O MOnSTRO

Terminando o inverno batia um sol bastante pesaroso e tácito. Eu ali não estava mais aguentando esperar tanto para descarregar todos aqueles desejos que não consegui realizar durante o inverno. É que no frio ninguém se atrevia a subir o morro para de lá de cima olhar a cidade, era uma vista surpreendente e inesquecível. Inesquecível? Isso parece tão irônico. Inesquecível tanto para quem consegue olhar e ir passando, quanto para os que observam tudo pela última vez.

Eu morava a poucos metros do morro, mas na maior parte do tempo eu ficava lá em cima olhando os turistas. Era bom ficar olhando aqueles burgueses de merda fumando seus cigarros de merda, com suas palavras e seus gestos de merda. Não conseguia entender porque eu demorei tanto para ter aquela ideia.

Eu era um monstro. Capaz de cometer atrocidades tão pesadas e inimagináveis. Mas fazer o quê? A vida é assim mesmo. Os mais fortes e mais espertos é que merecem viver. O mundo é uma selva.

Estava ficando tarde e ninguém se atreveu subir o morro exceto um grupo de pessoas que passaram rápido, olharam a cidade e desceram as escadas com pressa. Acho que temiam o pior. E eu estava escondido esperando o melhor momento para agir, mas com um grupo de pessoas não ia dar certo. Era preciso esperar mais pelo melhor momento. Foi então que de repente um sujeito solitário subiu o morro. Tinha mais ou menos 50 anos. Vestia roupas de grife, gravata e tudo. Tinha uma barba grisalha e os cabelos curtos. Colocou as mãos na cintura e puxou a respiração com bastante esforço. Acendeu um cigarro e ficou olhando a cidade. Eu saí de dentro do mato. Ele estava só e era o melhor momento para eu agir. Ele se assustou com meus passos atrás dele.

- Dê-me um cigarro, por favor! – ele cedeu um maço de um cigarro caro e importado que eu nunca vi na vida. Tirei uns 4 e coloquei-os no bolso. Pensei que seria um desperdício perder um maço de cigarros tão caro como aquele. Mas a vida é assim mesmo. Devolvi os cigarros e ele me cedeu o isqueiro.

- Vista bonita, não? – percebi que ele estava assustado e eu senti uma coisa tão boa por dentro. Ele tinha um sotaque de estrangeiro. Certamente era muito rico.

- É.

- Você é daqui? – ele perguntou tentando fazer algum laço de amizade.

- Sou. Aquela é minha casa, ta vendo? – apontei com o dedo para uma mansão em um condomínio de luxo no meio do mato. Mas parece que ele não acreditou. Ficou em silêncio e depois disse:

- Então está acostumado com a vista!

- Sim, estou. Fui falando e dando as costas para aquele burguês de merda. Ele ficou de costas para mim e de frente para a vista da cidade. Achei que era o melhor momento para agir. Dei uns passos devagar na direção dele e o empurrei com tanto gosto que quase caio junto com ele. Ele ainda tentou se segurar em uns arbustos, mas escorregou como quiabo ribanceira a baixo. Pude ver seu corpo se espedaçando nas pedras, batendo e dando cambalhotas como um boneco. Ele caiu no meio do mato.

Fiquei observando-o por alguns instantes. Confesso que fiquei tão alegre que soltei uma gargalhada como nunca mais tinha feito. Votei para casa com a sensação do dever cumprido. Dormi o resto da tarde e uma parte da noite. Estava ansioso para que o dia começasse logo e o sol despontasse no horizonte. Com umas moedas que me sobrou de um troco comprei dois pães e preparei um café amargo. Engoli tudo e subi o morro com pressa. Quando cheguei lá em cima tinha um casal.

Aproximei-me deles. Achei interessante a ideia de vê-los cair de lá de cima. Encostei devagar para não perder tempo, mas quando cheguei por trás a mulher percebeu minha aproximação e eu disfarcei. Fui para o lado esquerdo deles e acendi o cigarro importado que peguei do turista no dia passado. Eles ficaram em silêncio por causa de minha presença. Tentei puxar um diálogo para saber se eram estrangeiros como o outro:

- Hoje está frio, não?- perguntei.

- Só um pouco! – ela respondeu com uma voz tão suave e tão agradável. Vi uma aliança na sua mão direita e outra na dele. Percebi que eram noivos. Ela tinha os cabelos grandes, as pernas grossas. Ele era franzino e feio. “Como um mulherão daqueles se interessou por um cara tão feio e franzino”? – pensei. Só podia ser rico. Ela era alguma interesseira que estava com ele somente por dinheiro. Esperei o momento certo, mas estava demorando. Achei que seria mais difícil empurrar duas pessoas de vez. Esperei que virassem as costas.

Viraram e eu já estava próximo a eles e os empurrei com a perna direita e eles se seguraram um no outro, mas eu continuei empurrando até conseguir fazer com que eles inclinassem os corpos ao mesmo tempo para o precipício, ela ainda deu um grito, mas pude vê-los caindo abraçados. Na queda ele a empurrou para o lado e tentou pular numa pedra e assim o fez, plaf, acho que quebrou algum osso. Foi descendo e rolando sobre as pedras como um boneco até cair lá embaixo no meio do mato. Ela ainda ficou algum tempo escorregando até se espedaçar numa árvore.

Nunca tinha sentido uma sensação daquelas. Aqueles burgueses de merda tiveram o que mereceram. Sem dinheiro todo mundo é igual. Mas não há dinheiro que pague a sensação de onipotência em vê-los caindo do morro, em provocar suas quedas, eu decidia quais daqueles burgueses de merda iriam viver ou morrer.

Quando menos esperei surgiu um sujeito com umas roupas meio encardidas. Encostou e foi tirando um pacote de fumo de um dos bolsos. Fez um cigarro e acendeu. Ficou por ali observando a cidade. Pensei na possibilidade de empurrá-lo como fiz com os outros, mas logo dissipei esse pensamento. Estava mais do que comprovado que ele não era um burguês desse que vem aqui para apreciar as vistas. Por isso não teria graça nenhuma vê-lo caindo morro a baixo e se espedaçando nas pedras. Até pensei em dá-lo uma rasteira e dizer “sai daqui seu filho de uma puta senão vou te empurrar morro a baixo! Se ficar aqui por muito tempo vai estragar o meu dia!”. Acho que ele leu meus pensamentos porque foi logo saindo.

Fiquei ali por muito tempo e ninguém mais apareceu. Eu já estava ficando com sede e fome. Por isso achei melhor encerrar meu expediente por aquele dia. Ademais eu teria que ir à transportadora ajudar a descarregar uma carreta para ganhar uns trocados. Amanhã será outro dia.

Leon Cardoso
Enviado por Leon Cardoso em 11/07/2013
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