Por causa da carne
Jogou as tralhas de pesca nas costas, limpou as varas e anzóis, juntou tudo num feixe miúdo, enrolado por cipós que apanhou nas árvores que ladeavam o rio. Olhou as águas barrentas e suspirou fundo. Já estava quase desistindo dessa vida, um ritual grotesco de escalar barrancos em busca de um local solitário que pudesse lhe render peixes. Mas como nos outros dias, esse também fora em vão.
Viera com o nascer do sol, com os apetrechos de pesca e a marmita minguada para apostar num dia de fartura, sonhando em ver brilhar no anzol as escamas reluzentes, que vez em quando ele recebia das águas como se fosse um troféu pela sua insistência. Mas os peixes parece que tinham ido embora. O São Francisco não era mais o mesmo da sua infância, quando vinha com seu pai pelas trilhas da mata, que quase não deixavam ver o sol, tamanha a generosidade dos braços verdes que resguardavam a sombra, escondiam mistérios e se enfeitavam de flores e frutos. Hoje, já quase não havia rastros dessa mata. O caminho ficou árido e seco, fechado em lotes verdes de canaviais, que além de embrutecer a terra, cortavam o corpo que nem navalha quando tinha de cortar passagem para as margens. Vez ou outra ainda vinham as queimadas, labaredas vermelhas no final do dia, que adentravam pela noite como a garganta do diabo, transformando o verde em cinzas para facilitar o corte da cana. Ele sabia que a morte se estendia além das canas e via aos poucos o horizonte se desnudar do verde e se tingir num azul solitário, demarcado pelo sol escaldante que parecia escarnecer da insensatez do homem, fazendo tocaia para si próprio.
Juntou tudo que era seu e que não era mais do que nada e se foi, pela mesma trilha seca, agora muito mais penosa por causa do peso da derrota, vencido pelo cansaço e pela desesperança que retirara das águas. Vida de pescador não prestava pra mais nada mesmo. Foi pelo caminho afora, pensando num jeito de mudar de vida. “Guento isso mais não, sô. Deus tem dó de mim, me arruma um trem mode eu mudar de vida”... E enquanto o pó da estrada ia se afundando cada vez mais nos calcanhares rachados, rastejantes pelas havaianas surradas, os pés doíam, a cabeça zoava e a vista embaçava com o suor que escorria rosto afora. Lá no alto a casinha já se fazia avistar, com a fumaça preguiçosa saindo pelo chaminé. “Coitada da Dinorá, tá crente que tou chegando cum peixe... O coração bateu apertado, e o estômago se estreitou mais ainda, porque o cheiro de fome começou a se espalhar. Chegou mais cedo e ela não tinha atinado ainda que ele estava chegando. Estendia a roupa lavada, pedaços de chita e de algodão, vestimenta de gente e da casa para ficar no sol, dependuradas no arame farpado que servia de varal. Quando viu que ele chegava, apanhou o cesto no chão e foi ao seu encontro com aquele olhar piedoso e o sorriso apagado, uma sombra da mocinha faceira que ele havia encontrado um dia. Parecia que a vida fizera questão de marcar no seu rosto, cada traço de sofrimento que ela havia tecido com os dias. E como eram tantos. Marcas de dono feitas pelo tempo, mas que ele sabia ser parte do ferro que marca, ser o calor do fogo que deixava cicatrizes. Suspirou fundo e balançou a cabeça, espantando os pensamentos. Abriu os braços para mostrar que vinha de mãos vazias e se deixou cair no banquinho da pequena varanda. Ela não disse nada, apenas olhou para o chão, como fazia quando estava triste. Depois foi para o fogão, ver o que podia ser feito para aplacar a fome. Olhou uma a uma, as latas vazias. E pôs mais água no feijão, que fervia no fogão à lenha, cardápio único que há muito se servia solitário todos os dias.
No dia seguinte não foi para a beira do rio. Que os homens fizessem bom proveito do manancial do seu antigo sustento, despejando veneno e podridão no leito que ele tanto amou um dia. Agora estava revoltado com o rio, ao invés de ter raiva dos homens, que sabia serem os culpados pela amargura das águas, que escondiam os peixes e se encolhiam no leito, receosas de se oferecer. Foi para a cidade. Andou em desalento até encontrar alguém que precisasse de mais braços para a lida. Qualquer coisa que lhe rendesse uns trocados, o suficiente para o pão do dia. E foi nesse momento que viu a placa, oferecendo vaga de vigia da obra que se estendia pela esquina. Procurou pelo mestre de obras e combinou de começar naquela noite mesmo. Não voltou para casa. Quando a noitinha chegou, se inteirou de seus afazeres, que aliás, achou muito fácil para um homem simples como ele. Passou a noite assim, olhando o movimento das ruas, cuidando para que ninguém ousasse entrar no canteiro de obras. E assim foram os dias seguintes, saindo à tardinha como se pescar fosse. Para Dinorá havia dito que mudara os horários de pesca, que de agora em diante sairia à tardinha e ficaria na beira do rio até o amanhecer, para ver se pegava mais peixes. Ela, como sempre, não dissera nada.
