À Deriva

- Oi pai!

- Oi Cris, como está?

- Mais ou menos eu acho, a mãe não está muito bem, de vez em quando ela se tranca no quarto e fica lá por muito tempo, às vezes eu a ouço chorar. Eu gostaria que a mamãe voltasse a ficar feliz como era antes, mas não consigo, ela não me escuta, se ao menos ela pudesse te ver também.

- Cris, às vezes só vemos aquilo que queremos ver, você entende? Sua mãe precisa esquecer-se do que passou, para ela é mais difícil relembrar, mas não é só por sua mãe que você veio até aqui não é filho?

- Não, quer dizer, por ela também, mas foi mais porque eu queria te ver, sabe, o Rafael vai dar uma festa de aniversário na casa dele, mas a mãe não quer ir comigo, eu pensei se você não gostaria de ir.

- Acho melhor não, como você ficou sabendo dessa festa? Foi na escola?

- Foi ele chamou a mim e mais alguns garotos, mas porque não posso ir?

- É difícil de explicar filho, vamos tentar novamente, como você chegou até aqui?

- Vim caminhando ora! Eu lembro o caminho, não é tão longe da casa da mamãe.

- E o que tinha no caminho filho, como estava o clima?

- Não sei, acho que estava nublado, por que está perguntando isso agora?

- Filho, você se lembra do motivo que eu e a mamãe tivemos para não morarmos mais juntos?

- Sim, quer dizer, mais ou menos, eu lembro que foi depois do acidente, depois que ela começou a ficar triste.

- Então você lembra do carro, nós fomos à festa de aniversario do... de um dos seus amiguinhos lembra?

- Não! Não me lembro disso! Pai, estou com medo, está ficando frio e escuro, o que esta acontecendo pai!

- Você lembra Cris? Eu, você e a mamãe fomos à festa do Rafael, era longe e tivemos que ir de carro, já era bem tarde quando voltamos lembra. E então aconteceu.

- O acidente... Pare de me fazer lembrar pai, eu não quero, me sinto estranho quando você me faz lembrar dele, está muito frio aqui dentro você não acha?

- Havia uma menina na pista, e o papai teve que desviar lembra? Você esta no banco de trás sem cinto, porque você sempre esquecia.

- Sim, eu sempre me esqueço do cinto, o carro deslizou e bateu de frente em uma arvore depois eu não lembro. Um enterro ou algo assim, acho que era eu, pai, eu morri?

- Sim filho, compreende agora porque não pode ajudar a mamãe e nem ir à festa?

- Não! Não pode ser, estou falando com você agora! Falei com os garotos na escola mais cedo, você está errado, é mentira!

- Filho, eu te amo, mas você tem que nos deixar seguir em frente, não podemos mais agüentar, você precisa ir para o céu.

- Mas, mas... Não, pai, estou confuso... onde estamos...por que está tão frio?

Durante algum tempo o menino se manteve imóvel em sua perplexidade, mexendo a cabeça e o corpo agitadamente de um lado para o outro em negação em um ritmo crescente, o homem, que ostentava uma barba por fazer de alguns dias esperava ansioso a resposta, mesmo sem poder enxergar muito no quarto escuro e empoeirado onde se encontravam. De repente o menino parou, estancou com se estivesse paralisado por algo, o homem arregalou um pouco mais os olhos marejados e esperou. Alguns minutos depois o menino abriu um sorriso desconcertado e olhou diretamente o homem.

- O Rafael vai dar uma festa de aniversário na casa dele, mas a mãe não quer ir comigo, será que você gostaria de ir?

A resposta foi estancada por uma súbita onda de lágrima e soluços, o ciclo se repetia tantos anos desde o acidente, mas o menino sempre viria até o homem e o convidaria a uma festa, não havia saída, um triste destino para duas almas torturadas.

- Claro filho, claro.

- Valeu pai! Vai ser demais todos os garotos vão estar lá!

O menino abraça o pai, um abraço apertado de afeto, o homem o retribui em pranto silencioso, quando se soltam, o menino se afasta e se entrega a escuridão do quarto, porém antes que todo o as trevas o engolissem ainda se escuta sua voz, como que num sussurro

- Eu te amo pai.

- Eu também te amo filho.

Responde o homem, Enxugando o rosto com as mangas de uma camisa amarelada.