Vinho e Primavera

Abri a porta devagar, tentando abafar o ruído que insistia em rasgar o silêncio daquela madrugada fria. Entrei lentamente. Em passos leves; acendi a luz, e vi o que parecia uma projeção fantástica dos meu olhos: ela estava estirada, pálida , contrastando sua pele angelical com o lençol vermelho-sangue; um de seus braços estava caído para fora da cama, e se eu não percebesse as oscilações do ar enchendo seus seios, deduziria que estivesse realmente morta.

Me aproximei lentamente do seu corpo. Analisando tudo com cautela. O álcool, a vida, o tempo. Sentei na cama e analisei-a de perto. A janela aberta trazia uma brisa fina que tocava sutilmente o tecido leve das cortinas. Cheguei mais perto. Escorreguei meu olhar pelas suas curvas; estava fissurado: ''linda como uma primavera morta'', escutei sair baixo, do fundo da minha garganta e do abismo da minha alma.

Ela abriu os olhos devagar e me fitou calada. Eu quase me perdi no labirinto cristalino que morava dentro dos seus olhos, que agora pareciam estar mais perto; pareciam estar dentro de mim. Não tive coragem de dizer uma palavra. O olhar dela era tão astuto que quase cortava a minha pele. O rosto lindo, sem nenhuma mancha, sem nenhuma marca, apenas com os lábios mergulhados num batom.

Ela levantou.

Não colocou nenhuma roupa, e eu permaneci imóvel acompanhado-a com os olhos. Foi até a janela e acendeu um cigarro. Olhou para fora, debruçada. Eu a vi toda de costas. Virou-se, astuta, sedutora... Me olhando por inteiro, dando intercaladas chupadas no cigarro. Escorregou as mãos pelos cabelos que se derramavam pelos ombros como cascatas de cobre, soltando a fumaça que saía em finos espirais e enevoava todo o quarto. Ficamo-nos encarando eternamente. Ela jogou o cigarro fora e veio caminhado lentamente na minha direção. Eu continuava parado, curioso, sem hesitar; observá-la era como sentir o coração parar e voltar a bater a cada segundo; ela andava como um pavão que exibe suas penas coloridas. Mas eu estava seguro. Segurou no meu rosto e me beijou como um demônio que quer comprar uma alma. Descolou lentamente os lábios dos meus. Eu ainda sentia o gosto dela. ''Por que tu somes por tanto tempo?'', ela disse, rasgando levemente o silêncio da madrugada. ''Ainda não sei responder'', eu disse, quase sem conseguir. " E por onde esteve?", ela continuou, com um brilho malicioso no olhar. "Procurando o horizonte da minha vida, que perdi por tua causa", eu respondi, com a voz fraca. Ela sorriu e me beijou novamente. Eu estava sedado pela sua saliva densa e quente: eu me afogava na sua boca. Ela estava me matando, e sabia; e gostava. Apertava a minha nuca, mordia minha língua; me arranhava com suas garras de felina jovem... Era doloroso, mas eu nunca pedir-lhe-ia que parasse... Nunca!

Álvaro Augusto
Enviado por Álvaro Augusto em 19/05/2013
Reeditado em 03/01/2022
Código do texto: T4298345
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