HALLOWEEN...

Assim que Jenir completou 18 anos, sua avó, famosa benzedeira do Bairro Amambaí, discretamente lhe presenteou com um pequeno amuleto. Um patuá, costurado num pano preto, que daquele dia em diante deveria usar pendurado no pescoço. Estranho presente para um jovem adolescente...
Aquele talismã trazia em seu interior, uma combinação de ervas exóticas misturadas com dentes de alhos, macerados, com um odor repugnante. De perto, era difícil suportar. A velha recomendou que não se importasse com aquele cheiro putrefato. Com o passar do tempo ficaria menos acentuado. As pessoas dificilmente perceberiam. No entanto, era um amuleto de peso. Fechava o corpo. Evitava quebranto, mal olhado, feitiço, praga. Afugentava bruxa, vampiro e lobisomem. Ah, para conquistar mulheres? Era infalível. O rapaz deveria usá-lo, sem contestações, nem porquês...
Para Jenir, reles conquistador barato, era tudo o que estava faltando para complementar suas travessuras. Finalmente, poderia deitar e rolar. Sem temer nenhum tipo de represálias. Além de ter o corpo fechado, seria irresistível. As mulheres seriam presas fáceis. Não lhe escapariam. Estava protegido física e espiritualmente. Pensando assim, começou a agir como um super-homem. Morador da Murilo Rolim, no Petrópolis, o modesto mecânico de um posto de gasolina perto do aeroporto, era fanático por carros de corrida. Com o dinheiro que ganhou ao acertar em cheio uma milhar no jogo-do-bicho, comprou e passou a envenenar o cansado motor de um velho Opala preto, meia vida, mas que ainda agüentava muito tranco...
Nos fins de semana, ele e uma turma do Cerradinho, se aventuravam até na Copavila II a fim de disputar com outras gangues daquela região de Campo Grande, corridas e rachas na Avenida Marinha. Ficou muito irritado no dia em que um malandro do local lhe soprou no ouvido a notícia da inauguração de um posto policial ao lado do Centro Comunitário. Justo na curva mais favorável para seus cavalos-de-pau e outras perigosas manobras. Bem no lugar onde costumava espalhar óleo na pista e o carro patinava como um touro furioso...
Miguelito, flanelinha que fazia ponto no Rádio Clube, velho conhecedor das malandragens da Cidade Morena, mais tarde lhe consolou dizendo que não precisava ficar aborrecido. Ele descobrira um novo lugar onde poderia continuar queimando pneu...
Confidenciou: “Nos altos da Avenida Afonso Pena, no Parque dos Poderes, depois das dez da noite, por causa da pressão dos filhinhos de papai, as pistas ficam liberadas. A polícia deixa a zoeira correr solta!”...
Lá, Jenir poderia desfilar seu garboso Opala, de motor agora zerado, envenenado, turbinado. Além disso, contaria com a presença das patricinhas histéricas e das coroas carentes, loucas para uma aventura de amor dentro de qualquer banheira velha. O cara ficou entusiasmado com a idéia. Decidiu, então, trocar os rachas da periferia pelos ares ecológicos do Parque dos Poderes...
Halloween...
Derradeiro dia do mês de outubro. Altos da Afonso Pena. Noite das bruxas...
Dez da noite. Suado, o moço já estava quase embriagado com o cheiro da borracha queimada no asfalto. As gangues, os ‘groupies’, os ‘punks’, os ‘darks’, misturados aos jovens e coroas mal intencionados, começavam a lotar os acostamentos. A maioria, fantasiada. No acostamento, ao lado das pistas da maior e mais bonita avenida de Campo Grande, desfilavam vampiros, duendes, dráculas, frankensteins e bruxas, vibrando com o ronco dos motores envenenados. O “crack” corria solto. Havia um cheiro de marijuana no ar...
Jenir já havia conquistado meia dúzia de gatinhas. A galera ouriçada, já começava a gritar o seu nome. Foi quando percebeu, no meio da multidão, uma vampira. A mulher mais bonita que tinha visto em toda sua vida. A linda jovem flutuava no meio da fumaça dos baseados e dos escapamentos. Sorria para ele como se insinuando uma noite repleta de aventuras...
Não perdeu tempo. Desceu do carro. Foi abordar a incauta. De longe, agitando uma esvoaçante capa negra, vestindo uma minúscula mini-saia, ela continuava a jogar seu charme. “Vai ser moleza!”, pensou o rapaz...
Quando estava se aproximando, quando já se preparava para dizer boa noite, a decepção. A menina recuou. Olhos arregalados. Assustada. Como se estivesse sufocando, querendo respirar, fugiu apavorada. Correndo, perdeu-se na multidão...
