Virgem de Nuremberg
Ele ligou o rádio e continuou a dirigir. Naquela noite, a emissora havia preparado um repertório inteiro de rock e, no momento, a música que estava tocando era Layla, versão acústica, de Eric Clapton. Já estava na metade, quando ligou. O cavalheiro tentava deixar a garota à vontade, o máximo possível.
- Gosta de rock?
Ela sorriu e acendeu um cigarro. Deu uma tragada demorada e soltou a fumaça, lentamente. Fazia o tipo mulher fatal, mas tinha um jeito de menininha que encantava. Seu sorriso, uma combinação de dentes perfeitos com lábios carnudos, faria qualquer homem cair a seus pés.
- Adoro! Gosto de qualquer banda, mas sou apaixonada pelo Guns N’Roses. O Axl é demais!
- Eu também gosto – ele abriu um sorriso e voltou o olhar novamente para a estrada – Qual a música deles que você mais gosta?
Ela pensou um pouco, colocando os cabelos atrás da orelha. Aqueles pequenos gestos deixavam-no muito excitado. Enquanto a resposta não vinha, ele aproveitou para dar uma olhada nas pernas grossas da garota. Com aquele vestido que usava, dava para ver até a metade das coxas. O sorriso se abriu e a resposta veio em seguida:
- It’s alright.
O rapaz fez cara de quem não havia compreendido nada.
- Qual?
A garota soltou uma gargalhada generosa, deixando-o sem entender. Ficou observando-a, esperando uma explicação.
- Por que está rindo?
Ela, ainda com um sorriso nos lábios, colocou a mão em seu ombro, confortando-o.
- Não se preocupe por não saber. Eles regravaram. O original é do Black Sabbath. Todos só gostam das músicas que fizeram mais sucesso, tipo Don’t cry, November rain. Esta muita gente não conhece.
Ele olhou-a e balançou a cabeça, contemplativo.
- Nossa! Realmente você parece gostar muito.
Ela deu outra tragada e sorriu maliciosamente. O clima estava muito harmonioso e divertido. A garota percebeu um fogo-cruzado de olhares e gostou.
Finalmente chegaram. A fachada da casa era muito extensa, chegando a ter quase cinqüenta metros. O muro era coberto por trepadeiras e o portão era de imbuia. Acionou o controle remoto e o caminho se abriu. Ele entrou com o carro, sem parar, só diminuindo a velocidade. Estacionou adiante e desligou o rádio.
- É aqui.
Ela olhou pela janela e pensou estar tendo uma visão, tão majestosa e grande era a mansão. Nunca tinha visto uma casa daquele porte, a não ser pela TV. Definitivamente era uma bela construção. Sua cor era vinho, com janelas em um tom mais escuro, realçadas pela iluminação, artisticamente planejada, para destacar suas formas e cores. Tinha um jardim imenso, com um enorme chafariz: uma estátua do deus Netuno segurando um vaso jorrando água, acentuando o estilo clássico da mansão, rodeada por diversas árvores e plantas ornamentais.
Ela ficava imaginando como seria por dentro, pois achara a fachada esplêndida.
- Nossa! O que você faz na vida para ter uma casa assim?
Ele sorriu enigmaticamente.
- Herdei uma empresa de segurança patrimonial do meu pai. Vivo sozinho com a minha mãe nesta casa. Acho-a um pouco grande para nós dois, mas já me acostumei.
Olhava a jovem admirado com sua beleza e, para isso, tinha motivo. Os cabelos avermelhados e lisos balançavam ao toque da brisa noturna. Seus cinqüenta e sete quilos eram bem distribuídos em um corpo de um metro e setenta e dois de altura. Os olhos cor de mel reluziam e sua linda pele clara denunciava a ausência de exposição ao sol.
- Então, vamos? – disse ele, abrindo a porta do seu Audi negro e saindo.
Ela ia abrir a porta para descer, mas ele se adiantou. Estendeu a mão e ela foi receptiva.
- Nossa! Que cavalheiro!
Realmente ficou surpresa. Os homens com quem saíra anteriormente jamais haviam feito isso. Nem mesmo eram capazes de lhe dirigir palavras bonitas.
Ele lhe deu o braço, e ela aceitou. Foram conversando pelo jardim, em direção à entrada da casa. Preferiram o gramado ao caminho de pedras.
