Angústia

O sol ilumina o rosto de Clarice, que contrai a cara, negando-se a dar satisfação à luz da vida que entra esquivando-se das tiras grossas de tecido das Persianas. Ditada no sofá, rodeada por folhas de papel parcialmente amassadas e rasgadas, ela rebate o edredom e levanta-se num salto, olha em volta, tentando se lembrar como havia pegado no sono, coçou a cabeça, colocou o telefone da base que já estava apitando por falta de carga, vai até a cozinha de meias-pijama à passos preguiçosos e cansados de quem não conseguiu dormir bem. Dentro de sua cabeça um zumbido alto e agudo. Passa pelo cumprido corredor escuro, sente-se imersa no silêncio da manhã fria e aconchegante, vai até o quarto do filho na ponta dos pés, o assoalho retruca às leves pisadas com resmungos secos, velhos. Clarice abre uma frestinha da porta para ver se o filho ainda dormia, o quarto estava escuro, uma réstia de luz entrava pela janela e iluminada o chão do quarto, letras de música, violão. O perfume com cheiro de jovem pairava no ar, lembrou do dia em que o filho nasceu, uma noite difícil e com muita dor, mas depois a recompensa, a criança mais linda já vista por aqueles olhos de mulher, aquele bebê todo coberto de sangue era seu, sim, seu e do único homem a que ela entregou seu coração, homem este que já havia morrido antes mesmo do nascimento do filho, o qual tanto queria. Aquele vermelho de sangue da sua vida, sangue do amor eternizado naquela vida, três em uma. Vou protegê-lo e amá-lo até o fim de meus dias, prometeu aos anjos.

Rafael nunca foi de acordar cedo, sempre foi assim... Preguiçoso, porém sempre estudioso e muito responsável com tudo, até mesmo com as obrigações mais simples, como levar a avó ao mercado ou limpar a piscina, etc... porém estudar sempre fora sua verdadeira paixão. Seria médico.

Lembrando-se repentinamente que precisava de um café, foi para a cozinha, abriu a porta de baixo da pia e começou a vasculhar aquele amontoado de vasilhames inúteis em busca do coador de café, retirou panelas e vasilhas coloridas enormes, potes de sorvete que se acumulavam assustadoramente. Procura, arrasta, tira, põe e nada... até que, retirando quase tudo de dentro do armário, encontrou, “Aff..." . Então, depois de colocar tudo em status co, abriu a porta de cima para apanhar o pó, abriu o pacote e respirou aquele aroma de manhã, sentiu a felicidade invadir-lhe a alma como a paixão devastadora, lembrou-se novamente do marido, falecido há 19 anos, levou a mão ao peito e suspirou aquelas tardes felizes tornaram-se apenas um vulto histórico distorcido em sua cabeça, porém ainda existe a imagem quase viva desta amada pessoa na memória de Clarice, que nunca se esquecerá de seu primeiro e único grande amor, Ricardo.

Ela liga o fogo e põe aquela espécie de panelinha de esquentar-coisas cheia de água pronta para fumegar no coador. Suspirou fundo, olhou para a chama do fogão e ficou pasma por alguns momentos, com os olhos fixos na anti-matéria amarela (ou alaranjada?) meio azulada, sentiu como se algo a puxasse para o fundo de um poço escuro dentro da sua cabeça e em seguida a queimasse, como se estivesse lembrando de algum sonho recente, com aquele calor insuportável; porém momentos felizes vinham-lhe à mente logo em seguida, como os passeios em família nos Domingos, nos passeios à noite, cinema, tocava-lhe principalmente a imagem do filho único, Rafael, com aquele rosto de homem e alma de criança, quase um bebê, ”Eternamente meu Bebê”, repetia a mãe coruja.

Clarice cruzou os braços e continuou com os olhos presos na chama, aquecendo-se. Ouviu o som de violão.

-Isso filho... toca essa que eu gosto.

Clarice encostou-se na pia, ficou ouvindo o som do violão de cordas melosas e lentas, com a cabeça inclinada para cima e os braços ainda cruzados. Uma lágrima escapou-lhe dos olhos.

-Mãe... a senhora está chorando?- Perguntou uma voz que vinha do quarto. Uma voz lenta e melancólica, como de uma pessoa sedada.

Clarice passou as mãos no rosto rapidamente, sentiu um frio correr-lhe a espinha, e com voz soluçante respondeu:

-Não, não querido... Eu sé estava limpando o rosto porque... Um... um cisco, é isso, um cisco!

