O Ritual
Uma velha bruxa, miúda, delgada como uma raposa, encanecida; caminhava sorrateiramente, às sombras, fugindo do esplendor lunar, trazendo sob a sua capa uma criança do sexo feminino, com dez meses de idade. Era final de outubro de 1590. Espreitando argutamente com os seus olhos pequenos e sombrios, ela adentrou o pobre vilarejo furtivamente, pela madrugada, em busca da casa em que se daria o ritual. Uma sombra gigantesca se projetou na estreita rua da vila, assustando-a; fazendo-a recuar e recostar-se a uma das choupanas, com o fim de não ser vista. Percebendo o vulto da velha, o guarda do vilarejo sacou sua espada fazendo reluzir o reflexo da lua em sua lâmina, e adiantou-se:
___Quem está aí? Pare!
Sem poder se ocultar, a ofegante bruxa parou, dando-se a ver claramente. Ainda de espada à mão, o guarda aproximou-se.
___Sou apenas uma velha a procura de pousada! - Respondeu-lhe a velha, cabisbaixa.
Para piorar ainda mais a situação, a criança soltou um leve gemido. Assustado, o guardião recuou e ergueu a espada em guarda alta; retirando o capuz da cabeça da velha com a ponta da espada, a fim de enxergá-la melhor.
___Calma, meu senhor, é apenas uma criança, minha netinha, disse-lhe a bruxa, descobrindo a cabeça da criança.
___Aonde a senhora vai? O que faz a essas horas na rua? Conhece alguém neste vilarejo?
___É claro que sim, aproxime-se, veja se conhece este nome!
A guarda calou a espada na bainha e aproximou-se da velha, franzindo os sobrolhos, tentando enxergar algo. Esta, em um rápido e preciso movimento, cortou-lhe a jugular com um afiado punhal; fazendo o sangue esvair-se em um forte esguicho. Debilitado, o guarda prostrou-se, segurando a garganta, tentado, inutilmente, conter a hemorragia, a qual, em poucos segundos faria dele um morto.
A velha limpou a lâmina na própria língua, degustando o sangue. Ao longe, viu um lampião se mover de um lado para o outro; era o sinal do porteiro, aquela era a casa.
___O que houve? Perguntou-lhe o porteiro.
___O guarda do vilarejo... mas ele não vai mais nos incomodar!
Preocupado, o porteiro puxou-a para dentro. O ambiente era mais confortável que as outras casas da vila. Os móveis, rústicos, eram melhores do que todos os outros das outras casas.
___Você não deveria ser vista, eu falei antes! - Disse-lhe um dos três homens que aguardava do lado de dentro, tendo todos eles se levantado à sua chegada!
___Quem me viu nunca mais verá alguém no mundo dos vivos.
___Espero que mais ninguém a tenha visto! Isso lhe traria muitos problemas!
___Não, meu senhor, ninguém mais me viu, posso garantir! - Disse-lhe cabisbaixa.
___Dê-me a criança; é a criança certa?
O anfitrião e também ritualista segurou a criança e estendeu-a nos braços, em direção aos dois homens que aguardavam próximos deles; e sorriu dizendo:
___Vamos mudar a história!
Os dois homens assentiram com a cabeça, confirmando ser aquela a criança, o oráculo.
Os três usavam compridas vestes de cor escura, cujos capuzes, presos à gola, cobriam-lhes a cabeça. Eles pareciam druidas.
Seguiram todos para outro compartimento da casa no qual havia um altar, iluminado à luz de velas, com muitas imagens representativas de entidades, espirituais. Uma mesa, bem ao centro desse quarto, estava preparada para o ritual. O ritualista acenou para o porteiro do lampião, o qual se adiantou em direção a eles.
___A criança não pode chorar!
___Já preparei o leite, senhor; em poucos minutos ela estará pronta.
O servo trouxe leite misturado a uma substância entorpecente que deixaria a criança sedada, quase anestesiada. A criança que fora deixada sem leite toda a tarde, tendo sido sedada pela velha, estava faminta, e sorveu todo o leite, ainda dormindo. Enquanto a substância tóxica fazia efeito, a criança foi despida e colocada sobre a mesa. Os outros dois homens permaneciam parados, cabisbaixos, murmurando, em cochichos, algum mantra, em uma linguagem desconhecida.
