“Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz.”
Platão
1
Era uma vez uma cidade. Uma pequena cidade que, assim como outras cidades do mundo, possuía uma estranha e macabra lenda. Tantas coisas ocorriam nesse local, que a história parecia ser muito mais do que uma lenda. Um mito sobre um homem amaldiçoado que sequestrava crianças e as levava dentro de um enorme saco de pano que carregava nas costas.
Ninguém sabia explicar se esse homem realmente existia. Nem mesmo a policia tinha provas o suficientes sobre os acontecimentos, pois as evidências não batiam. Sendo assim, as crianças, e meses depois, seus pais, continuavam sumindo sem deixar vestígios, apenas saudades.
A lenda falava sobre um senhor que era chaveiro na cidade. Conhecido por todos, era responsável por todas as fechaduras e assim, conquistava a confiança dos moradores. Certo dia mudou-se para o lugar uma linda mulher. Chegou num enorme carro de luxo, e sozinha. Mudou-se para a mansão da cidade, no alto de uma pequena colina, isolada das demais residências.
Após algumas semanas, surgiu o boato de que a mulher era milionária e sozinha. Em crise financeira devido ao aparecimento de novos chaveiros pela cidade, e o crescimento de shoppings, o chaveiro teve seu caráter testado. Foi tomado pela curiosidade de saber se a mulher era realmente rica, e, junto com seu filho de dez anos, esperou que ela saísse, e invadiu a mansão. Ficou maravilhado com tudo aquilo, enormes móveis, televisores que haviam acabado de chagar no Brasil, e, dentro de uma sala aonde usou sua chave mestra, descobriram diversos cofres, todos abarrotados com ouro e joias.
Escondido do filho pegou um punhado de cada, e saiu. Na noite daquele dia, ele pode ouvir um grito tomar a noite ecoando pelas ruas. E de fato ele era verdadeiro. De frente para um dos cofres, uma senhora velha, alta e com a coluna envergada, se ajoelhava coberta de ódio, com as mãos em forma de garras arrastando sobre o rosto cheio de feridas e bolhas. Começara a quebrar tudo ao seu redor, e as coisas pareciam se mover apenas com a força de sua mente. Por entre seus dentes podres e pontiagudos, ela sussurrou: “Chaveiro...”. Passou seu dedo indicador sobre uma pegada no chão, e cheirou-o com toda força, sorrindo em seguida.
Na hora de dormir, após colocar seu filho na cama, o chaveiro voltou para o quarto e ficou acariciando seus novos tesouros. Fazia planos, queria investir e ir embora daquela pequena cidade. Comprar uma casa maior, viajar, e dar o de melhor para seu filho. Com a morte de sua esposa por tuberculose, o menino ficara muito triste. Foi então que seus pensamentos foram cortados pelo barulho de seu filho gritando. Imediatamente largou tudo e foi para o quarto do menino, que era logo ao lado. Uma ventania fazia tudo voar pela casa, e ao entrar no quarto, viu seu filho flutuando perto da janela, e uma silhueta negra, também voando, que o segurava tampando sua a boca. Ao tentar se aproximar, o chaveiro sentiu uma força invisível o jogar contra a parede.
Aos poucos a silhueta foi ganhando forma. Primeiro pareceu ser uma senhora idosa, de longos e ralos cabelos brancos, mãos compridas e corpo envergado, vestindo trapos que voavam com o ritmo do vento. Depois, foi se transformando na senhora milionária que se mudara para a cidade, e que fora roubada. O chaveiro, ao reconhecer a mulher, se ajoelhou e pediu perdão, mas era tarde. A mulher fez com que as janelas se abrissem e saiu. Parada ainda no ar, lançou um olhar estranho sobre o homem, que, mesmo muda, disse-lhe coisas. Agora, ele teria que achar seu filho. Teria que juntar o maior numero de crianças, escolhidas por elas, e leva-las até sua casa. Só tornaria a ver seu filho e conseguisse juntar pelo menos as seis crianças marcadas com uma fita vermelha por ela mesma. Dito isso, ela simplesmente desapareceu, levando o menino consigo.
