JOANA                     
 
                        
 
            Joana era daquelas pessoas que causam antipatia à primeira vista. Desde que veio morar no condomínio, os comentários fervilharam. Diziam ter vindo de Passo Livre, distante oitocentos quilômetros da capital. O pai tinha morrido envenenado, quando Joana era pequena, o que a teria deixado desequilibrada. Tinham medo dela, por desconfiarem de lidar com feitiçaria, pois ficava trancada no apartamento, de onde exalava odor de coisas queimadas, gritava à noite e maltratava uma menina, que ninguém via, só os gritos.   

     Um dia, resolvi tirar a limpo algumas coisas. Não por interesse próprio, é claro. O que tenho com isto? Somente com o fito de acalmar o edifício. Mas, verdade seja dita, a história me fascinava, tinha um quê de mistério. Punha-me, então, a imaginar umas coisas que nem dá para contar. Andei até escrevendo umas histórias, cheias de maldades, das ilações que resultavam das fofocas ouvidas. Mãos à obra.

     Fui visitar Joana. Não contei para ninguém minhas intenções, nem mesmo para meu marido, que eu não sou louca. Já sabia o resultado. Mas precisava encontrar uma forma de entrar no covil da fera, sem causar suspeitas. Uma manhã, pus-me a fazer um bolo, quando a ideia foi penetrando, sutil e sorrateiramente. Coloquei um avental, coisa que normalmente não faço, dei uma salpicada de farinha de trigo e saí. Bati na porta. Esperei. Sabia que me observava pelo olho mágico. Abriria? O coração ao sobressalto com a audácia, porque a fantasia estava à larga. Abriu.

     — Bom dia, vizinha. Perdoe-me o incômodo. Estou fazendo um bolo e faltou ovo. Poderia emprestar-me um?

A mulher de banho tomado, cabelos úmidos puxados para trás, rosto sem pintura, mas os olhos brilhantes desmesuradamente abertos. E não me pereceu de susto, de terror, mas apenas satisfeita por poder fazer um préstimo à vizinha necessitada. Sorriu.


     — Pois, não. Por favor, entre. Já pego. É somente um? Olha, são fresquinhos. Comprei na feira, cedo. O dia está tão bonito. Gosto de sair, caminhar, por isto passei na feira. Se quiser, pode levar a caixa. Veja, comprei duas. Toma.

     Ufa, pensei. O que deu na mulher? Será que não vai mais parar de falar? O que estará me aprontando. Vai ver que tem premonição e sabia que eu viria aqui, com essa história de ovo e envenenou todos. Preparei meu melhor sorriso.

     — Muito obrigada, vizinha. Um só chega. Chega mesmo. É que gosto de colocar a quantidade que a receita pede e dei-me conta que faltava um.

     Peguei da caixa estendida e fui saindo, com a certeza de que descobrira minha história.

     Fiz o bolo. Mas ter entrado na casa da mulher uma vez era pouco. Queria fazer amizade, bisbilhotar, e parecia tão receptiva. À tarde, bati novamente na porta, com fatias de bolo, e uma vontade doida de que pudesse entrar e conversar. E consegui. Foi desse modo que passei a frequentar a casa, sem causar suspeitas. Assim me convencia, com as pequenas manobras que inventava.

     A antipatia inicial foi cedendo. Aos poucos, comecei a sentir carinho por ela e remorso por ter dado ouvido às fofocas e engendrado histórias de mistérios sobre a pobre criatura inocente. Contou-me a perda do pai, do marido, o abandono dos filhos, a solidão, a falta de amigos, a insegurança e o medo que sentia dos vizinhos, que a olhavam de cara feia.

     Pobre mulher. Parecia mais uma vítima da sorte do que uma megera. Apesar da tristeza, que transparecia no olhar e na fala mansa, conseguia manter um diálogo otimista, falar sobre assuntos variados, mostrar cultura e bom senso no que afirmava.
Assim, desarmou-me das suspeitas, e convivia bem com ela, que frequentava minha casa e, às vezes, partilhava da nossa mesa, mesmo que marido e filhos me desaconselhassem. 