O céu estava bem estrelado. A lua acompanhava as estrelas. Era perfeita para duas pessoas passarem uma noite muito romântica. Subiram a escadinha de dois degraus e, finalmente, chegaram à porta da sala. Ele tirou as chaves do bolso, procurou uma em especial, colocou-a na fechadura e girou. Deu um leve empurrão na porta e convidou a garota a entrar. Estava escuro. Tateou a parede e acendeu a luz, deixando a garota boquiaberta.
A sala era fantástica. As paredes eram forradas com papel em um tom claro de creme com algumas gravuras em detalhes pequenos, quase imperceptíveis. O tapete era grosso e ela quase tinha certeza de que era um original persa, apesar de conhecer muito pouco acerca de tapeçaria. A mobília era um conjunto em estilo colonial, com móveis em madeira escura e maciça, abajures pelos cantos e um tabuleiro de xadrez, já montado, em uma pequena mesa, com uma partida iniciada, mas não terminada. O lustre era um objeto à parte. Parecia um bolo de casamento invertido, com seus três andares em tamanhos diferentes só que, em vez de glacê, havia pequenas gotas de vidro dependuradas em suas bordas. A luz, que transparecia, fazia com que o ambiente ficasse com um brilho diferente do costumeiro. Era como se tivessem voltado ao século XIX, ainda mais com aquele grande relógio carrilhão na parede, bem no centro da sala, esculpido por um artesão italiano de nome Giuseppe Andolinni em meados do século XIX.
Já octogenário, Andolinni quis deixar um último trabalho pronto, e que fosse o seu melhor, na tentativa de que seu filho adolescente tomasse gosto pela carpintaria artística. Porém seu herdeiro entendia que não valia a pena. Talvez pela pouca experiência de vida, achava que carpintaria era um trabalho tosco e sem reconhecimento. Andolinni acabou morrendo de velhice, sem ver seu primogênito seguir sua carreira. Pelo contrário, assim que seu pai morreu, Bruno Andolinni desfez-se de todos os seus bens, principalmente desse relógio que foi negociado por uma boa quantia com um jovem arquiteto e em cuja família permaneceu por várias gerações até que, há alguns anos, foi herdado pelo seu bisneto. Este também quis se livrar de tudo que era velho. Sendo assim, colocou a peça em um leilão em Florença, onde Heinrich o adquiriu por alguns milhares de dólares. Desde então, tem sido o grande adorno daquela sala.
- Aceita uma bebida?
- Mas é claro! – respondeu sorridente e encantada.
- O que vai querer, my Lady!?! – sorriu.
My lady? Meu Deus, onde encontrei esse gentleman?, pensou.
- Bem, você tem Martini?
- Eu tenho coisas que você nem de longe pode imaginar.
Pelo tom cabalístico com que ele jogou aquelas palavras no ar, qualquer um ficaria em dúvida se ele se referia somente a bebidas.
Ele sorriu e foi até o bar, afastando-se sem tirar o olhar maroto dos olhos dela. Enquanto isso, a pequena ficou observando os enfeites e bibelôs. A estante tinha centenas de livros, o que a deixou muito interessada. Apreciava uma boa leitura. A casa tinha livros de escritores consagrados como Mark Twain, Alexandre Dumas, Júlio Verne e H. G. Wells. Mas o que mais chamou a atenção de Jennifer foi O Médico e o Monstro. Quando o leu, há muito tempo, ficou fascinada com a idéia de personalidades divergentes dentro de uma mesma pessoa. O dócil Dr. Jekyll com um assassino como Mr. Hyde dentro de sua própria alma. Quem supunha que isso poderia acontecer? Só mesmo na cabeça de um escritor fantástico, como Robert Louis Stevenson.
- Você tem excelentes livros aqui.
O cavalheiro parou o que estava fazendo e se virou, com um copo na mão e o pegador de gelo na outra.
- Vejo que além de bela, também aprecia a boa literatura.
Sorriu meio encabulada.
- Então, como é o seu nome?
A garota se virou bruscamente, deixando os cabelos voarem.
- Jennifer.
Ele também se voltou e sorriu.
- De novo com isso?! Eu estou falando sério!
- E eu também! – insistiu ela – Meu nome é Jennifer, sim! Você é que não me falou o seu.
- Não falei porque não acreditei no seu – disse, enquanto mexia o gelo em seu whisk.
