Mansão Klaus

Suas mãos pareciam que iam se enroscar. Michel nunca conseguia dar aquele nó na gravata que sua mãe lhe ensinara várias vezes. Ela só precisava de alguns segundos para que o nó estivesse pronto. Costumava fazer isso na gravata de seu marido sempre que ele insistia em sair de terno, o que não era raro acontecer.

Seu pai era um senhor elegante e de modos educados, apesar da pouca instrução. Sempre que podia, ia ao teatro assistir a alguma peça. Achava que era uma ocasião muito especial e não abria mão de ir vestido socialmente. Talvez considerasse tanto a idéia de ir ao teatro, a fim de compensar o tempo em que não pôde ir à escola. Uma cultura para substituir a outra.

Era quase um ritual: ele colocava o terno, pegava o seu Corcel II, cinza metálico, abria a porta para a esposa e o casal rumava para o teatro. Ela adorava esses programas noturnos e culturais. Nunca tinha assistido a uma peça antes de conhecer o esposo. Sentia-se jovem, viva, enquanto ele se sentia importante. Era como ir a um baile de gala com ministros, industriais e estrelas do cinema.

Aquela era uma noite como outra qualquer, excetuando-se pela indisposição de sua esposa. A peça era Gata Em Teto de Zinco Quente, de Tennessee Williams, em cartaz havia várias semanas, porém com encerramento da turnê em São Paulo em poucos dias. Ele estava muito ansioso para assisti-la, pois tinha perdido a estréia do filme com Elizabeth Taylor e Paul Newman no cinema. Ela, porém, estava com uma enxaqueca terrível e sair de casa era uma idéia que nem sequer havia passado pela sua cabeça. Depois de muita insistência, não conseguiu convencer sua esposa a acompanhá-lo mais uma vez. Decidiu então ir sozinho. Pegou o velho Corcel e saiu apressado de casa. Estava atrasado para a peça que começaria em quarenta minutos. Se saísse de casa naquele momento e se fosse rápido no percurso, talvez nem chegasse atrasado. Foi o que fez: saiu de casa numa noite de setembro e nunca mais voltou.

Talvez não fosse o momento de dona Sueli ir para junto de Deus. Talvez sua missão fosse cuidar de seu único filho, Michel, então com nove anos. O carro capotou com seu pai na avenida nove de julho e sobreviveu apenas alguns minutos entre as ferragens. Testemunhas diziam que um mendigo, bêbado, quis atravessar a avenida correndo. O sr. Gilberto havia tentado desviar, mas não conseguiu. Bateu no muro de proteção, desgovernou e capotou três vezes antes de, finalmente, ficar com as quatro rodas para cima. O acidente foi tão sério que chegou a ser televisionado por um noticiário no horário nobre.

Foi um choque para a esposa. Não se conformava em perder o amado, ainda mais daquela forma. Seu marido saía para trabalhar ou para o joguinho de truco com os amigos e ficava fora por um certo tempo, mas a qualquer momento a maçaneta da porta girava, abria-se e lá estava ele, adentrando seu castelo, com aquele sorriso de vencedor no truco, ou seu desânimo, depois de um dia exaustivo de trabalho. Mas naquele dia não voltou, no outro também não e então ela percebeu que jamais ele voltaria.

Michel ainda não havia recebido a notícia da morte do pai, pois ela não tivera coragem de contar. Só notou que alguma coisa havia acontecido quando ele não voltou para casa depois de dois dias. A criança perguntou onde estava o pai e a mãe, com os olhos lacrimejantes, abraçou o filho e não respondeu. Só chorou.

Mesmo não sabendo o que estava acontecendo, ele sentiu uma grande dor no coração, ao vê-la naquele estado, e também a abraçou fortemente. O que foi, mãe?! Ela, porém, não tinha sequer fôlego para parar de chorar e responder. A angústia era muito grande. Depois de tomar ar e se acalmar, explicou-lhe o que havia ocorrido e Michel não teve a reação que ela pensava. Ele adorava aquele homem; ele adorava o pai que lhe ensinara a jogar futebol; o pai que o levava para visitar o museu da imigração; que brincava de futebol de botão, enfim, ele era um rei para Michel.

Papai está bem junto de Deus, mamãe! Mas, quando estava sozinho em seu quarto, desabava em choro. Abalou-se muito com a morte do pai. Ele foi a pessoa que mais sofreu com isso, porém agora era o homem da família e tinha que dar apoio à mãe. A melhor forma de fazer isso era não chorar em sua frente. Nesta fase da vida, Michel precisava de apoio e foi o que encontrou nos ombros de César, Du, Marcelo e Weber, a turma. Eram todos garotos de nove anos, menos Marcelo que ainda tinha oito. Brincavam, bagunçavam e aprendiam o verdadeiro valor da amizade, coisa essencial para Michel naquele momento.

Levantou a cabeça e percebeu que ainda não tinha feito o nó na gravata. Todas aquelas lembranças de sua infância fizeram-no apagar por alguns minutos. Tentou mais uma vez e finalmente o nó estava pronto. Olhou-o por vários ângulos e deu-se por satisfeito. Ia à cozinha comer alguma coisa antes de sair quando o telefone tocou. Correu para atender. Pulou por trás do sofá e caiu sentado ao lado do telefone. Atrapalhou-se um pouco ao pegar o fone.

- Alô?

Era uma voz feminina e suave.

- Michel?

- Quem gostaria de falar com ele?

- É a Tatiana.

Tatiana resolveu ligar justamente quando ele já estava de saída. Seu coração disparou. Não sabia o que fazer.

- Oi Tatiana, que bom que ligou! Eu estava aqui justamente pensando em ligar para você.

- Sério? Nossa, então foi transmissão de pensamento! – disse ela – Eu pensei em ligar, pois achei que você estaria um pouco solitário, quero dizer, não desmerecendo o seu irmãozinho, é claro!

Excelente desculpa eu arrumei!, Michel pensou.

Ele ficou empolgado com o que acabara de ouvir, afinal já estava a fim dela havia algum tempo e, se ele ainda se lembrava, aquilo era uma cantada ou uma entrada, como o Eduardo costumava dizer.

- Sim, é claro, eu entendo e agradeço a sua preocupação.

- É mesmo uma pena sua mãe ter que viajar logo hoje que íamos sair. - lamentou Tatiana.

Michel ainda estava um pouco nervoso e com medo de gaguejar. A mentira nunca tinha sido o seu forte.

- É, realmente não foi um bom dia para ela viajar, quero dizer, não foi um bom dia para nós que ela tenha ido viajar. - respondeu, levando adiante a desculpa que inventara - Se pelo menos ela tivesse levado o Miguel, o meu irmão, junto, nós não precisaríamos desmarcar o nosso encontro!

Ele estava com medo de que Tatiana desistisse de querer vê-lo. Havia tentado aquele encontro por meses, sem qualquer êxito. Ela nunca havia lhe dado qualquer atenção; aliás, nunca tinha dado confiança a ninguém da Levin & Associados, empresa em que trabalham, e, quando ela finalmente resolve, surge esse imprevisto.

- Tudo bem, as oportunidades não vão faltar. – disse - Ainda mais para um homem tão dedicado à família quanto você.

Ele nem acreditou que ouvira um elogio da mulher mais desejada da empresa.

- Sabe, Michel, é difícil encontrar uma pessoa que se preocupe com a família. Gostei muito de saber que você é assim e eu...acho que vamos nos dar muito bem! Bom, não quero atrapalhar. Vai cuidar do seu irmãozinho; segunda-feira, conversamos, na empresa.

Despediu-se Tatiana.

Michel desligou feliz da vida. Havia conseguido adiar o encontro com Tatiana e ao mesmo tempo iria se encontrar com a turma, que ele não via desde os tempos de colégio. Depois que conhecesse melhor Tatiana, contaria a verdade sobre esse suposto irmão.

Lembrou-se de que já estava atrasado. Marcara às nove da noite. Era um encontro muito importante para ele, afinal era essa mesma turma que lhe havia dado o ombro quando seu pai falecera e em muitas outras vezes também.

O que será que eles fazem hoje em dia?– era o seu pensamento, enquanto se dirigia à garagem.

A última vez que ele ouviu falar dos companheiros já fazia bastante tempo. César, o intelectual da turma, estava em vias de publicar seu primeiro livro. Demorou muito para que isso acontecesse, afinal, foram anos procurando uma editora que quisesse editá-lo. Enquanto isso não acontecia, dava aulas de português, inglês e literatura.