     Joana havia mudado. Conquistara alguns amigos no condomínio, sorria, passeava, brincava com as crianças, mudara o visual, com troca de penteado, maquilagem e adereços. Que pena! Ficou sem graça, sem tititi e sem mistérios.
Veio o convite:

— Este final de semana, irei a Passo Livre. Ficaria contente de pudesses ir comigo.  Que tal?

     Não havia motivo, mas umas ideias passaram de relâmpagos na minha mente. Besteira, pensei. Joana já demonstrou ser uma boa pessoa, deixa isto pra lá.

        — Preciso consultar Edmundo. Se não se opuser, irei.

      E fui. Foram longas horas sentadas no carro. O passeio agradável, com conversas, paradas para lanches, pequenas caminhadas, algumas compras, até o hotel de Passo Livre.

         — Por que hotel? Pensei que fôssemos para a casa de teus familiares. Não está com saudade de tua mãe?

     — Quero ficar esta noite aqui, para descansarmos. Preciso organizar uns pensamentos que estão me azucrinando. Amanhã, cedinho, vamos para lá. Mamãe está velhinha, talvez já nem me reconheça, pelo que soube, e não quero incomodá-la a essas horas.

            Durante a noite, Joana teve pesadelos, gritava, com voz de criança, dizendo não ter sido ela, que a deixassem em paz. Depois, gargalhava: a culpa foi tua. Por que me bateu?  E tenho mais veneno para ela.


     Precisei acordá-la, para que não colocasse em pânico os hóspedes, tal a gritaria. Olhou-me como se não me reconhecesse e nem ao menos soubesse onde estava. Levou um bom tempo para voltar ao normal, embora restasse com um olhar parado, como se não visse o que a circulava.

     Novamente, aquela fantasia doida voltou a me apoquentar, acompanhada de medo, devido à distância e ao fato de me encontrar sozinha com a mulher, que parecia demenciada.
            Pela manhã, ainda havia vestígios do pesadelo: olheiras, olhar parado, falava pouco e mantinha a boca apertada, como se tivesse medo de dizer algo indevido. Dirigiu em silêncio. Respeitei, embora ficasse cada vez mais assustada, pensando em como cair fora, pedir socorro, voltar para a segurança do meu lar. Maldita curiosidade. O que eu tinha de me metar numa enrascada dessa?


     Chegando ao centro do vilarejo, enveredou por uma ruela esburacada e estacionou em frente a uma casa em ruína. Embora o sol estivesse brilhando, fiquei com a sensação de que o lugar era escuro, mal-assombrado.

Joana desceu do carro, circulou a tapera por duas vezes. Parecia um ritual. Depois estacou na minha frente, sem dizer nada, como se não me visse, debruçou-se sobre o banco do carro, enfiou a mão por baixo e pegou uma faca.


     Recuei, já disposta a correr, mas ela voltou-se e enveredou para os fundos da casa. Fui seguindo-a, a certa distância. Procurava algo. Sentou-se numa pedra e cavou. Ficou contrariada, por não encontrar o que procurava. Caminhou até a velha porta. De lá, olhando para a pedra, fez um “ah” e voltou a sentar, cavando mais para o lado.  Encontrou. Era um vidro, com a tampa apodrecida, e dentro dele um vidrinho. Limpou na roupa e colocou num bolso. Entramos no carro.

             A mãe recebeu a filha de modo estranho, embora tivesse demonstrado que a reconhecera.

- Por que vieste?

Foi a acolhida. Sem beijos, sem sorrisos, sem abraços. Entramos. Joana percorreu a casa depois ficou olhando o retrato o pai, pendurado na parede. Abaixo, numa prateleira cheia de pó, uma lata fazia as vezes de vaso, com um ramo de flor de plástico.

Sentia-me constrangida, como se tivesse entrado numa história de intrusa.  Como uma autômata, foi para a cozinha. Novamente a voz de criança: vou fazer uma sopinha, ta, mamãe?  Vai ficar gostosa. Papai gostou. Ele está feliz. Você vai ficar também.

            Quando Joana despejou o conteúdo do vidro na panela, fugi.
MADAGLOR DE OLIVEIRA
Enviado por MADAGLOR DE OLIVEIRA em 27/05/2013
Código do texto: T4312386
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