A lenda cresceu e ganhou mais detalhes. Crianças indesejadas, crianças malcriadas. Todas estavam na lista do chaveiro, que conseguia entrar em todas as casas por ter controle sobre as chaves, que foi ganhando aparência pelos olhos dos outros. Muitos diziam que era um homem velho, triste, sujo, e que andava com um enorme saco de pano nas costas, onde colocava as crianças que sequestrava. E era uma lenda que os pais contavam aos seus filhos, a fim de obriga-los a terem boas maneiras... A lenda do Homem do Saco.
2
Dias de hoje...
NUMA NOITE DE lua nova, Mateus não estava conseguindo dormir. Estava com insônia, e seus pensamentos cismavam em irem visitar a lenda que seu irmão lhe contara na última noite de ano novo. Deitado no quarto que dividia com seu irmão mais velho, o menino virava de um lado para o outro em sua cama, mas o sono não vinha. Paulo dormia profundamente na cama ao lado, abraçado ao controle de seu videogame.
Mateus tinha apenas seis anos, e Paulo quinze. Gostavam de coisas diferentes, e o irmão mais velho adorava assustar o mais novo. Contava-lhe lendas, sem poupá-lo de detalhes mais macabros e sanguinolentos. Nessa noite, os pais dos meninos haviam saído. Cansados da vida pacata na cidade em que moravam, foram até a cidade vizinha e mais populosa procurar por uma casa maior. Mateus odiava dormir sem os pais em casa. Era para o quarto deles que ele corria quando tinha pesadelos.
Tentava fugir dos pensamentos, porém cismava em fantasia com a tal lenda do homem do saco. Foi então que seus pensamentos foram quebrados por um barulho no andar de baixo. Enrolado em seu lençol, foi até a janela, e não conseguiu ver o carro de seus pais estacionando, provavelmente não eram eles. Esticou-se o máximo que pode, mas logo escutou uma batida vinda do lado de fora do quarto. Imediatamente se jogou sobre a cama e tornou a se cobrir até a cabeça. Seu corpo tremia de medo. Ao fechar os olhos, fantasiava a cena que poderia estar acontecendo. Uma silhueta corcunda subindo as escadas, serrando os dentes uns nos outros, e com as mãos sujas de sangue e poeira. Carregava um enorme saco nas costas, e que conforme ele subia as escadas, rostos iam aparecendo e se contorcendo na superfície, rostos de crianças, rostos de pavor.
Mateus fechou os olhos com mais força. Ouviu o barulho de papeis sendo amassados agora. Provavelmente, quem quer que fosse que estivesse ali, estava pisando em suas revistas de colorir no chão, ao lado de sua cama.
Um cheiro forte de esgoto tomou o quarto. Através de uma brecha no edredom, viu alguém. Uma silhueta escura, suja, e que parecia revirar o quarto. Na janela, havia uma mulher estranha, de braços cruzados, e que de repente, levemente, apontou o dedo para um canto especifico do quarto. Mateus urinou nas próprias calças ao notar que ela apontava para ele.
NUMA NOITE DE lua nova, Mateus não estava conseguindo dormir. Estava com insônia, e seus pensamentos cismavam em irem visitar a lenda que seu irmão lhe contara na última noite de ano novo. Deitado no quarto que dividia com seu irmão mais velho, o menino virava de um lado para o outro em sua cama, mas o sono não vinha. Paulo dormia profundamente na cama ao lado, abraçado ao controle de seu videogame.
Mateus tinha apenas seis anos, e Paulo quinze. Gostavam de coisas diferentes, e o irmão mais velho adorava assustar o mais novo. Contava-lhe lendas, sem poupá-lo de detalhes mais macabros e sanguinolentos. Nessa noite, os pais dos meninos haviam saído. Cansados da vida pacata na cidade em que moravam, foram até a cidade vizinha e mais populosa procurar por uma casa maior. Mateus odiava dormir sem os pais em casa. Era para o quarto deles que ele corria quando tinha pesadelos.
Tentava fugir dos pensamentos, porém cismava em fantasia com a tal lenda do homem do saco. Foi então que seus pensamentos foram quebrados por um barulho no andar de baixo. Enrolado em seu lençol, foi até a janela, e não conseguiu ver o carro de seus pais estacionando, provavelmente não eram eles. Esticou-se o máximo que pode, mas logo escutou uma batida vinda do lado de fora do quarto. Imediatamente se jogou sobre a cama e tornou a se cobrir até a cabeça. Seu corpo tremia de medo. Ao fechar os olhos, fantasiava a cena que poderia estar acontecendo. Uma silhueta corcunda subindo as escadas, serrando os dentes uns nos outros, e com as mãos sujas de sangue e poeira. Carregava um enorme saco nas costas, e que conforme ele subia as escadas, rostos iam aparecendo e se contorcendo na superfície, rostos de crianças, rostos de pavor.