Enquanto Weber, Eduardo e Marcelo estudavam no Dante Alighieri pagando mensalidades, César e Michel, jovens de classe baixa, só conseguiam freqüentar o mesmo colégio porque conseguiram bolsa de estudos.

César era um jovem muito estranho. Tudo o que ele falava era relacionado a assassinatos e crimes diversos. Também, o que se podia esperar de um rapaz que cabulava aula para assistir a filmes de Hitchicock na casa da tia, que era outra maluca por cinema? Ele tinha a quem puxar. O rapaz da vídeo-locadora até estranhava quando ele não aparecia para locar filmes às sextas-feiras. Sem contar com os livros de Agatha Christie que ele herdou de um tio. Eram setenta e três livros e o restante da coleção não foi difícil arrumar. Stephen King ele descobriu logo depois, com uma amiga que lhe emprestara o livro Carrie, a estranha, que acabou virando filme, aliás, um de seus preferidos. Enfim, ele tinha lido todos os livros da Dama do Crime, assistido a quase todos os filmes do Mestre do Suspense e do Mestre do Terror. Escrever um romance era algo planejado por ele, havia muito tempo. É claro que seria um livro de suspense.

Eduardo e Marcelo eram inseparáveis. Eram como irmãos. Sempre foram mais íntimos que o resto da turma. Era uma amizade diferente. Todos os trabalhos e seminários que os professores passavam para serem feitos, eles faziam juntos. Existia uma grande cumplicidade entre os dois. Muitos alunos do Dante tinham certo preconceito em relação àquela amizade. Isso resultou em um boato que correu na oitava série de que eles tinham um caso. Em meio aos livros de Eduardo, apareciam bilhetinhos escritos viadinho. O pai de Marcelo não gostou da situação em que o filho fora colocado e foi até a escola conversar com a Sra. Amal, a diretora. Ela, porém, nada pôde fazer, além de chamar a atenção dos alunos. Nada se resolveu e nunca se soube de onde surgiram os boatos, mas o caso é que eles acabaram fazendo o mesmo curso na faculdade: Direito.

Weber foi o mais afortunado. Herdou a empresa de segurança patrimonial, com a morte do pai, e morava com a mãe em uma mansão no Jardim Anália Franco. Sempre foi um rapaz de difícil convivência, principalmente com Michel que ficou com a grande paixão de sua vida: Sandra. É uma história muito velha e complicada. Ela não gostava dele como ele desejava que gostasse. Ele queria carinho e atenção de uma namorada. Ela oferecia afeto e compreensão de uma amiga. Não combinou, é claro, e Weber não se conformou quando a viu, semanas depois, nos braços de Michel. Sentiu raiva e por pouco não foi até lá bater nele. Seu controle foi maior e seu ódio foi para sempre. Detestava perder, mesmo que fossem pequenas coisas. Michel só ficou sabendo dos sentimentos de Weber por Sandra, no dia em que acabou com o relacionamento.

Ele sentia carinho por Sandra, sentimento insuficiente para manter um namoro. A garota, desesperada, não sabia mais de onde tirar motivos para que o relacionamento dos dois não terminasse. Foi quando esta história veio à tona:

- Michel, eu podia escolher quem eu quisesse, - dizia ela – mas eu escolhi você! Se eu fosse interesseira, teria ficado com o Weber. Ele dizia que gostava de mim, mas eu dizia que gostava de você e que só queria a amizade dele. É de você que eu gosto, Michel! Por favor, não me deixe só!

Dizia estas palavras com lágrimas escorrendo pelo rosto, mas, infelizmente, não deu certo. Foi muito difícil para Michel. Foi o fim de um namoro de sete meses. Mas o que mais o deixou surpreso foi receber aquela notícia. Preferiu guardar para si, não quis comentar nada com ninguém, principalmente com o Weber. Seria muita crueldade com seu amigo.

Por um bom tempo, Weber foi indiferente com Michel. Com o passar dos meses essa raiva foi diminuindo e a convivência dos dois foi mais suportável. Mas um pensamento não lhe saía da cabeça: perdoar sim, esquecer nunca.

E por fim, Michel, que acompanhando as carreiras de sucesso, formou-se em análise de sistemas. Sua luta para chegar aonde chegou não foi nada fácil. Estudou muito para conseguir uma bolsa no colégio particular onde seus amigos freqüentavam. Tinha que merecer o orgulho da mãe de alguma forma, a fim de compensar a falta do marido. Começou a trabalhar aos treze anos em uma marcenaria para ajudar a mãe nas despesas do lar. Nunca esqueceu de guardar um pouco para pagar os estudos. Aos dezessete anos mudou de emprego e passou a ganhar um pouco melhor. Pegou o que havia economizado durante anos e juntou com o salário mensal. Pôde cursar uma faculdade. Mudou de emprego novamente ao se formar. Atualmente trabalha como consultor na Levin & Associados, uma grande empresa de consultoria em informática, com grandes chances de crescimento profissional.

Uma vida até que razoável para um homem que ficou órfão de pai aos nove anos. Foram tempos difíceis. Com a morte de seu pai, Michel ficou muito carente e apoiou-se nos amigos de escola que, na verdade, pareciam verdadeiros irmãos. Salvos alguns pequenos desentendimentos naturais que ocorrem com qualquer criança, eles viviam juntos. Se algum moleque quisesse bater em um da turma, estaria desafiando o restante. Michel era o que mais se beneficiava com esta política, afinal era o mais fraco de todos. Enfim, a turma significava muito para ele. Por este motivo ele não se conteve de alegria naquela tarde:

O ambiente naquela sala estava pesado. Ângela havia discutido com Michel mais uma vez e eles não estavam se falando. Aliás, todos os dias eram assim: ela chegava e cumprimentava. Ele respondia. Tudo ficava bem até que alguma futilidade os tirasse do sério, levando-os a brigarem feito crianças. Portanto, era um dia normal.

O telefone tocou, mas ninguém se mexeu. Ângela esperava que Michel atendesse e ele esperava o mesmo dela. O telefone tocou pela terceira vez e ela, incomodada com o barulho, atendeu.

- Ângela!

Michel, de costas, ouvia a conversa e ela, sem se virar, disse com uma voz seca:

- É para você.

Ela colocou o telefone em cima da escrivaninha e levantou-se da cadeira. Foi sentar-se em frente a outro micro. Ele ficou indignado com a atitude; contudo, deixou de lado e sentou-se para atender.

- Michel!

- Alô, boa tarde, por gentileza, o Sr. Michel Freire?

Aquela voz não era estranha, mas, por mais que se esforçasse, não conseguia lembrar de onde a conhecia.

- Sim, é ele.

- Eu lhe dou cem reais se você adivinhar quem é! - propôs o homem.

Michel sentiu um tom de deboche em sua voz, mas, mesmo assim, resolveu entrar na brincadeira e pôs-se a pensar, afinal, um pouco de bom humor não faria mal a ninguém, principalmente naquela sala tão carregada.

- OK, então me dá uma dica. - pediu Michel.

- Você quer uma dica? Então lá vão duas: fui seu sócio e não deixava os outros meninos roubarem a sua lancheira. - soltou uma gargalhada profunda.

No ginásio tinha uma garota que era a musa da oitava série, a garota mais bonita da escola. Sandra era sucesso com quase todos os garotos, que faziam de tudo para agradá-la, desde bilhetinhos e doces, até presentes e flores. Realmente era uma garota de sorte. Porém, a garota mais bonita da escola se encantou com o garoto mais tosco: Michel. A concorrência não se conformava: O que ela viu nesse idiota? Quando Sandra passava, os garotos acompanhavam-na com os olhos; porém, só Michel tinha o privilégio de carregar os seus livros. A sociedade a que o homem se referia era, na verdade, Sandra, a ex-namorada de Michel.

Eduardo costumava brincar assim com ele, que aceitava a brincadeira na esportiva.

- Du?! Du, é você? - disse ele, surpreso.

- Claro que sou eu. Por quê? Você tinha outro sócio e eu não sabia? - debochou.

- Mas é claro que não! Você era e ainda é o único sócio, seu cachorrão! - disse Michel, voltando ao clima dos tempos de colégio - Cara, há quanto tempo eu não falava com você! Eu estava com muitas saudades!

- É, pois é! O inesquecível amigo Eduardo!

Michel soltou um breve sorriso.

- Você não mudou nada. Continua convencido.

Ângela, que até agora só ouvia a conversa, levantou-se e interrompeu.

- Preciso usar o meu micro.

Michel, apesar de não ter gostado nada do tom de suas palavras, preferiu não criar caso e se levantou levando consigo o aparelho de telefone que, aliás, era o único da sala. Sentou-se em sua cadeira e continuou a conversa com Eduardo.

