Coroa de Lírios
Despindo-se de seus pudores Dionísio tirou o cinto, e ainda um tanto encabulado olhou para o homem, desabotoou a calça, tirou-a e jogou-a de lado.
- A cueca eu também tiro?
O homem indiferente para com a situação ajeitava a lente da máquina – Sim, de preferência... – Dionísio virou-se de costas um tanto ruborizado, retirou a pequena cueca branca e a pendurou no porta-chapéus, vestiu a cartola que estava neste. Olhou-se no espelho e sorriu. Fazia frio no estúdio, “deve ser o ar-condicionado”, pensou declarando ódio à tecnologia, “muitos avanços, muita artificialidade” pensou que assim pensaria Gilberto. O homem caminhou até o pequeno e redondo aparelho de som, ligou-o. O acordeon distante lhe veio acarinhar as costelas com as pontas frias de seus dedos imaginários.
Olhou para a grande laca de vidro incrustada na parede e viu-se nu em pelo. A magreza rígida do corpo esguio, ainda em transição, a crueldade do tempo levando embora a infância. Assemelhava-se a uma figura de nanquim, desenhada em poucos traços, fina, comprida. Até pensou não ser belo o suficiente, mas as circunstancias o levaram a discordar. Afinal, estava ali, com o estranho que lhe abordara na avenida, “Umas fotos apenas, te descolo um trocado...”. Talvez ao sair dali comprasse uma jaqueta de couro, seria como o próprio James Dean descendo a Augusta forçando uma cara de tédio. Um cigarro entre os dedos, mesmo que não fumasse. Ou talvez atrás da orelha. Mas que diabos de musica era aquela?
– A coroa... , disse o homem apontando para uma coroa de lírios pendurada no topo do cabideiro. Dionísio obedeceu, deixando a cartola de lado. Os lírios envelhecidos já não tinham mais o aspecto vívido das flores, estavam amarelados, levemente murchos.
– O que estamos ouvindo? Perguntou cauteloso, como quem ouve palavra por palavra antes de proferi-las.
– É Piaf, você provavelmente não conhece. É novo demais.
– Isso não quer dizer nada! Rebateu inquieto, petulante. O homem sorriu e pediu que cruzasse as mãos nas costas, assim o fez. A câmera fez um rápido flash.
– É a primeira vez que você posa?
– Não claro que não, não é o primeiro que me aborda – mentiu Dionísio em um sorrisinho.
– Não me surpreende, é bonitinho... Deix’eu advinhar, não sou o primeiro a dizer isso, não?
Ambos riem.
Dionísio pensa no quão estava se arriscando ali, na casa de um estranho que o abordara na rua, no desvairamento de seu ato.
“Não tem cara de assassino, nem parece perigoso...”, pensou. O segundo flash. A ideia do perigo lhe agrada, de certa forma. As chances de o estranho ser um meliante de gênio ruim, “Se ele pensa em me matar, que seja agora, enquanto uso essa coroa de flores desmaiadas e toca essa valsinha melancólica...”. O homem poderia vir se achegando devagar, de forma felina, envolvê-lo na cintura e conduzi-lo naquela “valsinha” dois pra lá dois pra cá. Ou até mesmo em um tango. Aproximariam os rostos e Dionísio lembraria apenas de sentir o hálito doce do desconhecido e então ZAP, um corte no pescoço. E outro. E mais outro. E mais outro. E mais outro. E ele não pararia, entre gargalhadas frenéticas continuava a golpear de forma automática.
Quando a cena terminou em sua imaginação Dionísio riu, mas sentiu-se culpado por tê-la pensado, por duvidar do caráter daquele homem.
– Espreguice. Ordenou com o imutável olhar de sobriedade. Dionísio espreguiçou-se. Um flash. Outro. Mais outro. Mais outro. Mais outro. E mais outro, e mais outro. Fotografava agora no mesmo ritmo com o qual o esfaqueava. O dedo parou por um instante, o homem levou-o ao interruptor. Apagou as luzes.
– Ué, mas pra que isso agora? – Disse Dionísio, aflito, “isso é que dá pensar demais”.
– Olha, acho melhor eu ir, tenho hora pra chegar em casa... – Onde diabos estava o homem? E qual era mesmo o seu nome? – Que horas são?
– Dezesseis e cinquenta e dois. Agora vou te fotografar à meia-luz. Disse a figura surgindo no meio da mácula escura com uma luminária de haste flexível.
Dionísio sorriu aliviado, agarrado aos próprios braços – Pô, por um segundo eu pensei que...
– Que o quê? Interviu o homem.
– Nada não. Às vezes a gente pensa o que não deve... ¬– ajeitou a coroa de lírios na cabeça – Você poderia me fotografar com uma jaqueta de couro, uma coisa meio James Dean, meio rebelde dos anos 60, hein? Seria demais... Ah, esqueci de te perguntar, o que vai fazer com as fotos depois de reveladas? Vou poder ficar com alguma?
O homem caminhou até a porta, fechou-a. Voltou-se ao jovem e lhe afagou os cabelos, disse num tom de voz quase sussurrante – As melhores vão para um mural muito especial que eu tenho.
– E as piores?
O homem sorriu lhe segurando o queixo.