Três amores

Poderia parecer muito estranho aos outros, mas ele continuava vivendo como se ela ainda o estivesse esperando. Ela sempre esperava por ele; agora, ele é que, de uma forma inexplicável, esperava por ela. Ele não dizia nada a ninguém, nem às filhas. Ele nunca tocava no assunto. Tocar no assunto seria o mesmo que falar que ela morrera; isso ele não queria. Era melhor não falar, não tocar no assunto; assim, ela não teria que morrer novamente todas as vezes que alguém falasse de sua morte.

A morte de Sophia fez dele outro homem. Os conhecidos diziam que ele havia se tornado um homem melhor; diziam isso por não conhecê-lo; e por conhecê-lo nunca diziam isso a ele. Quando alguém tocava no assunto ele simplesmente saía silenciosamente. Na verdade ele tornou-se pior, um homem infeliz, amargurado e triste. Mantinha a postura porque sustentava a posição de arrimo emocional da família, muito embora precisasse ajuntar os seus cacos todos os dias. Sua família via isso, mas nunca diziam a ele, apenas o consolava com carinho e afeto. Foi outra grande batalha não entregar-se ao álcool.

João, o vendeiro, olhava-o sorridente, tentando agradar, tendo um copo na mão e uma garrafa na outra mão, pronto a servir-lhe uma bebida.

___Vai beber alguma coisa agora, senhor Joelbert?

___Não, senhor João. Eu quero é uns doces daqueles ali. Um, eu vou comer agora. Vou levar para as meninas também!

João, o merceeiro, não conseguia conter a satisfação cujo sorriso constante em sua boca o denunciava; o que não apagava o seu aspecto de sujo, cujos bigodes compridos amarelados e descuidados entravam-lhe pela boca. Quando comia, tornava-se repugnante; mas, nem por isso deixava de ser um bom homem. Ele estava muito alegre e animado, a maioria dos fazendeiros já havia vendido as safras aos comerciantes que vinham de fora. Havia muito dinheiro circulando na cidade e João estava recebendo dos fazendeiros e sitiantes o pagamento pelo fornecimento das provisões ao longo da entressafra. Muito embora os fazendeiros fossem homens de honra, não deixava de ser um negócio de risco; pois, caso houvesse alguma praga, ou o tempo os traísse, a safra fracassava, levando o infeliz à dificuldade. Sem crédito, esses eram obrigados a vender pedaços das terras, animais, até as filhas.

Muitos não suportavam essas crises, indo à falência, e a sua fazenda à bancarrota. Não faltavam fazendeiros que, abastados, suportavam com certo contentamento alguns desses reveses da natureza. Para eles o fracasso de uns era o seu sucesso. Sem piedade, como meros negócios, eles solapavam as terras e as propriedades dos desafortunados; anexando-as, sem escrúpulos, a preço de banana.

___Tem certeza que não vai beber para comemorar a safra? - Insistiu João.

___É assim que eu comemoro!

___E as coisas que o senhor pediu, quer que ponha na carroça, de uma vez?

___Pode sim, eu vou à barbearia e já volto!

___Mas nem um gole, senhor Joelbert?

Joelbert não percebera o homem que os observava, ouvindo-lhes a conversa. Ele era um estranho ao meio; o que não era nada estranho, porque nessa época de safra, muitas pessoas vinham ao povoado em busca de oportunidade de negócios; comprar ou vender.

A maneira como lhe falou pareceu-lhe mais uma insinuação. Joelbert, cujos olhos apontavam para o chão, levantou-os lentamente, olhando o estranho a partir dos pés, cujas botas bonitas e brilhantes indicavam que ele não era da região e nem mesmo era do seu ramo. Deteve-se olhando-o nos olhos, o qual baixou a cabeça o suficiente para que a aba do seu chapéu impedisse a sua visada de ver-lhe os olhos; era uma ostensiva fuga.

Os olhos são mesmo as janelas da alma. Pelo olhar é possível, ainda que intuitivamente, saber algo da personalidade, caráter e intenção de alguém. Não há como explicar isso exatamente; apenas é possível saber, como se as almas se vissem, reconhecendo trevas ou luz na essência de cada uma delas.

O estranho mantinha uma elegância diferente, a qual, mesmo sem lógica explicação, aparentava-se à presunção. Havia um contraste com os outros, os quais eram homens austeros, homens rijos forjados pelo tempo e pelo trabalho pesado do campo. Mãos grandes e pesadas; roupas rudes e surradas. A elegância estava em vestir-se assim, sinal de trabalho e dignidade; motivo de orgulho de quem as ostentava. No rosto, olhar de contentamento por tirarem da terra o seu pão.

Sábado era o dia em que a maioria dos fazendeiros, capatazes e peões iam ao povoado em busca das vendas, grandes comércios que vendiam de tudo. Ali encontravam provisões para a semana ou mais um mês. Alguns compravam durante todo o ano para pagarem com a venda da safra, era comumente aceitável tal prática, sem que houvesse um sentimento de favor ou caridade de quem vendia. Eram negócios, e bons negócios para todos.

___Não, obrigado. Eu não estou bebendo!

Virou-se e saiu.

___Mas eu insisto. Ou o senhor vai fazer desfeita? Eu quero te pagar uma bebida!

Mostrando mais tolerância que humildade, Joel desculpou-se.