- Mas o que você andou fazendo?

O advogado puxou um ar triunfante.

- Além de soltar um monte de bandidos e inocentar o maníaco do parque, nada.

Michel estranhou; afinal, o maníaco do parque que ele conhecia, havia sido preso, julgado e condenado, sob forte cobertura de toda a imprensa.

- Espere aí, Eduardo, como assim inocentar o cara? Que eu saiba, ele era culpado e foi condenado, não foi???!! – perguntou, ainda achando que seu amigo havia se enganado.

Eduardo riu da reação dele. Gostava de causar impacto.

- Calma, Michel. Deixa eu te explicar: a polícia prendeu o cara errado. O rapaz havia sido acusado injustamente. Chegou a ser reconhecido por uma das vítimas. Ela jurava que ele a havia atacado no parque do Estado duas semanas antes da primeira vítima aparecer; mas eu a convenci de que havia se enganado. Livrei o rapaz de uma condenação de vinte anos e, semanas depois, a polícia prendeu o verdadeiro culpado - disse Du, triunfante.

Ele gostava do que fazia e, como se já não bastasse, adorava fazer autopromoção. Não perdia a oportunidade de dizer, a quem quisesse ouvir, as suas peripécias de advogado criminalista, como se fossem episódios do Perry Mason.

- Eduardo: o defensor dos fracos e oprimidos! - brincou Michel.

- Contanto que tenham dinheiro para pagar, defendo até Adolph Hitler. - devolveu Eduardo.

- Realmente você é um excelente advogado: é ganancioso, prepotente, frio, calculista e egocêntrico.

- Tudo o que a faculdade me preparou para ser. – respondeu.

Os dois riram juntos da piadinha. A conversa continuou em um tom jovial por mais alguns minutos, quando finalmente bateu a curiosidade em Michel:

- Mas afinal de contas, o que te deu para me ligar assim, de uma hora para outra?

Eduardo puxou um ar orgulhoso e soltou sem hesitar:

- A turma, Michel! Nós vamos reunir a turma!

- Como é que é?!

- Isso mesmo que você ouviu: nós vamos reunir a turma e é por isso que eu estou te ligando.

Michel ficou sem palavras.

- Eu não acredito! - disse ele, emocionado.

- Pois pode acreditar. Weber me ligou de manhã e marcou um reencontro da nossa turma na casa dele - explicou.

- Mas assim do nada ele te liga e marca uma reunião?

- Não, é claro que não. Nós já havíamos conversado no mês passado, mas não deu certo. Weber teve que viajar às pressas para Mônaco e não pôde cuidar dos preparativos; por isso, desta vez, vai ser algo mais simples.

Michel ainda não tinha se dado conta da fortuna de Weber.

- Mônaco? Ele costuma viajar para Mônaco?

- Sim, ele tem negócios por lá. Para você ver como são as coisas, Moe: a empresa dele tem uma parceira justamente em um país cuja economia se baseia quase que exclusivamente na jogatina. Logo o Weber, que não fica fora de um joguinho, nunca. Você se lembra como ele era em relação ao jogo, Moe?

- Faz uma cara que você não me chama assim. É até engraçado!

- É para voltar aos velhos tempos!! – disse Eduardo animado – Mas voltando ao assunto, você se lembra?

- E dá para esquecer? Ele detestava perder. – respondeu com convicção.

- Pois era isso que eu queria ver: o Weber perder. – disse Eduardo.

Michel não entendeu.

- Mas como assim? Você já viu o Weber perder várias vezes, quando éramos crianças. – disse Michel

- Não, você não entendeu: quando éramos pequenos brincávamos feitos loucos. O Weber perder um gol no futebol, ou um pipa, ou uma briga, é uma coisa. Ele esbravejava, xingava e, no máximo, batia em alguém. Agora, perder muito dinheiro, é outra coisa, completamente diferente Apesar de ser nosso amigo, você sabe o quanto ele é prepotente.

Michel agora pôde entender o desejo de Eduardo. Não só entendeu como concordou.

- Agora você falou uma coisa que é certa. – disse ele – Talvez fosse até bom para ele que isso acontecesse. Talvez se tornasse até uma pessoa mais legal de conviver. Quero dizer, se ele não mudou, não é?

Eduardo soltou um risinho.

- Você acha que ele mudaria, é? Weber ainda é um cabeça dura como sempre foi. Acredite, Michel, quando você chegar à casa dele, vai se sentir como nos tempos de colégio.

- Por quê? Weber vai colar chiclete no meu cabelo de novo? – disse, rindo e recordando-se de um episódio passado. – Ou vai colocar um ovo no meu bolso e espalmar?

Eduardo não se agüentava de rir. Realmente, para eles, o passado era algo extremamente inesquecível.

- Agora, me responda uma pergunta que está me deixando meio intrigado, Du: você se encontra freqüentemente com o resto da turma?

Eduardo não entendeu a pergunta e pediu para Michel ser mais explícito.

- Você costuma se encontrar com o Marcelo, o César e o Weber no seu dia-a-dia, ou está meio afastado do pessoal, como eu?

- Bem, o Weber eu só reencontrei no mês passado. Aliás, fui eu quem sugeriu o reencontro da primeira vez mas, infelizmente, não deu certo. Já o César eu encontrei numa exposição no MASP no ano passado. Nós falamos três vezes pelo telefone desde então. Inclusive ele perguntou de você. O único que eu tenho mais contato é o Marcelo, afinal eu passei cinco anos com ele na faculdade. Não é tão fácil se livrar dele. – brincou.

- Então vai ser uma grande festa? - disse Michel, animado.

- É isso aí, Moe, hoje vai ser uma grande festa!

Aquelas palavras desanimaram Michel

- Como é que é? Você disse hoje?!? – disse ele, apavorado.

- Sim, hoje, às nove horas da noite. Por quê? Você tem compromisso? - perguntou Eduardo.

Michel lembrou-se do compromisso que marcara com Tatiana, a secretária do gerente comercial. Ele tentou sair com ela durante meses e ela sempre arranjava uma desculpa para não aceitar o convite. Porém Michel nunca desistiu de tentar. Sua insistência não havia sido em vão. Na semana passada ela mudou de idéia e aceitou. Ele conseguiu marcar um jantar com a mulher mais bela da empresa, sexta-feira, às oito e trinta da noite e agora vem o Eduardo com esse novo compromisso, também irrecusável. O que fazer? Levar a mulher mais desejada da empresa para jantar e talvez... alguma coisa a mais, ou rever aquela galera gente fina com que ele perdera o contato havia anos? Entrou em conflito consigo mesmo e pôs-se a pensar, interrompido por um Eduardo impaciente:

- Michel, eu preciso resolver uns problemas aqui e vou ter que desligar. E então, combinado?

- Bem...- hesitou -...está certo. Eu vou.

Tomou esta decisão esperando não se arrepender depois. Tatiana era especial e ele não queria perder a oportunidade de talvez se relacionar com alguém assim. Qual seria a desculpa que ele iria arranjar para desmarcar o encontro com ela?

- Ótimo! Você sabe onde o Weber mora? - perguntou Du.

Respondeu que tinha uma vaga idéia. Eduardo passou o endereço, explicando como fazia para se chegar lá. Ele anotava minuciosamente cada palavra.

- Estou muito ansioso por este reencontro, Du.

- Pode ter certeza de que não é só você que está ansioso - respondeu Eduardo, com a mesma simpatia. - Não vá se atrasar, senão te meto um processo, hein! – brincou Du

- Pode deixar, futuro juiz. – respondeu Michel, na esportiva.

- Encontro você lá. Até mais, amigo. - despediu-se.

- Até mais, sócio - despediu-se Michel, ouvindo a gargalhada de Du, antes de pôr o fone no gancho.

Michel pegou o carro e saiu apressado, sem se preocupar com o cinto de segurança. Numa noite tão tumultuada como essa, isso era o de menos. E, além do mais, o cinto não havia ajudado muito o pai, doze anos atrás.

O caminho que Eduardo explicou era bem mais fácil na teoria do que na prática e, inevitavelmente, ele acabou se perdendo na região da avenida Eduardo Cotching. Depois de alguns minutos, conseguiu voltar ao caminho que Eduardo lhe ensinara e, felizmente, acabou encontrando a rua de Weber. Mansões luxuosas e condomínios fechados. Quem morava ali tinha muito o que gastar. Parou finalmente em frente ao número indicado por Eduardo: o seiscentos e sessenta e sete. Ele ficou simplesmente abobalhado com a extensão da fachada que chegava a ter uns cinqüenta metros. Tinha ouvido falar que Weber morava em uma mansão, mas não imaginava o quão luxuosa ela era. Encostou o carro próximo ao portão. Desceu e observou a entrada. Acima do grande portão de madeira estava uma inscrição, Mansão Klaus. Apertou o interfone ainda contemplando a fachada da casa do amigo. Uma voz perguntou:

- Quem é?

