A estação

Sancho trabalhava para a companhia concessionária das ferrovias estaduais. Seu pai fora inspetor da empresa responsável pela segurança nas estações e conseguira-lhe aquele emprego pouco antes de sua morte trágica e ainda não-esclarecida sobre os trilhos — certa manhã, encontraram-no esmagado entre dois vagonetes carregados com barras de metal. Sua cabeça jazia separada do resto do corpo, grudada nas pedras com seu próprio sangue, já seco pelo sol. Mais tarde o laudo da polícia concluiu que o pescoço fora serrado, porém ninguém jamais foi preso. Um guarda chegou a ser formalmente acusado do crime, mas o advogado o livrou da cadeia e o caso foi abafado para preservar o nome da empresa, que temia pela renovação do contrato de prestação de serviços para o estado caso um escândalo estampasse os jornais.

A história da família com a ferrovia começou na época do avô de Sancho. O velho servira durante anos na construção da estrada de ferro, carregando pedras sob o sol escaldante, vivendo a promessa do inferno todos os dias em meio a dezenas de outros homens sem nome ou passado. Mesmo com a simplicidade de sua ignorância, Sancho compreendia haver uma ligação maior de sua gente com os trens.

Como de costume, naquela noite Sancho estava sozinho em sua saleta que funcionava como escritório da estação. Escutava o boletim esportivo no rádio enquanto resolvia as palavras cruzadas do jornal distribuído aos passageiros. Antes que conseguisse terminar, o rádio ficou mudo. O homem deu uma série de tapas no aparelho para só depois descobrir que as pilhas haviam acabado. Encostou-se na cadeira, sentindo as costas doerem, e tirou os óculos para coçar um dos olhos enquanto bocejava. Olhou no relógio. Faltavam dez para a uma. O último trem já havia passado e era hora de fazer a ronda.

Sancho saiu pela estação deserta com um cassetete preso ao cinto e uma lanterna no bolso. Assoviava uma canção brega ao passar pelo guichê fechado e depois pela plataforma. Perguntava-se quando mandariam outro guarda. Nenhum durava muito no emprego e a companhia demorava cada vez mais a contratar alguém novo.

O inconfundível retinir do metal em algum lugar nos trilhos interrompeu os pensamentos de Sancho. O homem automaticamente pegou a lanterna, praguejando contra a sorte caso algo errado estivesse acontecendo naquele fim de mundo justamente quando ele fazia o trabalho dos guardas, e iluminou a área de onde calculou ter vindo o barulho. Vasculhou com o facho de luz da lanterna, agachado sobre a linha amarela próxima à borda da plataforma, mas não encontrou coisa alguma. Praguejou mais um pouco até se convencer da necessidade de descer na via.

O mundo era diferente sobre os trilhos. Sancho andava com cuidado para não tropeçar até que seus olhos se habituassem à penumbra. Procurava por algum pichador delinqüente e estranhava o fato de não ter ouvido ninguém fugir às pressas ao ser descoberto.

Talvez não fosse nada, pensou Sancho. Mas no instante em que baixou a lanterna, algo sorrateiro roçou suas canelas, derrubando-o sobre os trilhos. Uma dor aguda do lado esquerdo da testa o fez gritar. Batera com a cabeça no metal e logo descobriu que a fronte sangrava. Sancho recuperou a lanterna que lhe escapara das mãos e agitou-a furiosamente em busca daquilo que o havia feito cair. Fazia ameaças para as quais recebia apenas o silêncio como resposta, mas calou-se quando a luz recaiu sobre uma criatura negra e peluda que fitava-o com intensos olhos amarelos.

Um gato.

O animal soltou um miado quase inaudível e voltou-se para o outro lado quando um dos muitos ratos entocados nos trilhos passou rápido como um borrão.

Sancho se levantou rindo do papel ridículo que fizera. Caminhou durante algum tempo no breu da via, mancando de uma perna, com passos ruidosos sobre o mar de pedras. Sentia-se à vontade sem nenhum guarda bisbilhoteiro por perto para se meter em seus assuntos.

Nenhum maldito guarda.

Sancho chutava as pedras no vão entre os trilhos num gesto aparentemente despretensioso. Na realidade, antes de voltar à sua sala, queria se certificar de que a cova que providenciara para o último guarda da estação continuava tão bem escondida quanto as de seus antecessores.
Diógenes Daniel
Enviado por Diógenes Daniel em 28/06/2013
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