A moça, calmamente, colocou de volta na estante o livro que estava segurando e disse em tom seco:
- Meu nome é tão importante para você?
A garota mostrou-se um pouco incomodada com a conversa iniciada.
- Se quiser, eu posso inventar um outro, mas meu nome é Jennifer. Que tal Bianca? Você gosta?
Ele a encarou seriamente e pegou os copos. Foi ao encontro dela e entregou o seu Martini.
- Se você diz, acredito em você.
Estendeu a mão e ela o cumprimentou.
- Muito prazer! Weber, Heinrich Weber!
- O prazer é todo meu. Seu nome é alemão?
- É austríaco. O sobrenome vem do meu avô.
- Deve ter sido um homem e tanto – disse, querendo ser gentil.
Weber olhou pensativo para o lado por alguns segundos. Parecia navegar nos pensamentos.
- Era! – pausou - Com certeza, era!
Ele então a encarou e foi descendo os olhos pelo seu corpo.
- Vamos falar de negócios?
Ela mordeu os lábios, sorrindo, com aquele olhar mal intencionado.
- Só estava esperando.
Heinrich Weber conseguia soltar alguns sorrisos enigmáticos que chegavam a intrigar.
- Qual é o seu preço?
Jennifer colocou o copo em cima da estante e pôs os braços em volta do pescoço dele. Encostou os seios em seu peito e apertou o abraço. Fazia isso para que ele constatasse a qualidade da mercadoria. Tudo isso sem desviar o olhar dos olhos de Heinrich.
- Seu bobinho! Por que não perguntou enquanto estávamos na boate?
Deu um leve encostar de lábios nele.
- Esse tipo de negócio, eu prefiro tratar em casa, no aconchego do meu lar – disse, enquanto apertava aquela bundinha com carnes firmes e lisinha, embaixo daquele vestidinho de cetim anilado.
- E a sua mãe? Ela não vem aqui?
Ele depositou o copo na estante e passou os braços pela cintura dela. Jennifer, por sua vez, pegou uma das mãos dele e a levou até o seio. Apertou-o com a mão dele por baixo. Soltou um gritinho quase imperceptível. Tudo isso com um olhar penetrante. Pura sedução. Weber estava louco de excitação, mas procurava se controlar.
- Minha mãe me deixa em paz. Ela não se mete nos meus negócios. Não se preocupe.
Ela aproximou seus lábios aos dele e beijou-o ardentemente. As línguas se encontravam e se entrelaçavam, experimentando o gosto um do outro. Jennifer parecia estar muito encantada com o tratamento recebido de Weber. Segundo o código das meretrizes, pode-se fazer tudo, menos dar beijos na boca, pois correm o risco de se apaixonarem pelos seus clientes.
Mas Jennifer não resistiu a tanto encanto e se deixou levar. Weber também não era de se jogar fora. De ascendência austríaca, tinha pele clara e olhos azuis; o corpo másculo e atlético era fruto de muitos exercícios praticados em academias de musculação e natação. Tinha um metro e oitenta e três, fato que fazia Jennifer olhar um pouco para cima quando queria fitá-lo nos olhos. Seus cabelos eram curtos e loiros, um pouco escuros, é verdade, mas ainda assim, loiros. Fazia o estilo esporte-fino, com roupas das melhores grifes. E que tipo de mulher dispensaria um homem com um Audi S4? Enfim, não era alguém de que se pudesse renunciar facilmente.
Os lábios se descolaram e ela o observou nos olhos.
- Meu preço é o seguinte: - soltou-o e sentou-se no sofá cruzando as pernas totalmente torneadas – Seiscentos reais pela noite ou duzentos por duas horas. Não topo anal, nem sadomasoquismo e nenhum tipo de violência. Só transo de camisinha.
Ela pareceu muito decidida e nem um pouco disposta a negociar. Heinrich Weber gostava de gente assim: determinada, como ele.
- De acordo.
Weber percebeu um pequeno sorriso de satisfação no canto da boca. Ela se levantou.
- Legal! Onde é o quarto?
Ele alisou o braço dela e a conduziu novamente ao sofá. Em seguida acompanhou-a.
- Calma! Calma! Primeiro, vamos nos conhecer.
- Conhecer?
Ela estranhou. Normalmente, seus clientes não querem perder um só minuto com conversas. Querem sexo desde o início.