- Michel Freire.

- Moe Cachorrão ???

Michel logo percebeu que se tratava do anfitrião.

- Weber?

- Entre logo, que só está faltando você!

Weber destrancou a porta de entrada eletronicamente.

- Vá sempre em frente. No final vire à direita. Estamos no salão de jogos.

- Estamos?

- Sim, só falta você. Pontualidade realmente nunca foi o seu forte, não é, amigo? – brincou - Venha logo!

- Já estou entrando. Guarde uma cerveja pra mim, hein?!!

- Pode apostar. – respondeu Weber.

Ele entrou e encostou o portão. Foi caminhando devagar. Queria observar a casa, conhecer o terreno, já que apreciava arquitetura. Realmente era uma bela construção. Sua cor era vinho, com janelas um tom mais escuro, realçadas pela iluminação artisticamente planejada para destacar suas formas e cores. Possuía um jardim imenso, com um enorme chafariz: uma estátua do deus Netuno segurando um vaso que jorrava água. Weber conseguira tudo.

Desde pequeno, sempre teve o que seus amigos não tiveram: as melhores roupas, os melhores brinquedos e tudo o que o seu pai podia oferecer, enquanto Michel não tinha sequer um pai, que já se tinha ido há muito tempo. Ele sentia um pouco de inveja de Weber, no bom sentido. Na realidade, Michel não gostou de Weber quando o conheceu. Ele fazia questão de menosprezar os companheiros na escola. Sempre sabia tudo, sempre tinha razão. Enfim, em seu mundo, ele era o melhor e o resto do mundo não.

Relembrando o passado, Michel continuava a andar distraidamente em direção ao salão de jogos. Observava cada detalhe da casa com muita atenção, quando passou por um arbusto e, inesperadamente, de lá um cão se pôs a latir sem parar, assustando-o. Acabou tropeçando e caiu no gramado. Automaticamente encolheu-se com medo de ser atacado. Percebeu, porém, que o cão estava enjaulado. Não podia atacá-lo. Mesmo assim, dava pavor olhar aquele cão grande, negro, latindo e rosnando, com saliva escorrendo por entre os dentes. Era de dar medo e ao mesmo tempo nojo. Tremendo pelo susto que acabara de levar, teve dificuldades para levantar. Continuou a caminhar sob os incessantes latidos do cão. Michel jamais gostou de animais, principalmente dos ferozes.

Finalmente chegou à porta do salão, assustado com o incidente anterior. Colocou a mão, ainda tremendo, no trinco da porta, suspirou antes de entrar e empurrou com força a porta de correr. Pôde rever a claridade e, no meio dela, quatro vultos bem familiares.

- Moe! Até que enfim!

Weber abraçou Michel com força seguido de César e Du. Marcelo não era de ficar se agarrando com homem, como ele mesmo dizia.

- Vocês são surdos ? - perguntou Michel, assustado.

- Por quê? - estranhou Weber.

- Vocês não ouviram nada?

- Era para ouvirmos alguma coisa? - perguntou César, curioso.

- Eu quase fui atacado pelo maldito cachorro do Weber e vocês nem sequer ouviram os latidos?

Weber riu.

- Por acaso você não notou que ele estava preso? - debochou.

Marcelo, que estava com um taco de sinuca na mão, não pôde deixar de rir, deixando Michel furioso.

- Se eu estivesse armado, assassinaria o seu cachorro com gosto! - disse ele, com um olhar sádico.

- Você não faria isso com o meu au au, faria? - disse Weber, tentando alegrar o ambiente.

Michel olhou fixamente para Weber e sorriu.

- Claro que ele não faria isso com o cachorrinho. Ele devia fazer isso era com o dono. - debochou Du, entrando na brincadeira.

Michel observou os amigos e notou as mudanças que o tempo operou, principalmente no físico. Marcelo estava com uma barriga bem maior do que tinha antes, enquanto Eduardo já apresentava algumas entradas no couro cabeludo. Weber, que, apesar de ter sido um rapaz franzino, estava musculoso. Já César ostentava um cavanhaque e um estilo intelectual. Todos haviam mudado, inclusive o próprio Michel, que agora usava óculos devido ao trabalho em frente a um monitor.

- Ali dentro é a cozinha. Se quiser uma Heineken ou uns salgadinhos é só ir lá e pegar.- disse Weber, colocando o convidado mais à vontade – Eu dispensei os empregados hoje para nos deixar mais livres!

- E a sua mãe? – perguntou Eduardo.

- Bem, depois que o meu pai morreu, ela viveu um tempo comigo. Como eu trabalhava muito, quase não nos víamos. Ela achou melhor ir viver em Londres.

- Então a casa é toda nossa?

Weber sorriu e levantou o taco de sinuca.

- É isso aí!

Alguns minutos foram suficientes para Michel se sentir bem, após aquele incidente.

Weber buscou uma cerveja para ele e acabou pegando uma para o Marcelo também. A conversa correu solta por um bom tempo. Tinham muito o que conversar. Eram anos e anos para tirar o atraso nas novidades e também para relembrar os velhos tempos.

- ...e a Mônica que não largava do meu pé!? - disse Marcelo para os amigos.

César ficou indignado com o que acabara de ouvir.

- Ela não largava do seu pé!?! Era você que não queria deixar a menina em paz!- disse César, apoiado por Michel.

- O César tem toda a razão. Era você que dizia para o colégio todo que namorava com ela.

- Isso foi o que ela contou para todo mundo só para não ficar falada. - respondeu Marcelo, sem perder a pose - Mas e a Juliana que era apaixonada pelo César, e ele não estava nem aí!?

- Isso eu nem fiquei sabendo! - disse Weber surpreso.

- Como não? Você não lembra que houve uma época em que as meninas do...

César interrompeu

- ...você não vai falar aquilo, vai?

- Aquilo o quê? - disse Weber, sem se conter de curiosidade.

- Se o César não interromper, eu conto. Como eu estava dizendo houve uma época em que as meninas do segundo colegial, as amigas de Juliana, espalharam entre as outras meninas do colégio que o César era...

César fez cara feia.

- ...viado!

O riso foi geral, menos César que não achou a mínima graça.

- Mas elas só disseram isso porque eu não quis nada com a Juliana! - defendeu-se.

- Mas a mais bonita nós nem podemos dizer o nome, não é? - disse Eduardo indiretamente para Michel, referindo-se à Sandra.

- Ah, podemos sim! - disse Marcelo - Aquela maravilha nunca me deu bola.

- Nem pra mim! O que você fez para ficar com ela, Michel?- perguntou Eduardo, indignado.

- É, conta pra gente! - disse César, esquecendo-se do incidente anterior.

Weber permanecia calado, apesar de tentar parecer normal com o assunto.

Michel puxou um ar de mestre e ensinou aos seus discípulos:

- Ignorá-las. Vocês têm que ignorá-las. Mulher gosta de ser maltratada.

- Então foi isso que você fez, ignorou-a?- perguntou Weber, sem entender direito.

- É claro! Enquanto vocês ficavam babando, para quem ela vinha pedir para carregar os seus livros, hein?

Os amigos entreolharam-se, perguntando como não haviam pensado nisso antes.

- Caramba!

- O que foi Weber?

- Me ocorreu uma coisa agora - disse Weber, levantando-se

- O quê?

- E o carinha dos olhos estranhos?

Marcelo arregalou os olhos.

- É mesmo! O garoto estranho!

- Aquele de quem todo mundo tinha medo. – completou Eduardo.

Weber trouxe mais uma cerveja.

- Era muito misterioso.

O garoto vivia só. Ninguém tinha coragem de ser amigo dele ou de se aproximar muito. Nem mesmo os professores. Fingiam não ligar muito, mas até mesmo os adultos têm medo do desconhecido.

- “Histórias do Dante Alighieri” – disse Eduardo, com uma voz grossa de locutor.

- Já que falaram do Alieksiei, eu o reencontrei há alguns dias...

Todos olharam para a cara de César.

- Você o viu?

César era o único que não tinha receio de conversar com o garoto. Sempre gostou desses assuntos misteriosos. Falar com Alieksiei era, para ele, algo excitante.

- Claro, Weber. Não pude conversar com ele por muito tempo, pois eu estava com pressa, mas peguei seu telefone para marcarmos um cappuccino.