___Quanto tempo? Disse o ritualista, olhando para o servo.
Esforçando-se para olhar o relógio de bolso à luz do lampião, o servo acenou-lhe cochichando:
___Cinco minutos!
Faltavam cinco minutos para as três horas da madrugada; horário em que o ritual deveria ser feito. Nesse intervalo o servo colocou uma pequena mesa coberta por um forro branco ao lado da mesa em que a criança estava. Sobre ela colocou um punhal de prata de lâmina extremamente aguda juntamente com duas taças de vidro. Um líquido transparente com um forte odor de aguardente foi despejado pelo ritualista, de uma garrafa envolta em uma capa de couro, em cada uma das taças, um pouco abaixo da metade.
___É hora, senhor! Disse-lhe o servo, recuando até encostar-se à parede, próximo onde a bruxa aguardava em silêncio, observando, com olhar soturno, todos os detalhes do promissor ritual.
O ritualista pegou o punhal pontiagudo e, com a criança deitada de costas. Segurou sua perna e furou a sua artéria poplítea, erguendo-a. O servo, atendendo ao aceno de cabeça do ritualista, aproximou-se e colocou uma das taças sob o filete de sangue que se misturou à bebida já contida ali, fazendo-a enrubescer. Repetiu o mesmo com a segunda taça. O ritualista acenou novamente para o servo que pressionou o local do furo até que a hemorragia fosse estancada, cessando o fluxo de sangue. Enquanto isso, o ritualista, tomando as duas taças, entregou-as aos dois homens que aguardavam à beira da mesa. Ambos pertenciam à Ordem do Dragão; eles eram ministros de Satanás, o Dragão, a antiga serpente. Um deles, naquele momento, incorporava o próprio Satanás e o outro incorporava Belzebu, o príncipe dos demônios. Ambos tomaram as taças e beberam quase tudo, deixando aproximadamente um dedo da mistura em cada taça. O ritualista ajuntou as duas porções em uma só taça e, inclinando a cabeça da criança, fê-la beber da mistura. Restou ainda um dedo da mistura no fundo. O ritualista, instintivamente, ergueu-a para levá-la à boca, mas temeu, desistindo, ao perceber que Belzebu o olhava com fuzilante olhar reprovador; temendo ainda olhar outra vez para os dois ministros. Sem dizer nada, os dois homens saíram tomando direção oposta àquela da qual a bruxa viera, retornando à montanha do Dragão. Com a criança enrolada outra vez, sob a sua capa, a bruxa saiu rapidamente, tão furtivamente como chegou; o seu cocheiro a aguardava no mesmo lugar que a deixara.
Com a ausência de todos; o ritualista, que aguardava com ansiedade esse momento, bebeu o que restara da mistura, sorvendo até a última gota lambendo o interior da taça, na esperança de ter aumentado os seus poderes e percepções espirituais. Sorriu satisfeito e estendeu a taça ao servo. Antes que este a pegasse, ela caiu da mão do ritualista, despedaçando-se ao chão. Seu semblante desfigurou-se e seu rosto se contorceu. Segurando a garganta com força e abrindo a boca ao extremo, o homem caiu ajoelhado. Da garganta as mãos se sobrepuseram sobre o estômago, apertando-o com força; caiu arfando e babando; e, estendendo a mão ao servo, expirou. O servo, que a tudo assistia impassivelmente, como que pressagiando alegremente o acontecido; retirou os cordões do seu pescoço juntamente com os amuletos e símbolos da Ordem do Dragão, colocando-os em seu próprio pescoço. Ele arrastou o ritualista e levou-o até o fundo, o último compartimento da casa. Nesse, abriu a tampa de um alçapão no piso de madeira e empurrou para lá o corpo do ritualista. Ali, cães famintos acostumados a comerem o que sobrava dos rituais, aguardavam mais um corpo para, em silêncio, o despedaçarem repartindo-o entre si.
Sendo agora o senhor da casa e o novo ritualista, o homem assentou-se na cadeira de balanço do falecido ritualista e sorriu satisfeito, fumando o seu cachimbo pensativamente, dando longas baforadas.
Extraído do meu Romance: O Último Querubim