- Tudo bem! O que quer saber?
- Vamos terminar aquela conversa de quando estávamos no bar.
Ela nem lembrava direito o que ele havia lhe perguntado lá, mas ficou sem graça de dizer que tinha esquecido.
- Tudo bem.
- Então quer dizer que você é órfã?
Ficou aliviada, pois ele a lembrou.
- Isso. Perdi meu pai aos treze anos em uma briga de bar. Ele bebia muito e arrumou confusão com um homem que estava armado. Levou três tiros. Morreu na hora.
Ele meneou a cabeça.
- Esse mundo é violento mesmo. Mas você falou tudo de uma forma tão natural. Não sente a falta dele?
Ela riu e levantou os ombros.
- Ah! Ele sempre vivia ausente. Nunca chegou a desempenhar o papel de pai. E, além do mais, já faz muito tempo.
- E a sua mãe?
Aquele assunto mexia com ela. Calou-se por alguns segundos.
- Bem, a minha mãe era uma mulher muito honrada, ao contrário do meu pai.
Tomou um gole do seu Martini e continuou.
- Ela estava vindo de Santos para São Paulo, junto com a minha irmã Soraia e o ônibus se desgovernou. Bateu de frente com um caminhão. A Solzinha morreu na hora. Minha mãe só resistiu por mais vinte minutos.
Jennifer tinha uma vida muito complicada. Não era fácil falar assim, de uma hora para outra. Se fosse com qualquer outro, não falaria, porém, ele estava pagando bem e, além do mais, estava sendo tão gentil. Não podia desapontá-lo.
- E quando foi isso?
- Há dois anos.
- E você não tem mais ninguém?
Ela suspirou. Apontou com o dedo para a cabeça e depois deslizou a mão do tórax até as pernas.
- Não. Não tenho mais ninguém. Só tenho minha cabeça e o meu corpo e é dele que eu vivo.
Sempre muito sedutor, Weber soltou um comentário.
- Muito lindo por sinal! – mediu-o de cima a baixo - Você é muito sexy e, deu para perceber, é muito inteligente e esperta. Não fique triste com isso. A lembrança foi um meio que Deus nos deu para mantermos as pessoas queridas sempre presentes.
Jennifer levantou a cabeça, antes abaixada por alguns flashbacks em sua mente, e sorriu. Estava enternecida com as palavras de conforto que ele havia proferido.
- Venha. Vou lhe mostrar uma coisa. Você vai gostar.
Ele a pegou pelo braço e a levantou. Só deu tempo de ela pegar seu Martini e dar um último gole. Quando foi colocar o copo quase vazio em cima da estante, ele rolou, partiu-se e molhou uma parte do tapete. Weber disse para não se preocupar com o incidente.
- Vamos!
Pegou-a pela mão e a conduziu por um corredor. Ela se sentiu muito bem por estar andando de mãos dadas com alguém tão cortês. Não era todo dia que isso acontecia. Decorria muito tempo desde a última vez que se sentiu assim.
Antes de adotar o nome profissional Jennifer, Cristina era uma garota como outra qualquer. Trabalhava como auxiliar de escritório em uma empresa de telefonia e ganhava o suficiente para sobreviver. Tinha um namorado de quem gostava muito e também vários amigos. Um dia, descobriu que ele a traía com uma garota do escritório onde trabalhava. Foi um choque. Ainda mais porque foi no mesmo mês em que a mãe e a irmã sofreram o acidente. Depois de tantos acontecimentos ruins, sua vida nunca mais foi a mesma. Decidiu não mais ser a garota bonita que os homens gostam de manter do lado, só para exibirem-na. Pelo menos, não de graça. Uma idéia lhe passou pela cabeça e ela resolveu colocá-la em prática. Já que os homens a queriam do seu lado, por que não cobrar por isso? E caro, afinal era o seu corpo que iria ser usado. No primeiro programa de duas horas, Jennifer ganhou quase o mesmo que ganharia se tivesse trabalhado o mês inteiro no escritório. Aquilo lhe encheu os olhos. Continuou e, devido à sua beleza, não foi difícil arrumar clientes. Nunca precisou trabalhar em um ponto ou uma boate. Era só chegar em uma danceteria famosa e esperar. Sempre vinha algum rapaz com aquele papo de conquista. Como sempre, era muito solícita. Ficavam conversando por muito tempo. Quando a convidavam para ir a um lugar mais aconchegante, ela dizia que sim, mas teria de ser paga. Muitos rapazes não aceitavam, mas outros não resistiam àquela beldade.