Os outros quatro ficaram atônitos.

- Mas....ele...

- Não. – interrompeu – Ele não tem mais aquela anormalidade, se é o que queriam perguntar. Bem, pelo menos não pude notar durante os vinte minutos que conversamos.

Marcelo não se conteve. Tinha que perguntar também.

- Mas como ele está?

- Deu para saber pouca coisa: ele tem um antiquário na Vila Mariana; não o vi sorrir em nenhum momento, o que o deixa ainda na categoria dos excêntricos; tem a minha altura, um metro e oitenta, mais ou menos; possui um Maverick preto com vidros filmados que, aliás, é um show! Deu até vontade de dar uma volta; e ...é só! Ah, ele estava todo de preto. Imaginem. Estava fazendo uns trinta graus naquele dia.

- Eu hein! O cara ainda é estranho.

A conversa durou mais alguns minutos e César sugeriu um joguinho de cartas, para animar a noite e também para esquecer o papo do garoto do carro negro e olhos anormais.

- Eu só sei jogar buraco. - Michel logo avisou.

- Eu sei truco. - disse Du aos companheiros.

- Poxa, assim não dá! Ninguém sabe jogar o mesmo jogo?- disse Weber, indignado.

- Todo mundo sabe jogar dominó?

César recebeu resposta positiva de todos.

- Então vamos jogar dominó. Pelo menos, todo mundo sabe jogar.

Weber foi buscar o dominó, enquanto Michel apanhava cerveja e petiscos na cozinha.

- E então, César, quando sairá o seu próximo best-seller? - indagou Eduardo.

César suspirou e respondeu:

- Na realidade, Du, eu não tenho a mínima idéia do que escrever. Deu um branco total. Imagine só: um escritor que não tem idéia do que escrever. É muito para minha cabeça.

- Mas exatamente de que se necessita para se escrever um livro? - insistiu Eduardo.

Ele pensou um pouco e respondeu:

- Uma história interessante, personagens fortes e revelações surpreendentes, basicamente isso.

- Legal. Escute, eu estava pensando e tive uma idéia demais. Quem sabe se eu te contar alguns dos meus casos de direito. A gente pode ficar rico e....

Se Du começasse a narrar seus casos de tribunal, ninguém conseguiria fazê–lo parar. Sabendo disso, César interrompeu–o imediatamente.

- Ah, claro! Vamos nos tornar uma dupla de sucesso contando casos de tribunal. Olhe, Du, só para se ter uma idéia, nós já temos o John Grisham, Scott Turow e uma infinidade de outros escritores desse tipo.

- Aí, está vendo como a idéia funciona? – disse Eduardo, ainda não se dando por vencido.

Weber chegou com o dominó seguido por Michel com os comes e bebes.

Eles se ajeitaram na mesa verde de feltro. Na primeira partida, um teria que ficar de fora, pois só poderiam jogar quatro por vez. Tiraram a sorte no palito maior e Eduardo foi o sorteado. Quem ficasse com mais pontos nas mãos era obrigado a ceder o lugar para o que estivesse de fora, no caso Eduardo. Marcelo embaralhou as pedras e as distribuiu. O jogo continuou. Weber sorriu durante a partida toda, enquanto Michel e César suavam frio. A impressão que se tinha era que Weber já tinha recebido o jogo quase pronto, pois a primeira vitória foi dele em questão de minutos. Os companheiros nem acharam graça de um jogo tão rápido.

- Ora, animem-se, rapazes. Afinal o mundo não acabou só porque eu ganhei uma partida tão rápido. - disse Weber, fazendo pouco dos companheiros, com atitudes dignas de um mal ganhador.

Michel teve de ceder o lugar a Eduardo. Ficara com mais de vinte pontos nas mãos. Foi até a cozinha buscar uma cerveja, porém, antes de sair, perguntou se alguém queria. Weber e César levantaram as mãos. Michel saiu e o jogo recomeçou. Agora era Weber que embaralhava as pedras e as distribuía. César iniciou a próxima partida. Desta vez Weber não estava sorrindo. Parecia que a sorte abandonara o ganhador anterior. O sorriso dele deu lugar a uma cara preocupada e amarrada. Quando chegava a sua vez era obrigado a passar e isto o deixava louco da vida. Até que César bateu o jogo. Weber não se conformava em perder, mesmo não tendo que abandonar a mesa do jogo, pois quem ficou com mais pontos nas mãos foi Marcelo. César não pôde perder a oportunidade:

- Que é isso Weber, é só um jogo. O mundo não vai acabar só por causa disso, não é? - ironizou.

Weber ficou furioso com os risinhos dos companheiros, mas não perdeu a pose:

- Ora, meu caro César, espero não ter dado a impressão de ser um mau ganhador na partida anterior.

- Que é isso, Weber? Eu sei que você é um ótimo jogador. Foi só um golpe de azar, não foi? - disse César, tentando ser gentil.

- Isso! Um golpe de azar. Foi isso mesmo o que aconteceu. – Weber, sério.

Marcelo foi obrigado a ceder seu lugar a Michel, que acabara de entrar no salão com as cervejas, mas, ao contrário de Weber, Marcelo sabia perder. Jogaram durante horas e, para sua infelicidade, Weber não ganhou mais nenhuma partida. Não é preciso dizer que ele ficou de mau humor a noite toda. Fumava um cigarro atrás do outro. Levava o jogo muito a sério, enquanto os companheiros, despreocupados, divertiam-se muito. Aquele garoto que Michel julgava ter mudado ainda permanecia nele. Continuava a achar que era melhor que os outros e não suportava a idéia de outra pessoa ganhando em seu lugar.

- Esse jogo é muito idiota e não dá para todos jogarem!

Todos ficaram surpresos com a sua atitude. Ninguém esperava que Weber levasse aquele jogo tão a sério e ficasse tão alterado.

- Você sugere outro jogo?- perguntou César, espantado e um tanto curioso.

Toda a angústia, ódio e decepção acumulados durante aqueles anos e que todos pensavam estarem superados voltaram. Olhava para Michel e via o homem que roubou o seu único amor. Olhava para Eduardo e Marcelo e via os traidores de sua confiança. Olhava, por fim, para César, o homem que o desafiou e zombou de suas derrotas a noite inteira. Naquele momento Weber tentava encontrar dentro de si a amizade que todos, inclusive ele, pensavam ter. Não achou nada além de muito ódio. Heinrich Weber não gostava de ninguém além de si próprio. Estava com a cabeça fervendo, mas não queria deixar transparecer. Era fora do comum que uma partida de dominó pudesse trazer lembranças e sentimentos esquecidos no fundo do inconsciente. Mas, em se tratando de Weber, tudo era possível.

- Mas é claro que sim. Esse jogo de dominó é para crianças. Somos homens feitos. Tem um jogo que todos podem jogar ao mesmo tempo. Aliás, premiável!

Todos se surpreenderam.

- Como assim premiável? - quis saber César, muito interessado.

- Esperem um momento. Vou ter que resolver alguns problemas lá dentro, mas eu não demoro.

Ele saiu da sala deixando todos curiosos.

- O que será que ele quis dizer com premiável? - perguntou Michel.

- Sei lá. Vai ver que ele vai querer jogar bingo. - brincou Eduardo.

Todos riram da piadinha, mas não se esqueceram do que Weber disse. Aguardavam ansiosamente o seu retorno.

- Você bem que poderia buscar uma cerveja pra gente, né, Michel? Afinal você foi o último a chegar - disse César, intimando seu amigo.

- Eu vou porque eu quero, não porque você está mandando, hein! - brincou Michel, levantando-se para ir à cozinha.

Ele saiu da sala. Eduardo, Marcelo e César conversaram sobre ele.

- Vocês viram? - disse César - Ele ainda continua daquele jeito: carente e submisso.

- Coitado do cara, César. Você sempre abusou dele, desde criança. Não vai querer maltratá-lo depois de grande, não é?

Eduardo não admitia que maltratassem Michel. Ele chegou com as cervejas.

- César, ainda não voltou? - perguntou Michel, referindo-se a Weber.

- Ainda não. - respondeu Eduardo - A propósito: da próxima vez em que o César te pedir para buscar alguma coisa, mande-o ir. - disse Eduardo, encarando César que não gostou da direta.

- Que é isso, Du? Não me custou nada. Eu também queria uma cerveja.

- Está vendo, Du? Ele também queria uma cerveja. - ironizou César.

Weber entrou na sala com uma caixa nas mãos.

- O que é isso? - perguntou Eduardo.