Mateus fechou os olhos com mais força. Ouviu o barulho de papeis sendo amassados agora. Provavelmente, quem quer que fosse que estivesse ali, estava pisando em suas revistas de colorir no chão, ao lado de sua cama.
Um cheiro forte de esgoto tomou o quarto. Através de uma brecha no edredom, viu alguém. Uma silhueta escura, suja, e que parecia revirar o quarto. Na janela, havia uma mulher estranha, de braços cruzados, e que de repente, levemente, apontou o dedo para um canto especifico do quarto. Mateus urinou nas próprias calças ao notar que ela apontava para ele.
3
PAULO SE LEVANTOU ao ouvir a barulheira no quarto, pronto para dar uns cascudos no irmão mais novo. Mas se surpreendeu ao ver a cama do menino suja de terra, e com uma enorme mancha cinza molhada bem no centro. Pensou em rir e em ameaça-lo de contar para todo mundo na cidade que ele urinou na cama. Porém, notou que havia uma fita vermelha presa na janela, tremulando com o vento. Sentiu seu corpo tremer, e imediatamente ligou para seus pais.
Na manhã seguinte, diversos policiais estavam na frente da casa. Muitos vizinhos também cercavam o sobrado, querendo saber o que de fato havia acontecido. O murmurinho foi ganhando força, quando a delegacia de proteção ao menor chegou ao local numa van. A história de que teria sido o homem do saco começou a crescer nas redondezas. E as crianças começavam a temer ainda mais. Agora não saíam nas ruas, não queriam brincar ao anoitecer. A cidade foi ganhando contornos macabros, sempre escura e silenciosa.
Os pais de Mateus se mudaram do local. Paulo sentia falta do irmão, e, às vezes, parecia ouvir a voz dele, pedindo para que ele parasse de contar suas histórias. O pai do menino, Carlos Alberto, sentia a mesma coisa. Andando pelas ruas, sentia-se observado. Sentia que seu filho estava por perto. Sentia que havia algo a se fazer. Em seus sonhos, o menino estava numa mansão, e uma linda mulher o mantinha preso. Uma mulher alta, de corpo bonito e olhar profundo e cativante. Todas as noites ela voltava aos sonhos de Carlos Alberto.
Os meses se passaram e a policia não conseguia nenhuma informação sobre o desaparecimento de Mateus. Era como se ninguém tivesse entrado no quarto. Não havia digitais, não havia pegadas. Apenas terra e a urina do menino. Era difícil aceitar, mas Carlos sabia que algo estranho estava acontecendo. Paulo se aproximou de seu pai na hora do almoço, e abraçou-o como não fazia há tempos. Contou-lhe que sentia saudades do irmão, e que temia ser culpado por isso. O pai o abraçou e beijou-lhe na testa.
Paulo sussurrou algo no ouvido do pai, que sua mãe não escutou. Apenas disse “velho do saco”. Na hora o pai sorriu, porém, ao se deitar durante a noite, e abraçar sua mulher, que estava tomando calmantes, começou a lembrar da lenda que lhe era contada quando menino. Uma lenda sobre um homem que sequestrava crianças e as levava num saco. Pensou em tudo que ouvira, das risadas que deu quando leu em jornais, pais dizendo se tratar de uma lenda viva. Das vezes que leu por alto, sem se importar, sobre o desaparecimento de crianças e de, meses depois, seus pais.
Levantou-se da cama e foi até a garagem de sua casa. A bicicleta de Mateus ainda estava lá, com várias fitas enroladas no guidom. Atrás de uma caixa de ferramentas, ele puxou alguns exemplares de jornais antigos. Leu pequenas notas sobre crianças desaparecidas em circunstancias misteriosas. Falava-se em abduções alienígenas, em sequestro para venda órgãos, e até mesmo, em alguns jornais evangélicos, diziam se tratar da tribulação. Que seria Deus levando as crianças sem pecados para o reino dos céus, e deixando os pecadores na Terra para serem julgados.