Depois de uma semana, recebeu seu primeiro salário. Coisa pequena, porém muito mais farta do que a venda dos peixes, que ele recebia aos pouquinhos. Sentiu as mãos tremendo, quando contou as notas que lhe puseram nas mãos. Sentiu-se homem forte de novo, dono de sua vontade, e foi com ela que se dirigiu ao supermercado para finalmente levar fartura pra casa. Não se esqueceu de nada, do pão ao leite, e principalmente da carne, coisa que parecia até ter se esquecido do gosto, por tanto tempo que não via tão saboroso prato. Foi feliz e sorridente para casa, mais cedo do que previa, já que não sabia que tinha folga na semana, só fizera receber e ir às compras. Ia contente pelo caminho, apesar do peso imenso do fardo. Estranhou não ver a fumaça na chaminé, assim que avistou a casinha. Entrou preocupado com o silêncio e não viu Dinorá. Buscou pelo quintal, mas lá só avistou as galinhas e o gato que dormia espichado no velho tapete. Caminhou pelo terreiro e foi no final dele que a viu... A saia levantada, o corpo suado, mexendo no mesmo compasso de um homem que a princípio não reconheceu. Ficou mudo, cego, estático, olhando a cena com os olhos arregalados, como se a imagem fosse em uma dimensão distante daquela onde estava. Mas não era. De repente o sangue ferveu, o ódio explodiu e sua mão, agora livre das compras buscaram o cabo da faca, aquela que lhe servia para abrir o peixe na beira do rio. E sem ver por quantas vezes, golpeou o dorso nu do homem que agora se revelava ser seu vizinho, compadre pela responsabilidade de levar à igreja um de seus filhos e que agora, caía entre as golfadas do sangue que fluíam de repente. Dinorá não disse nada, nem mesmo quando a lâmina afiada lhe atravessou o ventre e fez com que seu corpo se emborcasse para a frente, com o peso da culpa e da dor. Só então José parou. Ficou assim, atarantado, olhando os corpos no chão. O compadre já sem vida, lhe causava nojo, vômito, ódio, um redemoinho de veneno lhe revirando o estômago. Mas ela ainda continuava ali, fitando-o com aquele olhar suplicante, humilde, carente, como se pedisse perdão simplesmente com os olhos. “Pru quê”? foi a única palavra que saiu de seus lábios tesos, encolhidos pela raiva. “Sei, não, Zé... Foi mode a carne. Num guentava mais cumê peixe cum feijão. Tava quereno dimais um pedaço de carne e o cumpade de veiz em quando me trazia. Eu tive que sê boa pra ele, ele era um home bão”... E com o olhar cada vez mais vazio, foi se virando aos pouquinhos para onde o sol se punha e também se foi, com a sua fome e a sua dor. Ele se levantou devagar, se encaminhou para a cozinha onde deixara as compras do supermercado. Lentamente foi jogando tudo pelo chão, para o deleite das galinhas que se jogavam sobre tudo que caía. Foi então que suas mãos encontraram o pedaço de carne, uma peça fria e vermelha como o sangue que ainda trazia espalhado no corpo. Quis estraçalhá-la com os dedos, destruí-la com sua força mas ela fugia escorregadia entre os dedos. Atirou-a aos pés do gato, que a segurou como se fosse a presa mais preciosa desse mundo, uma miragem que a miséria jamais lhe permitira sonhar em degustar um dia. Em seguida, encaminhou-se devagar pela trilha que o levava até o rio. Passou pelas mesmas árvores minguadas do caminho, mas dessa vez sem olhar em volta para ver o que ainda sobrava do lugar. Também não sentiu a navalha das folhas de cana, nem o calor escaldante do fim de tarde, que salpicava gotas de suor na sua face. Também não sorriu ao chegar à margem do rio, que talvez pressentindo a sua dor, corria mudo no seu leito escuro. Ficou assim, por alguns minutos a observar a água, como se quisesse descobrir o mistério das águas que se ajeitavam no fundo. E foi para lá que caminhou. Sem olhar para trás, sem diminuir o passo, sem mexer com os braços. Simplesmente se foi, até que as águas abriram os braços e o guardaram também nos seus mistérios. Por alguns instantes, apenas se tingiram de vermelho, lavando aquelas mãos agora tão sujas quanto o rio.