O desencanto da chave

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“Eu me lembro como se fosse hoje” – inicia o velho Chronos. As duas filhas, acostumadas aos causos do pai, entreolham-se, cúmplices, num código bem familiar. Percebendo que a inspiração se incorporaria naquele exato momento, ajeitaram-se no sofá e, atentas, esperam a narração. Loah, a mais velha, pensa: ‘Qual será a história de hoje... ’. A caçula, entendendo a interrogação estampada no rosto da irmã, apenas sorri.

Chronos, alheio ao divagar das filhas, continua:

– Avânio nasceu em berço esplêndido... – Esse é o primeiro comentário. Havia no tom da expressão o peso reflexivo das reminiscências. O homem fecha os olhos diante das filhas.

– Continue! Por que o senhor parou? – incentiva a mais nova.

– Ele nunca precisou de sacrifícios, tendo aos pés tudo o que desejava. – prossegue o introspectivo pai, como se o enredo estivesse sendo elaborado naquele instante, precisando de fôlego para sobreviver e exteriorizar-se. – Era pedir e os pais atenderem; exigir, e os vassalos da fazenda executarem, inclusive ordens absurdas. Seu Príncipe, avô de Avânio, era o dono da Fazenda Estância, a mais conhecida da região. Até os sonhos pareciam domados pelos caprichos do menino. E ele cresceu.

– Pai, o senhor conheceu a família do Seu Príncipe? – Pergunta a caçula, curiosa.

– Sim! Seus avós paternos foram caseiros de lá.

– Que legal, pai! – Comenta a outra filha, cruzando as pernas na poltrona. – O vovô Romualdo também estava em todas! – As irmãs se abraçam e sorriem. Os olhares autorizam; o pai esboça saudoso sorriso e...

– O avô de vocês contava que no dia do aniversário de doze anos de Avânio, o menino fora flagrado bisbilhotando, pela fechadura da porta do quarto de hóspedes, as primas que vieram da capital para a festa. O fato causou alvoroço, mas o garoto saiu ileso depois que o patriarca da família, orgulhoso, anunciou que era o alvorecer da puberdade, o despertar da masculinidade.

– Que idiota! – Esbraveja a mais velha das filhas de Chronos.

– Não fiz nada, ora! Não me chame de idiota, não! – Sobressalta-se a mais nova, sem entender.

– Não foi com você, princesinha! – A irmã, tentando contornar a situação, dá um beijinho na face da caçula. – Ainda hoje é assim, pai!

– Avânio se tornou adolescente mimado. Namorou. Foi pai ao completar quatorze anos e avô aos trinta e dois. Tudo muito rapidamente.

– Nossa, pai! Ele morreu tão cedo! O vovô morreu velhinho, não foi? – comenta Loloh, a filha mais nova.

– Seu avô, o saudoso Mundinho, como era chamado pela avó de vocês, morreu com noventa e oito anos. Eu já tenho quarenta, beirando os quarenta e um anos de idade, e Avânio, para que entendam como ele morreu cedo, é apenas recordação para os filhos, os amigos, os familiares e o neto.

– Tenho arrepios só de pensar a vida sem ter um pai por perto... O que aconteceu com ele? Por que morreu tão cedo? – intervém Loah, pensativa.

– Com o estardalhaço da espiada pela fechadura e a anuência do Seu Príncipe, Avânio se tornou especialista em futricar a vida dos outros, achando a mais natural e gratificante das ações humanas.

– As virtudes e os vícios são inseparáveis do homem. O que cultivarmos mais intensamente sufocará o outro. – Comenta a filha adolescente.

– Exatamente. Em todas as investidas de Avânio havia facilitações, jeitinhos. No trabalho, que conseguira graças a uma forcinha do pai, olhava as amigas com bastante malícia; quando visitava alguém, antes de tocar a campainha, olhava pela fechadura para verificar se tinha gente em casa... Até que um dia, no mesmo buraco da fechadura por onde vira as primas, Avânio tenta observar os pais discutindo.

– Naquele tempo, pai, os pais já brigavam dentro de casa? – Admira-se a filha mais nova.

– E você, sua mocinha, quando casar, parece que vai brigar muito! – Brinca a outra, fazendo cócegas na barriga da caçula. – Continue, pai!

Chronos respira fundo, buscando inspiração, e prossegue, parcimoniosamente:

– Ele se aproxima e põe um dos olhos no buraco da fechadura. Observa D. Carlota sentada e o pai dele, o Dr. Justus, gesticulando, com a mão em riste, aparentando insatisfação. Ao tentar aproximar-se um pouco mais da fechadura, o olho de Avânio é sugado para dentro da porta. Ele se desespera. Tenta soltar-se, mas as imagens e os sons parecem transitar entre os gritos do pai e as recordações da infância. Ele vê as imagens das primas, as trapaças na escola, os caprichos e os maus tratos com os empregados, o péssimo pai que tinha sido, as benesses facilitadas pelo avô, o enterro da avó que deixou de ir por estar de ressaca da embriaguez do dia anterior.

– Que legal! Deve ser mais que demais ver a vida assim, passando rapidamente como num túnel do tempo. – Comenta a pequena Loloh, dando um cheiro na face da irmã. – Não é Loah?

Chronos sorri, abraça-se às duas filhas, e tece novos e refinados fios que engendrarão novas miríades à narrativa:

– As imagens e os acontecimentos vão se sucedendo e Avânio tem a impressão de estar sendo consumido. Depois de rever cenas horripilantes – que pareciam maravilhosas até então – ele é jogado longe da porta. Depois do susto, ao tentar tocar o olho que estava preso, o braço passa no vazio – tocando a imaterialidade.

– Eita, pai! Estou arrepiada! – diz a mais velha das filhas, passando a mão por sobre os pelos do braço.

– Pare de me fazer medo, sua chata! – é a resposta da pequena. Aproveitando a ocasião, Loloh belisca a irmã e, como a pedir perdão, pisca o olho, mandando um beijo.

– Posso continuar, mocinhas?

– Pode, claro! – respondem ao mesmo tempo.

– Desde então – diz o narrador para as filhas – procuram por Avânio. Dizem que ele vaga pelos arredores do mundo, reaparecendo quando falam sobre ele... E surge pela fechadura da porta, de onde observa tudo.

De repente, todos se entreolham. A porta da entrada da casa está sendo aberta. Rodam a fechadura. As duas garotas se abraçam. O pai está imóvel. A porta é aberta...

– Boa noite!

– Oi, mãe! – Grita a pequena. Que bom que a senhora chegou!

Juazeiro do Norte-CE, 18 de maio de 2012.

11h15min

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Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 08/05/2013
Código do texto: T4279545
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