Carlos foi ficando obcecado pelo assunto. Às vezes parava para comer alguma coisa e chorava lembrando do filho. Dos momentos que passavam juntos. Depois, sentava-se ora na frente do computador, ora no sofá relendo jornais, sempre sobre desaparecimento de crianças. Com o tempo, sua mulher foi notando que ele andava estranho. Carlos já não dormia durante a noite. Carlos já não jantava com a família, e pouco falava em casa. Carlos apenas ficava trancado na garagem, lendo jornais, mexendo em e-mails e sempre sozinho. Os parentes, preocupados, começaram a tentar entender a ligação daquilo tudo.
A barba de Carlos estava grande, ele não tomava banho. Ele já não trocava suas roupas. Depois de algumas semanas, ele sequer saía do escritório. A esposa e o filho mais velho dele começaram realmente a se preocupar. Tentavam a todo custo uma conversa com o homem, mas ele estava avoado. Fazia anotações em folhas avulsas, escrevia nas paredes do escritório, e quando andava pela casa, não falava nada. Apenas sussurrava coisas que somente ele parecia entender.
Certo dia, Carlos no meio da madrugada começou a cavar um profundo buraco no quintal de casa. Dentro dele, jogou milhares de fitas vermelhas que comprara numa feira. Queria acabar com qualquer possibilidade de outra criança ser sequestrada. Após isso, num acesso de fúria por não conseguir noticias de Mateus, colocou fita adesiva sobre todas as fechaduras, garantindo que ninguém pudesse usar qualquer chave nas portas de sua casa. Isso fez com que sua mulher resolvesse ir embora com Paulo.
Carlos ficou sozinho. Seus pensamentos começaram a lhe pregar peças. Todos os dias tinha a impressão de ver e ouvir Mateus correndo pela casa. Depois, uma mulher assoviava e ele sumia. O homem ainda tentava acompanhar, mas não conseguia. Os dois evaporavam. Às vezes, sentia um terrível odor de esgoto, e ouvia passos pela casa. Olhava de relance, e via a silhueta de um homem corcunda, com um saco nas costas. Certa vez, sonhara com um velho batendo a sua porta. O velho não possuía rosto, e seu corpo tremia, e quando tremia, parecia haver mais de uma pessoa dentro do mesmo corpo. Era como um fantasma numa imagem na televisão. Criando outras imagens sobre uma mesma. Esse velho deixara o saco sobre uma mesa e fora embora. Ao se aproximar, Carlos pode ver rostos se empurrarem o pano. Todos os rostos pequenos, todos rostos amedrontados. Rostos de crianças...
Já não sentia falta de sua mulher. Já não pensava em seu filho Paulo. Os dois tentavam entrar em contato, mas o homem havia cortado toda forma de comunicação. Cansado de não conseguir decifrar mistérios, de não ter noticias de seu filho sumido. Cansado de não ter contato com o sequestrador, Carlos se entregou à lenda. Pegou um saco de pano em sua garagem e nele amarrou uma corda. Olhou-se no espelho por alguns instantes e não se reconheceu no reflexo. O homem forte e saudável, o homem bonito e feliz que antes existira, não existia mais. Havia desaparecido atrás de uma barba espessa e suja, atrás de olhos profundos e uma boca amarelada. Em sua cabeça, a lenda se fazia viva, e ele agora tinha uma missão. Interpretou os sonhos como um chamado.
Andou pela casa arrastando o saco vazio pelo chão. Podia ver Mateus correndo pelo ambiente, aparecendo e desaparecendo de um canto para o outro. Ergueu o saco e saiu de casa. Nunca mais se ouviu falar de Carlos. Nunca mais se teve noticia de Mateus. Mas a lenda continuou sendo levada a sério por todos.
4
Era uma vez uma cidade. Uma pequena cidade que, assim como outras cidades do mundo, possuía uma estranha e macabra lenda. Tantas coisas ocorriam nesse local, que a história parecia ser muito mais do que uma lenda. Um mito sobre um homem amaldiçoado que sequestrava crianças e as levava dentro de um enorme saco de pano que carregava nas costas.
Ninguém sabia explicar se esse homem realmente existia. Nem mesmo a policia tinha provas o suficientes sobre os acontecimentos, pois as evidências não batiam. Sendo assim, as crianças, e meses depois, seus pais, continuavam sumindo sem deixar vestígios, apenas saudades.
FIM