Luena de Angola.
Luena , escrava levada de Angola para a Ilha da Madeira durante a grande exploração de cana-de-açúcar naquele arquipélago, e a seguir para Pernambuco. Era considerada a quilamba pelos demais da senzala, a guia espiritual e conselheira. Socorria a quem compadecesse da alma e dos maus tratos infringidos e fazia os rituais religiosos em lugares secretos da roça de cana ou junto à praia; celebrações estas proibidas pelos brancos e jesuítas locais. Deslocava-se de noite e fazia suas orações junto a reentrância de alguma falésia, sempre com temor de estar sendo observada. Ao retornar para a fazenda acalentava aos sofridos escravos com a mensagem de que havia proferido os pedidos e agradecimentos daqueles que a solicitavam entregar aos deuses da África. Na manhã seguinte de uma destas furtivas evasões da fazenda, Luena e tantos escravos estavam a cortar cana numa das roças sob o olhar atento de vários feitores, estrategicamente posicionados. Um deles chegou a cavalo e parou em frente a um dos vigilantes e disse-lhe algo que o fez menear a cabeça afirmativamente e gritar em direção à Luena, apontando-lhe o dedo.
- Vai já à casa grande. Dom Feliciano mandou. Ande rápido.
Luena deixou o facão em cima de uma feixe de canas e pôs-se a caminhar em direção à estrada.
- Vai com a mão vazia, negra? Leve um feixe – insurgiu o feitor.
Luena retornou alguns passos, amarrou o feixe com uma corda e colocou-o por cima da cabeça elevando o enorme volume como uma formiga carrega uma folha desproporcional ao seu corpo franzino.
Ao chegar próximo à entrada do casarão desviou para a casa de moagem afim de lá pousar o feixe. Descarregou e dirigiu-se à frente da casa grande. Desde que havia sido autorizada a sair da roça, presumia o que iria acontecer. Nunca um trabalhador era dispensado da roça se não fosse por alguma repreensão; e esta vinha acompanhada dos castigos físicos, o chicoteamento no pelourinho em frente à morada do senhorio. O tronco, onde se agrilhoavam os castigados ficava em frente à varanda da casa de Dom Feliciano, o proprietário. A escrava Luena, assim que se aproximou, identificou as figuras em pé de Dom Feliciano e o Padre Justino Malafaia se escondendo do sol abrasador, enquanto os olhos alertas de Luena se davam conta do amontoado de objetos ao pé da escada da varanda. Alguém a seguira até ao caminho onde fazia as orações aos seus deuses e trouxera os objetos de culto para Dom Feliciano como prova de desobediência. Luena interrompeu sua marcha permanecendo em pé. Os dois homens, seguidos pelo feitor que andava a cavalo, vieram em sua direção. O padre vestia seu hábito preto clerical, um enorme crucifixo de ouro ao peito e tinha um livro juntamente com um frasco de prata à mão, quando deu iniciou à sua inquisição.
- Mulher, todos aqueles objetos de feitiçaria são teus? – e indicava os búzios, tocos de vela, flores e um prato de farinha de milho cozido.
Luena, com expressão altiva limitou-se a movimentar a cabeça em tom afirmativo. O padre pôs-se tão perto de seu rosto que chegavam a sentir o hálito um do outro. Falou com extremo rancor estampado na voz.
- Dom Feliciano havia-me relatado de suas práticas do diabo e digo que deves parar já com isto, em nome de Jesus Cristo, o nosso senhor – e fez-lhe o sinal da cruz.
Luena tinha o olhar fixo no padre e sabia que o castigo do tronco viria a seguir. Dom Feliciano somente dirigiu um olhar para o feitor e este interpretou de imediato a ordem para iniciar a tortura. Avançou bruscamente para Luena a fim de levá-la pelo seu braço ao tronco fixado na terra, ao que ela levantou a mão em riste, surpreendendo-lhe com o ato e deixando-o por momentos anulado com seu olhar profundo e seguro. Abaixou o braço, caminhou lentamente para o tronco, desceu a camisa surrada deixando os seios à mostra, alçou as algemas às mãos e olhou desafiadoramente para os algozes. Isso os fez admirá-la intimamente, acostumados aos pedidos e choros de clemência dos escravos que eram açoitados naquele tronco. Outras três escravas interromperam o trabalho na moagem de cana e vieram observar aterrorizadas, em silêncio, a cena junto à porta do edifício onde estavam. Tinham as mãos nervosamente a se esfregarem por verem Luena a ser conduzida ao açoite. O padre abriu o livro que tinha em mãos e iniciou palavras em latim, ininteligíveis a todos presentes, analfabetos da própria língua, quanto mais o latim, enquanto o feitor se posicionou em seu lugar. Este sorriu de satisfação. Lançou para trás o longo chicote de couro artesanalmente feito para esta circunstância e o projetou-o às costas nuas de Luena. Ao primeiro estalo e gemido de Luena a voz do padre ecoou no ar.
- Audi, maledícte sátana, adjurátus per nomen aéterni Dei,
O primeiro contato do chicote faz contrair todo o corpo de Luena sem tirar o olhar para o padre ao seu lado. As palavras do Rituale Romanum prosseguiram com furor.
- et Salvatóris nostri Jesu Christi Filli ejus,cum tua victus invídia, tremens geménsque discéde .
A tortura começa agora a ganhar compasso adágio com a segunda chicotada que estala e tira da voz de Luena um gemido a mostrar-lhes os dentes, as mandíbulas apertarem-se.
- nihil tibi sit commúne cum servo Dei – aumenta o tom de voz o padre.
Com a terceira chicotada fica nítido o tempo entre uma e outra chibatada e elas se tornam previsíveis, enquanto a voz do padre se inflama entusiasmando o feitor, que lança com força o cabo do chicote de vários nódulos trançados. Isso lhe dá prazer. Para ele o assobio que rasga o ar é música. Luena tem os músculos contraídos e sente o sangue a escorrer-lhe pelas costas e uma sede desértica se instala na garganta, o organismo se inflama de calor e dor, as pernas começam a ceder. A tortura prossegue por várias chicotadas entre as palavras de exorcismo do padre.
- et benedícat nomen sanctum ejus in sáecula saeculórum – e joga-lhe salpicos de água benta; aguarda propositadamente por mais duas chibatadas e conclui.
- Amen.
A última palavra da reza é reconhecida pelo feitor e este cessa os movimentos. O “Amén”, serve-se como ordem de encerramento. Queria bater mais, mas prefere não sobrepor-se ao sacerdote. Luena tem os olhos fechados, a respiração ofegante e encosta-se ao tronco numa aflição de tentar não cair e subjugar-se à inconsciência. Urina-se de dor. E as escravas que assistiam podem vir agora ao seu encalço e a tirá-la dos ferros que a prende. Um menino de 5 anos vê a cena, e grita.
- Mamãe !
É Rodrigo, filho da sinhá, que não teve leite quando o pariu, mas que Luena amamentou e tratou como seu o tivesse saído das entranhas.
©dalmirlott