O Enigma do Diário
Capítulo II: Criador e Criatura
- Mais alto, pai.
Enquanto empurrava a filha no balanço, o homem pensava nos acontecimentos da semana anterior. Tudo parecia surreal. Tentou ler o diário assim que chegou em casa, mas as páginas estavam em branco, como uma tela por pintar. Então se lembrou da senhora e chegou à conclusão de que ela poderia ser fruto da sua imaginação, já que os filhos nunca mencionaram-na.
- Pai, olha só, quebrei meu recorde! - gritava o mais velho enquanto corria ao redor da praça.
- Muito bem. - respondeu mecanicamente - agora é sua vez de empurrá-la. Mas dessa vez tome cuidado. Vou buscar uma água pra vocês.
O homem sentou-se no banco e enquanto procurava pela garrafa deparou-se com o diário. Por estar entreaberto, podia-se observar que havia anotações nele. Não é possível, confidenciou para si.
Aqui começo a escrever uma história. É uma história curta, despretensiosa. Quero apenas dar forma ao que tenho em mente, dar luz a seres que caminhem além do que a humanidade consegue ir, que vejam e sintam os tormentos, as dores e as emoções em sua forma mais profunda. Depois dessa experiência tudo será como antes.
- Mais alto!
Ontem me despedi de mais um. No meu mundo não há velório, nem enterro, nem flores, nem lágrimas, nem saudades. Não há nascimento nem aborto. Há a criação, a experiência e a despedida, apenas.
- Alto!
Todos eles estão aqui. Surgem e desaparecem nesse lugar. Mas não vão por completo: ainda ouço sussurros, vejo sombras e sinto suas emoções. Não, eles não são fantasmas, são meus filhos, minha criação, minha imagem e semelhança, são autobiográficos, são o que sou, o que sinto e penso.
- As pessoas dizem que certas histórias são tão reais que os personagens podem ganhar vida. Você concorda?
E lá estava ela ao seu lado, observando o diário que mais parecia um livro. A senhora deu um sorriso para as crianças e o mais velho acenou. Parecia bem real, era real, o homem constatou.
- E então, você acha que um personagem pode ganhar vida se sua história for verossímil?
- Eu não sei.
- Eu acho que pode, embora o mais importante seja o criador e não a criatura.
- Como assim?
- O escritor, estou falando dele. Um bom personagem depende de um bom escritor.
- Pai, ela aprendeu a ganhar impulso!
- Dada a sociedade que somos, quem o senhor acha que seria um escritor exímio? Deus ou o Diabo?
- Olha, papai, estou tocando o céu! Vem aqui ver de perto!
Ao notar a perplexidade e hesitação do pai, a senhora disse que continuaria a conversa noutro dia e, sem que ele percebesse, foi embora novamente.
Ver capítulo III - parte final