Nosso pobre amigo ficou sem entender nada. Perplexo, parado, pensando, não desistiu da idéia de achá-la de novo. Iria continuar procurando. Precisava encontrá-la. Tinha a noite toda pela frente. Meio desanimado, voltou para seu carro...
Movido pela raiva, ficou mais arrojado. Radicalizou nas manobras. Ganhava cada vez mais aplausos. Subiu e desceu (várias vezes, como se estivesse drogado) as pistas da avenida mais charmosa do Pantanal...
De repente, de novo ela. No meio do povão...
Sorria para Jenir. Era irresistível. Sua pele era branca e macia. Longos cabelos negros cobriam sua face direita. Suas unhas, vermelhas, eram propositadamente compridas. Uma boca sensual. Jeitinho malicioso. Dentes perfeitos. Olhar profundo. Um rosto lindo. Marcado por uma enigmática olheira...
Jenir pára o carro. Desce batendo a porta. Parte outra vez em busca de sua musa...
Tudo vai bem, até o instante em que se aproxima e se prepara para falar com sua eleita...
Outra vez, o olhar angustiado. Outra vez, a face apavorada. Outra vez o medo desenhado em cada gesto. Outra vez, a fuga em pânico através da noite...
Era demais...
Tentou segui-la, mas depois de esbarrar em um grupo de ‘skin-heads’, desistiu. Desta vez, quase não volta para o carro. Estava derrotado. Sua frustração era grande demais. Ficou parado. Estático. Procurava entender o que estava acontecendo. Cabisbaixo, caminhou em direção de sua máquina. Desanimado, abriu a porta do carango. Quase chorando, deixou seu corpo desabar, de bruços, no banco dianteiro...
Foi a confirmação de seu azar. O cordão de seu amuleto, arremessado para frente pela lei da gravidade, acabou se enroscando na maçaneta da porta do carona. Arrebentou. O patuá carambolou pelo ar. Foi parar no chão. Caiu embaixo do banco dianteiro. Ao se curvar para pegá-lo, Jenir sentiu um cheiro nojento...
Suas narinas se irritaram. Seus olhos lacrimejaram. Suas pupilas pareciam explodir. Alho podre. Lembrou-se da avó. Imediatamente concluiu: “É isto! É o patuá. É este maldito cheiro de alho. Ela está fugindo por causa dele! Talvez seja alérgica! Droga, por que não percebi logo!”...
O tempo corria celeremente. Já espocavam os primeiros fogos comemorando a meia noite quando Jenir, afoitamente, se misturou com as múmias, esqueletos e dráculas, que festejavam o ápice da noite das bruxas. O patuá (de alho) ficou abandonado, esquecido em cima do banco dianteiro do carro. Agora sim, confiante, o jovem sai correndo em busca da moça fantasiada de vampiro. Tinha decidido: ela era sua nova amada...
Desta vez, felizmente, a mulher-morcego não fugiu. Continuou a caminhar normalmente enquanto Jenir se aproximava. Quando ele chegou junto, ela deixou-se abraçar. Não se negou. Depois de um longo e apaixonado beijo, sem dizer uma só palavra, o novo casal de namorados perdeu-se na noite. Mergulhou nas sinuosas curvas das românticas alamedas do Parque das Nações Indígenas...
Primeiro de novembro. Dia de todos os santos. Véspera de Finados...
Na névoa seca da manhã, um médico, ajoelhado, acaba de examinar um cadáver encontrado ao lado da estátua de um guerreiro guaicuru...
O corpo é de um homem, jovem...
Nenhum sinal de violência. Nenhum hematoma. Nenhum corte. Nenhum buraco de bala...
No pescoço, duas pequenas marcas. Dois furos. Logo abaixo da jugular. O defunto está completamente branco. Não tem uma gota de sangue. Parece um boneco de cera...
O legista chama o delegado de lado. Faz uma confidência: “Doutor, se eu acreditasse em bruxas, diria que este coitado foi atacado por um vampiro!”. Toma fôlego e continua: “No entanto, nós sabemos muito bem que vampiro não existe. Eu, não sei mais o que dizer. Como o rapaz está sem nenhum documento, para não atrapalhar nosso feriado e liberar logo o corpo, vou colocar no atestado de óbito deste indigente que foi morte natural. Parada cardíaca!”...
O médico, depois de um instante de reflexão, sugere: “Vamos deixar menos formal. Vamos evitar perguntas embaraçosas. Vamos concluir que ele deve ter se picado. É isso. Deve ter se injetado. No pescoço. Todo mundo vai ver as marcas. Alguma coisa forte. Cocaína, heroína, sei lá! Seu coração não agüentou. Pronto, está resolvido: morreu de overdose. Mande levarem o presunto!”...
Pobre Jenir...
Quem mandou não ouvir sua avó? Quem mandou andar sem o patuá?...
Sem ele, não tinha o corpo fechado...
Que será que o matou?... 
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