___Não foi minha intenção; desculpe-me. Daqui a pouco isso aqui vai encher de gente, o senhor terá muita companhia para beber!

Joel tinha cinqüenta e seis anos e conservava postura e força. Não era alto, mas tinha troncos largos e fortes. Seus braços combinavam com as suas mãos que eram grandes e rudes. Seu rosto era quadrado e o pescoço curto e forte. O seu oponente era mais para magro que para forte, aparentando quarenta anos. Se Joel o socasse, certamente ele não se levantaria mais.

___Bem que me falaram; - provocou-lhe o homem – o senhor não bebe com pobres!

Joel virou-se e saiu, sem responder. Em seu alforje, pendurado em seu ombro, estava a maior parte do dinheiro da safra. Ele já pagara o armazém incluindo a compra que fizera no dia. Havia dinheiro suficiente até a próxima safra, sem precisar comprar a crédito, assim seria mais fácil capitalizar. Ele deveria voltar à sua fazenda, mais tarde voltaria com as meninas para que elas fizessem compras. Nem foi à barbearia, apenas acabou de recolher o que precisava e voltou para casa. Ele foi angustiado com a provocação que o estranho lhe fizera; teve um pouco de raiva de si mesmo por não tê-lo socado. Mas era melhor assim, já fora brigão em outros tempos. Agora não bebia nem brigava mais, desde que Sofia falecera.

Joel seguia a estrada afastando-se do povoado. A estranha conversa do atrevido forasteiro o aborrecera, e ele ainda remoía dentro de si o tenso e rápido diálogo, se consolando, imaginando como teria sido bom se ele tivesse socado o tal homem. Logo depois de tê-lo socado em seus pensamentos, se arrependia; mesmo da atitude imaginária; meneava a cabeça expulsando esses pensamentos, sorria; e seguiu o seu caminho.

Distraiu-se lembrando quantas vezes ele e Sophia fizeram aquele mesmo caminho. Ela gostava de ir ao comércio e comprar coisas bonitas para as meninas. A lembrança tornou-se tão presente que ele sentiu o agradável perfume que ela usava. Quantas vezes, desde jovens, se beijaram longamente por aqueles caminhos, enquanto os cavalos, sabedores do caminho de casa, puxavam a carroça sem cessar. Ele se alegrou por um pouco fingindo que ela estava ao seu lado. Ele não olhou ao seu lado para não se frustrar; pois, no fundo sabia mesmo que ela não estava assentada ali, mas apenas em seus delírios. Entristeceu, sofreu. Embora tão rijo, tornara-se extremamente emotivo desde a sua morte. Chorou. Pela primeira vez suas filhas o viram chorar, e foi ao lado do caixão.

Dizem que Juliano chorou também. Não seria verdade, ele não tinha o direito de chorar por ela, não na frente deles.

Juliano sempre foi apaixonado por ela; mas, desde que ela e Joelbert se conheceram, acabaram-se todas as chances de Juliano. Considerado mais bonito e, de fato, mais rico, Juliano acreditava que isso bastaria para ter o amor de Sophia. Como Sophia amaria Joel e não Juliano? Como ela poderia preferir um homem tão rude e não Juliano, um verdadeiro cavalheiro? Por mais que ele tentasse ser agradável, havia nele algo que a repelia; como se ele fosse um homem de caráter artificial; alguém que estaria se esforçando todo o tempo para ser o que não era. Sophia podia ver-lhe a alma pela janela dos olhos, o que revelava algo estranhamente sombrio. Ela o sentia como um predador que, rodeando a presa, lhe favorecia com a dúvida fingindo não querer atacar, mas que o faria assim que a vitima se sentisse segura. Ela pôde identificar-lhe na alma traços que o caracterizavam como um homem fútil, devasso e asqueroso. Não obstante toda a rudeza de Joel, ele conseguia encantar Sophia, fazendo-a sentir-se como a única mulher em todo o mundo. Ninguém acreditou que ela preferiu Joel a Juliano; mas ela sabia muito bem que Joel poderia amá-la e fazê-la feliz; como toda mulher precisa ser amada para ser feliz.

Desde que percebeu haver sentimentos entre Sophia e Joel, Juliano passou a odiá-lo; fazendo-lhe concorrência em todos os negócios, pondo todos os estorvos possíveis em seu caminho.

A égua que puxava a sua carroça estava tão acostumada àquele caminho que Joel poderia se distrair, divagando; ou até dormir.

Repentinamente alguém saiu de trás de uma moita de arbustos, interceptando-o. Era o estranho que, empunhando uma espingarda de dois canos, apontava-a em sua direção.

___Não deu para engolir a sua desfeita!

___Pára com isso! - Respondeu-lhe Joel puxando as rédeas, parando a carroça. - Não houve desfeita alguma. Se houve; perdoe-me, não foi a minha intenção!

___Há certas atitudes que não tem perdão!

Quando o homem falou isso, aproximando-se a dois metros, Joel levou a mão lentamente à cintura, em busca do seu revólver. Ele precisava ser rápido; pois, percebera que o cão da espingarda do seu desafeto estava recuado. Quando Joel pegou o cabo do revólver, a espingarda calibre 12 disparou.

Aves assustadas revoaram aos bandos.

(Extraído do meu romance: Três Amores)

Naassom
Enviado por Naassom em 21/05/2013
Código do texto: T4302280
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