A NOITE EM QUE EU MORRI
Em sua imensa sabedoria Deus lhe dera o pequeno Victor como forma de ancorar seus sentimentos contra as hostis tempestades que sem trégua se arrojavam contra ele a fim de sucumbi-lo. Vitor, mesmo sem saber, dava-lhe força e motivação para viver e não desistir. Deus sabe bem os limites de cada pessoa. Em momentos de crise e dor, João já se vira, por muitas vezes, em uma noite qualquer, pendurado pelo pescoço em uma das árvores da bela praça, morto, cansado, desistiu. A dor já não doía mais. Insensível, alienado, meio vivo, meio morto, zumbi; talvez morto, a dor não doía mais. Quando a dor não dói mais é porque a gente já morreu. Agora faria companhia ao velho Tião. A corda, balançando o seu corpo preso pelo pescoço, como o pêndulo de um relógio, o relógio da vida que marcava a hora de morrer, rangia pra lá, rangia pra cá, carpindo melancolicamente por sua alma. E flutuou no ar como se fosse um príncipe. A musa grega, naquela noite, não derramava água de seu cântaro, derramava lágrimas. Nenhum barulho além do ranger da corda no galho da árvore; exceto aquele choro, murmúrio comprido, cansado, monótono, de criança órfã outra vez, abandonada outra vez; não mais em um porão, mas em uma praça, onde a frieza do cadáver era como a musa de pedra, a sua lápide.
Victor era um anjo de Deus que, voando intrepidamente, vinha resgatá-lo do enforcamento, fazendo-o respirar outra vez, fazendo-o viver outra vez. Mesmo com todos os sofrimentos que aquela vida lhes impunha, algo era extraordinariamente maravilhoso: O pequeno Victor, o seu pequeno príncipe, ele o cativara e agora seria responsável por ele.
João ainda perambulava meio atônito e nem percebera que o Victor se soltara de sua mão. Ao procurá-lo ao redor de si, viu que ele vinha a alguns metros carregando um pedaço de caixa de papelão, todo sorridente, tentando ajudar o pai. João ajoelhou abraçando-o, chorou lágrimas confusas. E beijou o seu filho como se fosse o pródigo. Era um menino muito especial. João o abraçou com força, valia a pena viver e cuidar dele, apesar de tudo.
(Extraído do meu romance: Fé sem Memória)