empregada permanece inerte, olhando as escadarias...

_Pelo amor de Deus, fale! – grita o rapaz, desesperado.

Acometida por uma súbita vertigem, Ernestina apoia-se a uma mesa e fecha os olhos. A imagem de Alana lhe surge como trovão. Assustada, reabre os olhos, correndo-os ao redor como se quisesse encontrar algo. O coração bombeia acelerado o sangue enquanto todos os cantos da sala são submetidos a uma análise minuciosa. A vertigem cessa quando avista a alguns passos o reluzir de um objeto. Toma fôlego e se agacha para pegá-lo. É o pingente retorcido com parte do colar. Um arrepio lhe corre a espinha! Não estava acreditando no que via, parecia coisa de novela, aliás, se alguém contasse, ela mesma não acreditaria. Aquilo que estava na palma de sua mão era o colar da menina.

_Use o colar que Alana lhe deu. Acha que aquele demônio perceberá? Ele só se importa com o vestido, porque, para ele, acima de tudo, está o dinheiro. Não compra a felicidade, mas pode destruí-la sem pena – relembra Ernestina.

Joaquim não entende a criada, que, à primeira vista, parece imersa em um transe.

_ Então ele foi capaz de uma crueldade dessas? E a culpa foi MINHA! – confessa, apertando o pingente contra o peito. _ Mas ele me paga! Venha, Joaquim, traga Dona Catharine para o meu quarto.

_ Para o seu quarto? E o quarto dela?

_ FAÇA O QUE ESTOU MANDANDO! – determina com ódio.

E assim ele faz, mesmo sem entender o porquê daquela ordem. A mulher é posta na cama, enquanto a criada pega algumas gazes para limpar o ferimento.

_ Quem fez isso, Ernestina? Por acaso ela caíra da escada?

_ NÃO! – responde, indignada.

_ Eu pensei que ela tivesse caído...

_ Você ainda não entendeu, Joaquim? – entrecorta-o, com os olhos sobressaltados. _Foi aquela peste que fez isso.

_ De quem está falando? Do senhor George?

_ E há outra peste nessa casa? Hum! Isso não ficará assim! – repete, dando as costas a Joaquim.

O sangramento não estanca; por não aparentar profundidade, causa estranheza nos empregados, que se afligem.

_ O ferimento não para de sangrar... – constata o motorista, bastante assustado. _Meu Deus! Será que ela vai morrer?

A pergunta cai como bomba no coração da empregada, que se contrai pelo remorso.

_ O que vamos fazer, Ernestina? Não seria melhor levá-la para o hospital? Fale, mulher, está me deixando agoniado!

Joaquim não se aguenta de dor. À sua frente, a deusa de todos os seus mais íntimos desejos fenece. Nunca esteve tão perto dela e agora que tem a oportunidade, é para assistir a sua perda. Que destino injusto é esse que lhe prega peça de tanto mau gosto?

_ Segure esse algodão enquanto ligo para o doutor Rubens... Vá, vá, Joaquim! Oh, bicho lento!

Joaquim não é lento como diz a empregada, simplesmente é cortês. Gesto que muitas pessoas já não cultivam mais. Enquanto comprime a ferida, ele observa a mulher que lhe havia despertado para os sonhos novamente. Aqueles lábios carnudos, ainda que roxos, pareciam deliciosos. Como o chamavam! Com os olhos fechados, arfa... Não há como segurar a vontade de devorá-los com gosto!

Parece até um crime pensar em algo como isso, nesse momento; mas não é. E desde quando amar alguém com a alma é algum crime? Os valores estão subvertidos, porque crime é o que fizeram com ela.

Espancar é crime e deveria ser hediondo, para que ninguém mais o cometesse; entretanto, quem se presta a esse tipo de barbárie é ovacionado por parte da sociedade tradicional, porque se a mulher apanha, certamente fizera algo de muito errado ao marido. Quanta idiotice! Se ouvissem mais o amor e o pregassem como pregam essas bobagens, o mundo seria outro, talvez melhor.

_ “Não há disfarce capaz de ocultar o amor quando ele existe, nem de simulá-lo quando já não existe”... palavras do brilhante La Rochefoucauld3 – sussurra a empregada, observando-os, à espreita.

_ EU TE AMO, Dona Catharine! – confessa à mulher, que permanecia desacordada. E não deixarei que façam isso de novo com a senhora. Não deixarei! Prometo por tudo o que há de mais sagrado nesse mundo – limpa as lágrimas. _ Se lhe tocarem outra vez, serei capaz de qualquer coisa, até de... MATAR!

Ernestina os deixa a sós e senta à mesinha da cozinha, muito comovida. Que espécie de amor era aquele? Real, surreal, platônico..? Não sabia definir, mas que era divino, ah, isso era!

O médico chega à mansão e é visto por George, da janela do quarto.

_ O que houve com Catharine, Ernestina? Que mal lhe acometeu? – exige o doutor.

Ernestina apenas o vê com serenidade e, antes que ele se aventure a uma outra pergunta, responde:

_ Uma coisa horrível!

_ E o que foi?

_ Veja com seus próprios olhos...

Ela indica o quarto. Ele empurra a porta e flagra Joaquim beijando a mulher, com uma parte da roupa manchada pelo sangue.

_ Mas o que é isso? – cobra, alterado, o médico de meia idade._ O que pensa estar fazendo, meu rapaz?

_Senhor..?- surpreende-se o motorista, ao avistar George atrás do doutor Rubens Arraia.

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3 François de La Rochefoucaul, poeta francês do século XII, reconhecido por suas obras de profundo pessimismo.

* Aguarde o capítulo VIII.