Clarice lutou para engolir as lágrimas, continuou escorada na pia, voltou-se para a água já fervendo, borbulhando e fumaceando, branca, os resquícios de sonhos mortos jamais esquecidos, a saudade a devastar-lhe o peito que outrora sorria, agora, chora. Aquela saudade dissolvida nas vidas que sobraram para contar a história.

A água sendo derramada no pó carbonizado, olhos fixos no preto do café, que na medida em que a água tocava a outra matéria, esta, parecia contorcer-se diante dos olhos de Clarice, que assistia a cena horrorizada boquiaberta, esfregou os olhos, tentando engolir as lágrimas que começaram a escorrer novamente, inevitavelmente.

As cordas voltaram a tilintar, como se os dedos do musico estivessem descongelando-se. Clarice arregaça as mangas e ajeita a mesa para um café para dois. Torradas frescas, pão de queijo(receita da avó) e geleia de morango, a favorita de Rafael, das toalhas de mesa a mais colorida.

Clarice pegou com cuidado a garrafa de café e foi levando até a mesa, segurando pela alça com uma mão, e embaixo da garrafa com a outra mão, escoltada por um pano de prato. Ela senta-se na mesa e fica em silêncio, totalmente inerte pelos pensamentos que se afogam, como um turbilhão colossal de águas passando por um ponto diminuto na cabeça de alguém- Das águas traduz-se sentimentos dos mais doloridos- porém Clarice não sabe de onde eles vêm, seus olhos doem a marca de saliva ainda está seca na boca, ali, delegando a inocência de uma que mulher sozinha. Ela leva uma mão ao rosto para limpar o resquício de noite, toca os olhos e estranha o inchaço monumental, uma vaga imagem lhe vem à cabeça, como um déjà vu, viu-se chorado em frente ao espelho da sala com o celular agarrado ao corpo, o nariz escorrendo e os cabelos quase arrumados para sair, esperando a noite com o namorado novo, que Rafael odeia com todas as forças, noite essa que nunca se concretizou como deveria ter sido, ou pelo menos planejada. Ignorou fortemente a cena e os olhos inchados. Remexeu forte a cabeça e sentou-se, e ali ficou por alguns instantes antes que o som do violão parasse por completo, ficando rarefeito como a névoa das manhãs quando começam a ser aquecidas pela luz do sol, pouco a pouco, não sobra mais nada, nunca sobra nem mesmo as pessoas.

-Filho, venha tomar o seu café, tem tudo o que você gosta. Filho... - Contraiu as sobrancelhas, receosa- Filho, me responda!

Clarice levantou-se abruptamente da cadeira e começou a chorar angustiada, indo em direção ao quarto do filho. Abriu a porta com um golpe, acendeu a luz gemendo baixo. Ninguém, a cama ainda desarrumada. Levou as mãos à boca, negando-se a chorar “Não... não...”. O telefone grita. Clarice move a cabeça na direção do som, as lágrimas vão caindo sofridas, tocando no carpe e fazendo um som pior que o sentimento, passando a impressão de ser sangue.

Com voz soluçante:

-AAA... Alô...

-Tia... a senhora está bem...

Não, Clarice pensou, porém não disse, ficou em silencio, soluçando.

-É que... - A moça tentou conter o choro que veio com força brutal.

Clarice desatou a chorar agarrada ao telefone, pensava “Não... não pode ser, foi só um sonho”. A moça do outro lado da linha começou a dizer, com palavras que intercaladas com soluços violentos:

-É que... Corpo do Rafael já foi liberado... - Engolindo as lágrimas - vamos seguir com o funeral?

Clarice largou o telefone, que caiu em câmara lenta, viu uma cena se passar diante dos olhos dela como um filme, o nascimento do filho, o amor da sua vida, a felicidade pretérita que não irá mais voltar.

“-Mãe, hoje é o aniversário do Paulão lá na Boate, posso ir com meus amigos?

-Filho... não sei, não acho que Boate seja lugar para...

-Mas mãe eu já tenho 18 anos!

A mãe tentou ser relutante, todavia o argumento do filho era mais sólido. Ela abaixa a cabeça que pesava. Pensa nas conseqüências e depois na independência do menino já homem.

-Pode filho, Pode sim...”

DIA 27/01/2013

Bego
Enviado por Bego em 03/06/2013
Reeditado em 26/02/2017
Código do texto: T4323714
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