No primeiro mês de trabalho, nada de ruim aconteceu. Era só dinheiro que entrava. Porém, seus vizinhos começaram a desconfiar, pois ela chegava de manhã, passava a tarde dormindo e saía à noite novamente. Jennifer começou a encontrar bilhetes em sua porta com dizeres como puta, vagabunda, prostituta. Não sabia quem estava fazendo aquilo, mas, antes de piorar a situação, decidiu sair dali. Mudou-se para um apartamento na região da Bela Vista. Foi obrigada a recomeçar e esquecer os amigos antigos. Sua vida era regada a dinheiro, mas ele não conseguia pagar sua paz e dignidade. Era muito solitária e infeliz. Por isso, quando Weber se mostrava educado e gentil, sentia-se muito querida, necessária.
- Para onde está me levando?
- É surpresa.
Ele continuou conduzindo-a pelo extenso corredor. Olhava tudo maravilhada, como uma criança em uma loja de brinquedos. Eram quadros belíssimos pendurados na parede. Algumas pinturas a óleo retratavam pessoas elegantemente trajadas com roupas de época. Os lustres luxuosos realçavam o aspecto antigo da decoração. Tanto o arquiteto quanto o decorador tinham muito bom gosto.
Pararam em frente a uma porta com um grande cadeado. Imediatamente olhou para o rosto de Weber. Percebeu um ar de satisfação. Ele tirou uma chave do bolso, colocou na fechadura e tentou abrir. O cadeado até que foi fácil, mas a porta nem tanto. Teve um pouco de dificuldade devido ao tempo que permanecera fechada. O objetivo foi alcançado, mas não sem um incômodo rangido. O ar vindo lá de dentro cheirava a pó. Jennifer ficou com medo e segurou forte no braço dele, que acabou sorrindo com o jeito dela. As luzes se acenderam.
Era uma escada de madeira antiga que descia para uma espécie de porão. Ao passar por aquela porta, qualquer pessoa se sentiria adentrando um mundo completamente diferente. As paredes eram de tijolos, com muitas teias de aranhas e sujeira. A luz vinha de uma única lâmpada dependurada no teto.
- Heinrich, por que essa escada é assim?
- É para dar um clima. – gracejou.
- E está conseguindo mesmo! – disse ela, amedrontada - Eu não vou entrar aí, não!
- Por quê? Tem medo?
Ela assentiu com a cabeça e ele sorriu, pegando a sua outra mão.
- Ora, Jennifer, eu estou aqui. Estou te dizendo para não ter medo.
Lembrando-se de todas as gentilezas da noite, resolveu confiar nele.
- Tudo bem. Mas segure a minha mão, tá?
- Tudo bem.
Foram descendo, de mãos dadas. Weber foi na frente. Passo a passo, degrau a degrau, escutavam um rangido de madeira. Foi assim, até chegarem ao pavimento inferior. A luz acesa anteriormente só iluminava a escada. A sala que ficava no final ainda estava escura. Ele segurou em uma alavanca e a levantou. As luzes no teto estavam enfileiradas, duas a duas, até o final da sala. Conforme ligou a chave, foram se acendendo, fileira por fileira.
- Jennifer, esse era o hobby do meu avô. – disse, apontando para a sala.
Ela arregalou os olhos. Soltou a mão dele, levou ambas ao rosto.
- Deus! O que são essas coisas?
Aproximou-se e a abraçou por trás.
- Equipamentos de torturas usados durante a inquisição para fazer hereges confessarem suas culpas.
Jennifer estava pasma. Não eram coisas que se viam por aí todos os dias.
- Meu avô era fascinado por essa prática. Passou metade da vida viajando pelo mundo e negociando essas relíquias.
Ficou muito impressionada com aquilo. Era uma coisa que ela nunca pensara existir. Lia muito nos livros escolares, mas ver era completamente diferente. Causava verdadeiro terror só de saber que pessoas morreram ali. Era como se estivesse visitando o corredor da morte, ou a própria câmara de gás.
Weber observava as suas reações.
- O que sabe sobre a inquisição, princesa?
