Dançando no escuro

O relógio no meu bolso tiquetaqueava cada vez mais rápido. Meu coração acompanhava-o no mesmo ritmo. O homem entrou numa rua sem saída e deserta, e eu o segui. Os postes de luz apagavam conforme a minha passagem, as poças de água adquiriam pequenas partículas de gelo ao meu toque. A escuridão – a tão amável escuridão – me abraçava. Eu conhecia aquela sensação. A ansiedade me consumia, mas o conforto era inigualável quando tudo terminava. Era da minha natureza, eu não podia oferecer resistência alguma à minha natureza.

Eu acompanhava com os olhos o andar trôpego do bêbado, que assoviava uma canção. O ritmo me contagiava e mesmo sem perceber, meus passos adquiriram o compasso da música. As estrelas no céu pareciam brilhar como nunca. Por algum motivo inexplicável, olhá-las enquanto caminhava dava-me prazer. Era uma noite agradável, até que as batidas do relógio trouxeram-me à realidade. Aquilo precisava ser feito.

Aumentei a velocidade dos meus passos, levei para perto do homem uma rajada de vento fétido e a escuridão. Ele parou, sentindo o vento. Foi então que algo incompreensível até então, aconteceu. Ele me olhou. Bruno me olhou. Não era como os outros, que olhavam através de mim; eu senti, em toda a embriaguez do olhar dele, uma quentura que tocou minha alma. Aquilo me desconcertara, e eu não sabia como reagir. Ficamos nos encarando por alguns minutos, até que Bruno diz:

- Você não pode me levar. Não hoje.

O peso dessas palavras atingiram-me como uma bigorna. Uma sensação de gelo percorreu todo o meu corpo. Eu tremia.

- Você... você pode me ver?

- Eu sonho com você, há anos. Eu sonho com o dia em que eu poderia te encontrar e te encarar assim... de homem pra Morte.

- Mas isso é impossível. Nós não somos visíveis aos humanos, é impossível! – eu não podia encarar a verdade. Era um fracasso enorme para os de nossa raça, não conseguir exercer a única função para a qual fomos designados: matar. Aquilo tinha de ser um sonho.

- Vamos dançar, dona Morte. Eu te desafio a um duelo de dança. Não há nada que eu faça melhor que dançar... se eu vencer, você me deixa vivo.

Dito isso, Bruno começou a cantarolar uma música melancólica e dançar consigo mesmo. Apenas a bebida faria um homem prestar-se a isso para “vencer a morte”. A cena me deixava confusa, eu não entendia o que estava acontecendo. Conforme o homem dançava, eu sentia como se a escuridão se adensasse ao nosso redor. Pela primeira vez, ela parecia me oprimir e sufocar, ao invés de confortar. Cambaleei para trás, com o coração pulsando forte. Meus pés tocaram numa poça d’água. Olhei-a e tudo o que vi foi a escuridão.

Tudo então, ficou claro para mim. Eu não era humana. Coração, ansiedade, olhos, alma, pânico. Eram todas qualidades de seres humanos. Aquilo não era eu. Eu era apenas um manto com pernas e braços. Eu era feita de escuridão. Humanizar-me seria o fim. Por isso Bruno me via, por isso eu não mais poderia matá-lo. Ele me vencera, enfim.

Deixei-o dançando sozinho na rua. Saí para a avenida, com o medo cada vez mais presente. Algo no meu peito doía profundamente. Uma amargura me tomava por completo e meu único desejo era, ironicamente, morrer. A escuridão macabra que me envolvia foi tornando-se menos densa. Ao longe, uma luz parecia se aproximar, cada vez mais rápida. O relógio no meu bolso foi diminuindo as batidas. Meus olhos – sim! Eu possuía olhos! – foram ofuscados pela luz que avançava rápida em minha direção. Era um caminhão.

Eu não conseguia enxergar mais nada, tudo era muito claro e barulhento. Ouvi uma buzina e senti dor física. Pela primeira e última vez. O relógio parou. Para sempre, escuridão. Causa mortis: humanização.

Carol Santucci
Enviado por Carol Santucci em 07/07/2013
Reeditado em 28/04/2014
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