Weber estava com um estranho sorriso, sarcástico, nos lábios. Parecia que havia esquecido aquele mau humor que o possuiu durante toda a noite.

- Este é o nosso joguinho. – disse, levantando a caixa e colocando em cima da mesa de sinuca.

Ele abriu a caixa que mais parecia uma maleta de couro marrom. Todos se olharam surpresos e ao mesmo tempo estarrecidos com o que viram em seu interior: cinco revólveres.

- Para que isso, Weber ? - perguntou Marcelo, assustado.

- Mas eu já não disse que é o nosso joguinho?

Michel não estava gostando da brincadeira. Tinha pavor de armas. Aliás, ele tinha pavor de tudo.

- Explique isso direito. - disse ele a Weber.

- Bom, é muito simples. Não requer prática, tampouco habilidade.

Num momento daqueles, uma gracejo como o que Weber tinha dito não foi muito bem aceito.

- Deixe de besteira e fale logo o que você tem a dizer. – disse Marcelo, um tanto impaciente.

- Bem, é simples: cada um pega uma arma que está carregada com apenas uma bala. Sorteamos para ver quem começa. A cada puxada de gatilho, com tiro ou não, é a vez do próximo. Ganha quem restar. Simples, não?

Todos ficaram estarrecidos e pálidos com a idéia dele. Weber disse aquelas palavras como quem diz Vamos comer uma pizza? ou Topam um cineminha?

A idéia era absurda. Marcelo não se conformou:

- Deixa ver se eu entendi: você perde a noite toda no dominó, não se conforma e então sugere que brinquemos de roleta russa, é isso?

- Basicamente é isso. - insistiu Weber – Eu não tenho medo de morrer. Vocês têm?

- Você é louco? – disse Marcelo, boquiaberto.

Michel, desde que ouviu a idéia absurda de Weber e percebeu que era sério, só pensava em sair dali, enquanto Eduardo, com seu jeito diplomático de resolver as coisas, tentou fazer seu amigo desistir.

- Poxa, Weber, deixa essa idéia boba pra lá. Olha, podemos jogar outra coisa mais segura, por exemplo buraco, sinuca ou até mesmo pebolim.

- Eu quero este jogo e estou disposto a pagar caro a quem jogá-lo comigo. - Weber conseguiu a atenção que queria - Eu disse que o jogo poderia ser jogado por todos e seria premiável, não disse?

- Mas como assim, premiável? - quis saber César.

Weber tirou um papel do bolso e mostrou a todos.

- Neste papel está escrita a senha do cofre que está escondido no escritório, atrás do quadro do meu pai. Nesse cofre há dois milhões de reais em espécie e mais alguns dólares dos quais eu não sei precisar o valor. Não tive tempo. O vencedor fica com tudo.

O valor assustou a todos. Ninguém ali naquele salão, com exceção de Weber, havia visto tanto dinheiro assim. Resolveria o problema de todos. César estava com dificuldades. Fazia muito tempo desde a publicação do seu último livro. Neste país não se pode viver de cultura, dizia. Marcelo formou-se em direito, mas nunca chegou a advogar. Colocou dinheiro em um negócio próprio que não deu certo. Estava muito endividado. Michel, desde que se separou da esposa e teve que pagar pensão, nunca mais comprou uma peça de roupa para si. Eduardo não estava devendo, mas a sua ambição fazia com que seus olhos brilhassem ao ter a oportunidade de colocar as suas mãos em uma quantia daquela.

- E então, quem topa? - perguntou Weber, dando um ultimato aos companheiros.

Eles se entreolharam e olharam Weber. César acendeu um cigarro e deu um passo à frente.

- Eu topo.

- O quê? - gritou Michel, surpreso - Não acredito que você vai entrar nessa, César!

- Se liga, Michel! Minha vida tem sido um inferno. Onde já se viu um escritor que não sabe mais escrever? Desde que eu lancei meu último livro, há dois anos, eu não tenho mais idéia alguma para um próximo romance e, mesmo que eu tivesse, eu jamais ganharia essa quantia com um livro. Gosto de dar aulas, mas por prazer, não necessidade.

Michel não pôde acreditar no que acabara de ouvir. Seu amigo César assinando a sua própria sentença de morte. Olhou para Marcelo.

- Marcelo, por favor, não me diga que você vai cair na lábia desse louco! O assunto é sério. Envolve a morte de quatro pessoas, quero dizer, três. Eu não vou participar - disse ele, encarando Weber - E então?

Sem dar atenção a Michel, Marcelo olhou para César e logo depois encarou Weber.

- E se você morrer primeiro?

- Eu não acredito que você não tenha me dado ouvidos! - Michel indignou-se.

- Cala a boca, Michel!

Ele não esperava aquilo de Marcelo e muito menos a decisão de César. Tinha desmarcado o encontro com Tatiana para ver amigos se divertindo e não se matando. Aquilo foi o limite para ele.

- Eu não fico nem mais um minuto nesta casa. Se vocês querem se matar, o problema é de vocês.- olhou para Eduardo - Você vem comigo, Du?

Eduardo olhou nos olhos de Michel e abaixou a cabeça.

- Até você, Du?! - deu uma última olhada nos companheiros, puxou a porta de correr e saiu por onde entrou.

- Se mais alguém quiser desistir ainda está em tempo - disse Weber, com convicção de que ninguém iria desistir.

- Eu te fiz uma pergunta- disse Marcelo, em tom hostil.

Weber sorriu.

- Eu sou um jogador e, como todo jogador, sempre penso que vou ganhar.

- Mas e se você morrer primeiro? - César perguntou

- Tá bom, tá bom, já que vocês insistem nesta hipótese, fica a critério de vocês. Ou continuam o jogo até que fique o último ou dividem o dinheiro.

Os três se olharam e retornaram o olhar para Weber.

- Bom, vamos começar? Primeiro venham escolher as armas de vocês.

Weber já estava com sua arma na mão. César olhou para ela e perguntou a Weber:

- Espere aí, quem me garante que tem bala nessa sua arma?

Weber deu um leve sorriso.

- Não confia mais nos amigos, César?

- Ele tem razão, Weber. – disse Marcelo, concordando – Se você é capaz de propor este jogo de morte, também é capaz de trapacear.

- Então tudo bem. – entregou a arma para Eduardo – Du, verifique o meu revólver e veja se há uma bala no tambor.

Eduardo olhou para a arma e levantou a mão lentamente para pegá-la. Ele tinha pavor de mexer em armas carregadas. Pegou a arma com cuidado e abriu o tambor. Verificou que havia somente uma bala. Fechou e rodou-o entregando a arma em seguida à Weber.

- Viram? Eu sou um jogador honesto – disse ele, sorrindo. – Agora escolham suas armas, senhores.

Primeiro veio César que escolheu a arma que ficava no canto superior direito do estojo. Do esquerdo ficava a do Weber. Eduardo escolheu a arma do canto inferior direito. Marcelo preferiu ficar com a do meio. O revólver do canto inferior esquerdo estava reservado para Michel. Todos de arma em punho. Weber os convidou para sentar à mesa em que antes estavam jogando dominó.

Quem iria começar? Essa era a pergunta que povoava a cabeça de César, Eduardo e Marcelo. Weber sugeriu tirar a pedra do dominó com maior número e, sem dizer uma palavra, todos concordaram. Ele embaralhou e cada um tirou uma.

- Quem tirar a maior começa. - explicou Weber - Eu tirei três e dois, então dá cinco.

Eduardo ficou com medo de olhar a própria pedra. Quando olhou teve um alívio. Mostrou à mesa: era dois e um, ou seja, três.

Marcelo estava apavorado com a hipótese de começar o jogo estourando os próprios miolos. Sua mão suava de tanto pavor e ele não conseguia se mexer. Olhou para Weber pensando em desistir, mas a ganância falou mais alto. Fechou os olhos e abriu a mão vagarosamente, deixando os demais verem a pontuação da pedra.

- É nove ! Quatro e cinco ! - gritou de alegria Weber - Não vou ter mais que começar!

Marcelo entristeceu. Será que ele teria realmente que começar aquele jogo macabro? Sua última esperança era a próxima pedra a ser tirada.

Todas as atenções se voltaram para César. Era a sua sorte que definiria o jogo. Ele não escondia o medo, mas permanecia firme em sua decisão. Agora era ele ou Marcelo que iniciaria o jogo. Tomou fôlego e jogou sua pedra na mesa. A expectativa era tanta que a pedra parecia cair rodando em câmera lenta. Ela caiu na mesa e foi batendo até parar virada para baixo, em frente a Weber. Este olhou para César e levou sua mão calmamente até pousá-la sobre a pedra. Olhou novamente e virou-a bruscamente sem tirar os olhos dos olhos de César. Marcelo se aliviou. Era a pedra apelidada de carretão, seis e seis. Infelizmente o escritor tirou a pontuação máxima: doze pontos. Abaixou a cabeça. Eduardo colocou a mão no ombro dele para dar-lhe apoio, mas estava feliz por não ter que começar.