Ela se soltou e virou de frente para Weber. Seus olhos denunciavam total ignorância sobre o assunto.
- Quase nada.
Ele acariciou seu rosto e sorriu.
- Vou explicar. Preste atenção e pergunte, se precisar, ok?
Apesar do lugar ser um pouco lúgubre, Jennifer estava achando tudo aquilo o máximo. Com os outros clientes nunca era assim. Eles só pensavam em chegar ao quarto, tirar a roupa e trepar a noite toda, de todas as formas possíveis.
Ele não. Era gentil, carinhoso e inteligente. A noite seria para ela, no mínimo, muito cultural e, no final, quando tivesse que trabalhar para Weber, sentiria muito prazer.
- Ok! Pode falar. Sou toda ouvidos.
Ele andou um pouco para a frente. Quando começou a explicar, Heinrich parecia um guia de museu. Sua eloqüência era impressionante.
- Bem, no ano de 1184, o Concílio de Verona criou a figura dos bispos chamados Inquisidores Ordinários, cuja missão era visitar as paróquias suspeitas de ações não cristãs. Durante essas visitas-surpresa, eles procuravam pessoas que se opunham ao poder da Igreja, que criavam uma nova seita, que tivessem opinião diferente da Igreja de Roma ou que não aceitassem a doutrina romana no que se referia aos sacramentos. Quando encontravam alguma, o que não era muito difícil naquelas condições, faziam-na confessar seus pecados perante um júri.
- Mas e se elas não confessassem?
Ele coçou a cabeça e sorriu.
- Bem, era aí que entravam essas coisas.
Ela arregalou os olhos, perplexa.
- Usavam isso para que confessassem à força?
Ele assentiu com a cabeça.
- Que crueldade!
- Aí é que estava a graça: na crueldade. O povo gostava, por isso é que a maioria das torturas era feita em praça pública.
Jennifer achava tudo aquilo muito nojento, mas, ao mesmo tempo, estava gostando de ter alguém interessado em lhe explicar alguma coisa. Estava sentindo-se muito bem.
- Cada máquina dessa fazia algo diferente.
Ele foi até à parede e pegou um objeto que estava em uma prateleira
- Esta aqui, por exemplo, era chamada de esmaga-cabeças.
Era uma espécie de capacete com um torniquete que, ao se girar, fazia com que o espaço onde se colocava a cabeça fosse apertado.
- Isso esmagava as cabeças das pessoas? – indagou Jennifer.
- Sim, ele fazia com que a pressão utilizada despedaçasse a mandíbula e o cérebro.
Ela fez cara de nojo.
- Argh! Que aflição! Isso é muito cruel!
- Quer experimentar? – brincou.
- Deus me livre!
Eles riram juntos. Weber colocou o objeto em seu devido lugar e, logo depois, fez sinal com a mão, pedindo que ela o acompanhasse. Andou alguns metros e parou em frente de um grande sarcófago.
- Esta belezinha aqui é conhecida como Virgem de Nuremberg.
Ela se aproximou e olhou mais de perto. Não agüentou e teve que tocar.
- E o que ela faz?
- Bem, é uma invenção alemã usada no século XVI para matar lentamente.
- Como? – perguntou, já curiosa.
Ele apontou umas fendas no sarcófago e umas lâminas na parede.
- A partir do século XVI, o ato de assistir à morte de uma pessoa passou a ser considerado um gesto não-cristão, quando então o Bispo de Nuremberg, na Alemanha, mandou construir este esquife. Não era bem um tipo de tortura e sim uma lenta execução. Colocavam o acusado aí dentro – apontou o interior – e o trancavam. Enfiavam lâminas por estas fendas que trespassavam o corpo. Permanecia ali por vários dias e o torturado acabava morrendo por hemorragia.
A garota ficou perturbada com aquelas barbaridades ditas por Weber. Poderia mesmo existir maldade humana assim? Sentiu uma tontura leve. As incríveis revelações daquela noite mexiam com a cabeça de qualquer um.
- É muita maldade, Weber! Como podiam fazer isso?
Ele a abraçou e beijou a sua testa.
- Você ainda não viu nada, minha princesa. Agora vem o objeto que mais me fascina.
Weber a puxou pela mão e a conduziu a uma cadeira no canto da sala. Parou diante dela.
- Este é o artigo mais raro da minha coleção: a Cadeira Inquisitória.
