Um ser que não soube ser
(parte final)
Aquela sua atitude deixou todos ali pasmados fazendo gestos de reprovação, o que a fez dissimular o tom e levar-me a outro aposento dando uma indiferente desculpa aos seus pares que já lhe conheciam o ar indisfarçável de superioridade. Deu-me um sermão, eu gaguejando tentava entre soluços repetir o que houvera, mas ela resoluta não me deixava terminar, apertando meu braço dizia para calar-me; para todos os efeitos eu tivera um pesadelo e ponto final. Botou-me para dormir com a cabeça em seu colo; extenuada dormi.
Em casa, ao amanhecer, meu irmão quis saber o que houve, porque eu estava chegando com minha mãe. Ela fria manteve um tom ameno com ele e repetiu o que já havia determinado: fora um pesadelo e eu irresponsavelmente havia saído de madrugada para ir à clínica. – Que desagradável; esse incidente não mais se repita! Aquela exposição no trabalho, o incômodo às pessoas, as especulações, o que haveriam de falar!
Reprimida, bombardeada pelas suas preleções, deixava aos poucos aquele aprendizado bombástico tomar conta de mim, e com ele vinham modos de defesa em forma de rejeição, desprezo e desconfiança. Forçosamente a dissimulação daquele dia ia assumindo o lugar da minha natural espontaneidade, que descobri minha mãe tanto rejeitava, aquela mulher era uma caixa de Pandora.
Continuei ali, de tempos em tempos me desvencilhava calada, das investidas do meu pai. Inicialmente teimava em buscar apoio em minha mãe que sempre me rechaçava grosseiramente, tentando fazer-me sentir culpada. Fui me tornando cada dia mais esquisita, irascível e introspectiva; deviam achar que era da idade, afinal a puberdade tinha dessas coisas.
O tempo inexorável deixava sua marca indelével em meu ser; esperava sempre uma explicação, um pedido de perdão, que sabia não perdoaria, embora soubesse, aquela mágoa era o veneno que tomava dia pós dia, maltratava, mas não matava, pelo menos, não o corpo.
Namorei, amei, noivei. Encontrei no último, o parceiro ideal para livrar-me do pesadelo que me perseguia. A provação que, provavelmente como Judas, havia pedido e não dava conta. Não havia em mim o amor sublimado, aquele que leva ao perdão das ofensas, antes o que gritava mais forte era a mágoa o medo, e o orgulho ferido – eu não era a filhinha do papai.
Aquele menino de classe média que me consolava em meus delírios de infelicidade – dizia-me enjeitada por meus pais – foi o meu vingador. A força material que faltava para livrar-me definitivamente daqueles que haviam dado um nó em minha cabeça e sangrado meu coração entre quatro paredes, mais precisamente, entre nós três.
Uma noite, uma trama, e fim. Acabou. Livre! Aqueles que foram instrumentos para me trazerem à luz, agora habitavam as trevas.
Esperando a sentença, volto das minhas desgraçadas lembranças para ouvir os burburinhos, murmúrios de: assassina! Assassina! Eram os arrogados donos da moral e dos bons costumes com quem há muito me acostumara, ensurdecidos à voz que ecoa: Atire a primeira pedra aquele que não tem nenhum obscurantismo em seus recônditos da alma; que não se aflija ao deparar-se com monstros internos. Muitas vezes tirando-lhes o sono dizem-se perseguidos por maus fluidos, inveja – nunca poderia ser do próprio interior!
A primeira pedra veio como o grito de uma gralha – Nada justifica um crime! Veio a segunda, dedo indicador em riste dirigido a mim e o polegar a si mesmo - Matar os pais! É um monstro! Pedras e mais pedras, uma avalanche que, mais dia menos dia, quem sabe, soterrará um por um.
Eu? Já havia morrido e eles nunca saberão. Estava ali, agora loira e linda, sendo julgada por Deus em sessão permanente; pelos homens? Esses, são simples mortais, falhos e vendáveis.
FIM.