- Sinto muito, César, - disse Weber, sorrindo - você vai ter que começar.

César olhou para a arma e a levantou lentamente em direção à cabeça. Elevou seus olhos firmes em direção a Weber que tinha um leve sorriso nos lábios. Com a arma em posição de disparo e os olhos de Marcelo, Eduardo e Weber pousados sobre si, César fechou os olhos e puxou o gatilho. O medo foi substituído por um sentimento de alívio. Seu corpo parecia que estava boiando. Nada aconteceu. Ele abaixou a cabeça e relaxou, ao mesmo tempo em que Marcelo se apavorou: era o próximo.

- Minhas congratulações, César! - ironizou Weber - Agora é a vez do Marcelo.

Marcelo tremia como se estivesse abaixo de zero grau. Levantou a arma até a cabeça devagar. Ameaçou baixar.

- Não desista. Lembre-se dos dois milhões. - disse o anfitrião, induzindo-o.

Ele olhou para Weber, levantou a arma, apertou-a na mão. Suava muito. Fechou os olhos e puxou o gatilho. Nada aconteceu. Ele ficou anestesiado. Parecia que acabara de ver o filho nascer. Seu rosto estava coberto de suor, mas estava aliviado, principalmente agora que era a vez de Weber. Toda a amizade que ele sentiu durante todos esses anos não era nada, perto do ódio que ele agora ostentava. Sua vontade era que o tiro estourasse os miolos de Weber, assim os três poderiam dividir o dinheiro.

O anfitrião sorriu sob o olhar atônito dos três. Parecia não estar preocupado com o que poderia acontecer. Levantou a arma até o ouvido. Não fechou os olhos, não apertou a arma na mão e nem mesmo transpirou. Olhava para César, que estava à sua frente, sorrindo. Puxou o gatilho e gritou bang. Nada aconteceu novamente. Ele ria muito.

- Como eu disse, sou um jogador.

César ficou sem reação ao ver Weber sorrindo daquele jeito enquanto eles se apavoravam.

- Você não tem medo de morrer? - perguntou César.

Weber se virou para ele.

- Por que você não pergunta ao Du, afinal agora é a vez dele.

Eduardo não gostou nada da brincadeira. Não queria se passar por covarde, afinal era de Eduardo Candeias de Sá, o advogado criminalista, de quem estavam falando; não de um qualquer. Ele já havia resolvido dezenas de processos contra assassinos e chefões da máfia e não seria diante de uma situação desafiadora dessas que ele iria se amedrontar. Pegou a arma, levou até a cabeça e puxou o gatilho sem hesitar. Ouviu-se um barulho ensurdecedor e a bala saiu explodindo os seus miolos. Marcelo gritou ao ver o corpo de Eduardo se estatelando no chão, com o sangue escorrendo de sua cabeça. Ele permaneceu ali, parado e de olhos abertos, sem que qualquer um dos presentes o tocasse. Weber não se alterou, afinal era menos um a disputar com ele. César ficou estático. Não tinha o que fazer. Sentia muito, mas Eduardo estava morto. Marcelo chorava pelo amigo, aquele amigo que havia crescido com ele. Passaram os melhores momentos da vida juntos e agora ele estava morto. Sentiu o ódio crescer dentro de si de tal forma que estava prestes a avançar no pescoço de Weber que, mais rápido, soube se esquivar:

- Não fique assim, Marcelo. Ele também era meu amigo. Olhe, eu sei que isso não vai trazer o Du de volta, mas é o máximo que eu posso fazer.

Tirou do bolso um maço grosso com notas de cem e o entregou a Marcelo.

- Dê o melhor enterro que uma pessoa possa ter. O que sobrar pode ficar para você.

Marcelo sabia que iria sobrar muito dinheiro daquele maço, porém, o medo o fez desistir de todo aquele jogo de morte ao ver o amigo sagrando no chão.

- Desisto, Weber. Não quero morrer! Eu... eu....vou embora.

Quase que suas palavras não saíram devido à adrenalina.Weber não gostou da sua desistência e como a brincadeira terminaria ali, irritado, falou alto para Marcelo antes que ele saísse:

- Marcelo, espere. Preciso te falar uma coisa. Uma coisa que eu jurei que nunca iria revelar a ninguém, mas devido às circunstâncias eu...

Marcelo voltou e interrompeu

- Você tem algum segredo que eu deva saber, seu maldito? – perguntou, ao mesmo tempo intrigado e nervoso.

Weber o encarou sem aquele sorriso medíocre.

- Se eu te dissesse que fui eu quem espalhou o boato de que você e o Du eram namorados na escola. O que você faria?

Marcelo ficou parado diante dele sem dizer uma palavra. Aquela dúvida o corroeu durante anos sem qualquer resposta. Qual o motivo que Weber tinha para fazer isso comigo e com Eduardo?, pensou.

Weber fez sinal com a mão para que Marcelo se sentasse. Ele obedeceu. Dirigiu-se lentamente à cadeira e sentou-se. Teve medo. Marcelo se perguntava do que Weber seria capaz de fazer para alcançar os seus propósitos.

Weber acendeu um cigarro e deu uma tragada profunda. Soltou a fumaça vagarosamente.

- Você deve estar se perguntando por que eu fiz aquilo, não está?

Marcelo não respondeu e Weber continuou.

- Eu era apaixonado pela Sandra, mas ela nunca me deu bola, desde aquela época. Dizia que gostava do Michel e sempre aparecia abraçada com ele no Dante. Eu ficava puto da vida cada vez que isso acontecia. Você sabe que eu detesto perder, mas a questão não era só essa. Ela era alguém de quem eu realmente gostava e eu sou capaz de fazer qualquer coisa para conseguir o que quero. Aprendi isso com o meu avô e sempre honrarei o seu nome.

César, que até agora era só um espectador, resolveu interromper:

- Mas o que isso tem a ver com o Marcelo e o Eduardo?

- Eu já vou chegar lá- respondeu Weber. – Um dia eu estava no banheiro com a porta trancada. Marcelo entrou e começou a assoviar. Eu sabia que era ele pela música que estava assoviando. De repente, chegou o Eduardo fazendo um escândalo, dizendo que precisava contar uma novidade quentíssima. E contou. Contou que tinha ficado sabendo que eu havia levado um tremendo fora da Sandra e que estava pensando em me sacanear espalhando para o colégio todo o que tinha acontecido. E Marcelo concordou!

- Mas era só de brincadeira. – defendeu-se Marcelo – Não tínhamos a intenção de te prejudicar.

- Eu me apavorei. – continuou Weber. – Eu seria ridicularizado pelo colégio inteiro. Logo eu!? O neto de Klaus Weber e filho de Friedrich Weber. Não. Não poderia deixar sujar o nome de minha família. Foi então que eu tive a idéia de espalhar aquele boato pela escola. Todos iriam comentar e vocês teriam de se preocupar com isso em vez de fofocar a meu respeito. E deu certo.

Marcelo ficou estarrecido com o que ouviu. Sentiu ódio mesclado com medo e ficou confuso. Ele estava com muito medo de Weber, mas, ao mesmo tempo, queria acabar com ele. Sua vida não lhe interessava mais; não valia mais a pena. Só o ódio, a raiva e a gana de Weber lhe importavam agora. Pegou a arma que havia deixado em cima da mesa e, com uma lágrima escorrendo pelos olhos, concordou em continuar. Ele precisava continuar até o fim, pelo menos para limpar a memória de seu amigo. Era tudo ou nada.

Prosseguiram o jogo. Weber conseguiu o que queria: continuar o jogo sem que os outros participantes pensassem em desistir.

Era novamente a vez de César, e Weber não perdeu a oportunidade:

- Espero que este pequeno incidente não esfrie o seu ânimo, César.

Ele ignorou Weber. Pegou a arma, levou até a cabeça e puxou o gatilho sem hesitar. Nada aconteceu. César parecia que tinha perdido o medo depois da morte de Eduardo. Agora ele só queria vencer Weber, custasse o que custasse.