O que mais chamou a atenção de Jennifer foram as pontas de madeira e ferro espalhadas pelo assento, braços e encosto.
- O condenado devia sentar-se e ser preso na cadeira sobre as pontas. Cada mínimo movimento fazia com que essas agulhas perpassassem seu corpo.
Jennifer se arrepiou. Sentiu tontura de novo e se apoiou nele para não cair.
- Ela tem mil seiscentas e seis pontas de madeira e vinte e três de ferro. Foi fabricada na Alemanha, provavelmente no século XIV. Foi usada em cerca de quarenta mil condenados.
A garota começou a suar.
- Você está bem?
Ela só sentiu a visão escurecer, não dando tempo de responder.
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Abriu os olhos lentamente e a luz os feriu. Estava vendo tudo distorcido, mas, aos poucos, a visão estava retornando. Não sabia o que tinha acontecido, mas sentia frio e muitas dores. Seu corpo tremia e só então percebeu que estava completamente nua. Estava deitada em uma mesa de madeira com os braços presos em braçadeiras, esticados acima de sua cabeça. As pernas também estavam presas em braçadeiras e esticadas. Sua voz havia se calado pela mordaça. Tentou fazer força para se soltar. Em vão. Aquilo tinha sido construído para resistir a muita força, então ficou desesperada. Não podia nem mesmo gritar. Escutou alguns passos vindos em sua direção. Viu um homem sob a luz. Sua visão ainda estava distorcida, mas ela o reconheceu: era Weber. Sentiu muito medo.
Ele acendeu um cigarro e sentou-se em uma cadeira próxima. Deu uma tragada e ficou observando-a. Sua feição havia mudado. Não havia mais a pureza e gentileza que antes eram tão constantes; pelo contrário, Jennifer viu, em seus olhos, um pouco do tão temido Mr. Hyde.
- É realmente uma pena que o sonífero fizesse efeito antes de eu poder lhe apresentar a mesa, na qual você está deitada.
Ela fez alguns barulhos sob a mordaça e ele inclinou a cabeça sarcasticamente.
- Quer saber a razão de tudo isso?
Levantou-se e pôs o cigarro na boca. Levou sua mão até as pernas dela, foi alisando e subindo-a pelo corpo, passou pelo púbis e, ali, acariciou a sua genitália. Ela sentiu nojo como nunca havia sentido nesse tempo todo como prostituta. Como pôde ter se enganado com toda aquela conversa e não perceber o monstro que ele era?
Continuou a subir a mão. Pousou-a sobre os seios de Jennifer que eram volumosos e bonitos. As auréolas eram rosadas e os bicos pequenos. Apertou-os com gosto. Apesar de não fazer parte do seu plano, Weber sentiu muito tesão. Ele não imaginava encontrar uma mulher tão bonita e sedutora, mas isso não poderia interferir no real propósito de ela estar naquele lugar. Ficou com a mão ali enquanto justificava para Jennifer.
- Não se preocupe. Eu vou lhe explicar tudo.
Seu corpo ainda tremia muito e ela não sabia distinguir se era frio ou pavor.
- Meu avô era membro da Schutz Staffel, a S.S. Nazista. Era encarregado da guarda de Auschwitz, o mais importante campo de concentração de judeus da Polônia.
Ela estava desesperada com aquilo. Queria sair dali, mas não sabia como. Weber continuava a falar e a acariciar os seus seios.
- Ele costumava torturar muitos judeus. Quanto mais fazia isso, mais vontade de torturar sentia. Com a morte de Hitler e o fim da segunda guerra, fugiu para o Brasil e constituiu uma família, escondendo de minha avó todo o seu passado.
Lágrimas escorriam dos olhos dela. Agora sabia o real significado das palavras terror, temor, medo, angústia, desespero e dor.
- Com alguns objetos de ouro roubados dos judeus, investiu em um sítio de uvas no Paraná. Trabalhou muito e fez fortuna, mas, apesar de amar a minha avó, aquela vida monótona não o satisfazia. Sentia falta dos anos em que passou a serviço do III Reich.
Sua mão ainda estava pousada sobre o seio de Jennifer. Ele apertou um pouco. Olhou para os olhos dela e viu lágrimas. Por um momento, Jennifer pensou ter visto um olhar de compaixão. Mas a jovem meretriz se enganou: Weber segurou o bico do seio com os dedos e o cortou com um estilete, que estava enrustido na outra mão. Ela berrou de dor por debaixo daquela mordaça. Sua pele branca se mesclava com o sangue saído do ferimento. Seu seio ficou com um pequeno orifício vermelho no centro, onde deveria estar a auréola. Ele só a observava; sem reações.
- A tortura excitava o meu avô.
Como era possível alguém, com tamanha maldade no coração, existir? Ela chorava muito em uma mistura de dor e medo de morrer. Weber limpou a lâmina do estilete com um lenço e depois tirou o sangue de suas mãos. Jogou o cigarro no chão e pisou, continuando a falar como se nada tivesse acontecido.
- Ah! Eu ainda não lhe disse o nome dele, não é? Que cabeça a minha! Meu avô se chamava Klaus Weber. Demos o nome dele para esta mansão. Bela homenagem, não?
Ainda chorando, a garota tentava falar alguma coisa, mas a mordaça a impedia, saindo somente grunhidos sufocados. Heinrich continuou:
- Ele começou a pesquisar as formas e práticas de torturas. Ficou fascinado pela Inquisição. Viu fotos e gravuras de instrumentos usados nela e resolveu comprá-los. Onde quer que estivessem, ia até lá e os comprava. A fazenda de uvas dava cada vez mais certo e, com isso, sobrava dinheiro para as suas aquisições. Dizia para a minha avó que era um hobby, uma forma de passar o tempo. Ele adquiria dezenas dessas coisas e as levava para a sua fazenda. Quando morreu, meu pai herdou toda a sua fortuna e sua coleção. O dinheiro, ele soube administrar muito bem. Vendeu o sítio e veio para São Paulo. Fundou uma empresa de segurança patrimonial e triplicou a fortuna. Quanto aos objetos, não tinha muito interesse, mas, era uma vontade de meu avô que as máquinas fossem passadas para mim. Então meu pai construiu esta mansão há dez anos e reservou este espaço especial para elas. Morreu quatro anos depois em um acidente de avião. Assumi os negócios da família e estou aqui, bem na sua frente.
A jovem sangrava muito. A dor era terrível. Não conseguia mais fazer nenhum tipo de esforço.
- Jennifer, eu sempre tive curiosidade de saber o que o meu avô sentia ao torturar uma pessoa.
Ela continuava a chorar, porém sem forças para se mexer ou gritar. Seu corpo doía muito. Começou a rezar em pensamento. Era o que lhe restava agora.
- É aí que você entra. – disse ele, com um sorriso leve e sarcástico no canto da boca.
Sentou-se na cadeira.
- Não sei se ele torturou alguém nestas máquinas, mas sei que era muito bom nisso durante sua estada em Auschwitz. – continuou a observá-la - Você desmaiou antes que eu pudesse lhe explicar como funciona o Balcão de Estiramento, onde está.
Ela estava apavorada. Suava gelado e seu coração batia aceleradamente.
- Vou lhe explicar: seus pés estão presos deste lado e seus braços deste outro. Conforme giramos essa manivela, a mesa vai esticando e seu corpo vai junto. É simples. Conta a lenda que o último condenado que foi torturado neste tipo de máquina, teve as articulações deslocadas e o corpo foi alongado cerca de trinta centímetros. Viu? Você vai poder passar dos dois metros de altura!
Seu senso de humor não agradou. Levantou-se, colocou as mãos sobre a manivela e começou a puxar lentamente. O corpo foi esticando e ela começou a sentir fortes dores. Ouvia suas juntas deslocarem lentamente. Gritava desesperadamente, embora nada se pudesse ouvir, a não ser grunhidos.
A porta rangeu ao ser aberta. Ele parou ouvindo passos descendo a escada. De repente, um vulto apareceu no último degrau.
- Heinrich! O que está fazendo com essa menina!?
Era a mãe de Weber. Jennifer sentiu-se aliviada.
Ele soltou a manivela e se virou.
- Mãe, não se preocupe. Ela não tem família.
- Não?
Ela sentou-se em uma cadeira próxima e passou a assistir ao que o filho fazia. Weber voltou à manivela e começou a puxar, sob os incessantes gritos de Jennifer, abafados pela mordaça.
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO LIVRO "MANSÃO KLAUS E OUTRAS HISTÓRIAS"