Marcelo já não pensava assim. Ele queria sair dali, mas com o conteúdo do cofre de Weber nas mãos. Procurava não pensar no que havia acontecido a Eduardo para não se desencorajar. Sua vez chegou. Olhou para a arma e levantou-a lentamente até o ouvido. Dava para ver o suor escorrendo de sua testa e ouvir as batidas do seu coração. Olhou para Weber e virou a cabeça em direção a César. Fechou os olhos e puxou o gatilho. A bala penetrou o seu crânio com tamanha velocidade que varou sua cabeça. Seu corpo caiu no chão e permaneceu ali, inerte, sob o olhar de Weber e César, que fez o sinal da cruz e abaixou a cabeça. A bala de um revólver, quando disparada contra o ouvido de uma pessoa, faz com que a caixa craniana se desfaça quase que por inteira.

Agora só restavam os dois.

Weber não se preocupou com a chegada novamente da sua vez. Pelo contrário: estava tranqüilo. César não sabia de onde ele tirava tanta coragem para encarar aquele revólver carregado em seu ouvido. Levantou a arma lentamente para fazer suspense e, olhando fixamente para o seu oponente, puxou o gatilho. Nada aconteceu. Realmente Weber não tinha com o que se preocupar.

Era chegada novamente a vez de César. Weber não parava de sorrir.

Por que ele sorri tanto?, César pensava.

Olhou para a arma. Olhou para Weber sorrindo. Levantou-a lentamente em direção à cabeça e não pensou duas vezes: num gesto rápido mirou para a testa de Weber e atirou. Nada. O sorriso de Weber esvaiu-se imediatamente. Atirou de novo. A bala saiu estourando os miolos dele, que caiu para trás com a cadeira, espatifando-se no chão. César levantou e se aproximou dele. Viu Weber morto, de olhos abertos com o sangue escorrendo do buraco feito na testa pelo projétil. Lamentou ter feito aquilo, mas era ele ou Weber. Agachou e pegou o papel dobrado no bolso de Weber. Abriu e olhou. Ficou pálido e ao mesmo tempo irado. Idiotas, eu sempre venço! era o que estava escrito. César não acreditou. Weber preparara uma cilada. Ele queria lhes pregar uma peça, nem que isso lhe custasse a vida.

- Meu Deus! Ele era insano!

César, pelo menos, tinha o consolo do dinheiro dado ao Marcelo. Pegou o maço e foi em direção à porta.

Dê a César o que é de César, pensou. Olhou para trás e teve vontade de chorar com a cena: três dos seus, pelo menos supostos, melhores amigos mortos com um tiro na cabeça e um rio de sangue escorrendo em direção ao ralo. Quinze anos de amizade desperdiçados em um jogo idiota. Virou as costas e saiu. Estava triste com o que acabara de acontecer e jamais esqueceria aquela noite. Andou pelo jardim em direção ao portão. A noite se resumia em sangue, ódio, amigos ausentes e balas. Tudo havia terminado. Pelo menos era o que ele pensava. Sentiu algo estranho e parou. Notou alguma coisa a alguns metros à sua frente. Não soube o que era até começar a rosnar. Sua espinha gelou. Começou a afastar-se vagarosamente. Num gesto rápido, começou a correr de volta ao salão de jogos, sendo perseguido pelo rotweiller que latia sem cessar. Entrou rapidamente e fechou a porta de correr deixando o cachorro do lado de fora latindo e arranhando-a. Isso prosseguiu por mais um minuto e parou.

Acho que ele foi embora., pensou.

Ele não entendia como havia se soltado. Quando César entrou, o cachorro não estava preso em uma corrente, e sim em uma jaula. Não poderia ter se soltado. Alguém o soltou.

- Quem mais poderia ter soltado o cão a não ser o desgraçado de Weber! - gritou César, nervoso - Maldito Weber.

Weber havia se afastado deles no momento em que foi buscar as armas. Ele tinha preparado tudo: o bilhete, o cachorro, as armas.... Agora César tinha que dar um jeito naquele cachorro.

A única solução é matá-lo, pensou. Mas como?

Lembrou-se de que a arma de Weber não havia disparado nenhum tiro. Pegou-a, abriu o tambor e viu uma única bala dentro dele. Colocou-a na agulha e fechou o tambor. Foi em direção à porta de arma em punho e abriu-a vagarosamente. O cachorro não estava mais lá. Assobiou e ele apareceu dez metros à frente. Veio correndo e latindo em sua direção. Era uma única bala e ele não poderia errar. Mirou e esperou chegar mais perto. Quando estava a poucos metros, atirou. Nada aconteceu.O cachorro não morreu e ainda avançou em seu braço, mordendo-o. César gritava de dor. O cão mordia e balançava o braço dele além de salivar muito. A dor era imensa, sem comparação. Não teve escolha: puxou o braço trazendo a cabeça do cachorro ao nível da porta e empurrou-a com força, batendo na cabeça dele que continuava firme. Puxou a porta novamente e empurrou-a com força batendo na cabeça do cão várias vezes.

- Morre desgraçado! Morre! - gritava César, com o braço sangrando.

Foram tantas as batidas que a cabeça do cão ficou esmagada e ensangüentada, no canto da porta. Mais um corpo para brindar a noite com vinho tinto de sangue. César ficou sem fôlego e com o braço dilacerado. Sentou no sofá chorando de dor e pegou um pedaço da manga da camisa de Eduardo e amarrou na parte ferida com a ajuda da boca. Um pensamento não lhe saía da cabeça:

Eu acertei no meio da testa do maldito. Como ele pôde sobreviver? Havia uma bala na agulha. Eu mesmo a coloquei.

Ele não entendia por que o cachorro não tinha morrido. Lembrou-se de que a arma era de Weber e ficou revoltado:

- Ah não! A bala era de festim! Só podia ser. Não tinha pólvora. Mesmo se atirasse, ele não morreria. – começou a chorar - Weber nunca se arriscou a tomar um tiro na cabeça, por isso estava tão confiante. Que tipo de ser humano seria capaz de ferir outro ser humano, meu Deus!?

César amaldiçoou Weber até se cansar. Levantou-se, pegou o maço de dinheiro que ele havia deixado em cima da mesa de sinuca e a arma que estava reservada para Michel na mala, arma que ele deveria ter pegado em vez da arma do algoz. Se tivesse feito isso, talvez o seu braço não estivesse quase dilacerado agora. Saiu pela porta e caminhou pelo jardim com a arma em punho em direção ao portão. Depois de tudo, ficou muito desconfiado. Foi caminhando, olhando para ver se não encontrava nenhuma das armadilhas de Weber pelo caminho. Parou. Tinha algo estranho atrás de um arbusto. Caminhou com cautela até lá, de arma em punho. Foi se aproximando e percebeu que era um homem estirado no chão. Ficou com medo de se aproximar mas, mesmo assim foi chegando perto, aos poucos. Cutucou o homem com o pé e percebeu que não se mexia. Abaixou-se e virou a cabeça. Seus olhos se arregalaram e ele empalideceu. Lágrimas escorriam de seus olhos. O homem era Michel e estava com o pescoço rasgado. Weber pensou em tudo mesmo. Quem ousasse desistir e saísse daquele salão jamais chegaria até à rua. Seu cachorro daria cabo à quem ousasse tentar e nenhum dos outros escutaria nada.

Pobre Michel. O único com a cabeça no lugar foi o primeiro a morrer. - pensou César, com pena.

Levantou e caminhou em direção ao portão. Olhou para trás e relembrou tudo em um segundo, sacudindo a cabeça. Realmente César não estava preparado para aquela noite. Quando acordou, de manhã, seu pensamento era de rever alguns amigos, falar de mulher e se divertir. E agora, os corpos de seus amigos, com exceção de Weber, que agora ele não considerava mais amigo, estavam lá dentro daquele salão, jogados como se fossem lixo. Ficou observando a mansão por alguns segundos, deu as costas em direção ao portão. Apertou um interruptor e este, por sua vez, abriu o portão eletronicamente.

Saiu caminhando vagarosamente pela rua. Recordava tudo o que havia acontecido desde o momento em que acordou naquele dia, até o último segundo atrás. De repente, parou e olhou para trás. Um estranho pensamento lhe veio à mente e ele começou a rir e ao mesmo tempo chorar. Ele ria e chorava sem parar. Olhou para cima:

- Olha, Du, se esta história não é interessante, estes personagens não são fortes e estas revelações não são surpreendentes, então eu não sei o que são!

Disse estas palavras e saiu caminhando lentamente pela rua.

PUBLICADO ORIGINALMENTE NO LIVRO "MANSÃO KLAUS E OUTRAS HISTÓRIAS"

Edson Rossatto
Enviado por Edson Rossatto em 24/03/2007
Código do texto: T423784
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