Vozes atrás da porta

Suzana estava sem sono e foi até a cozinha para tomar um leite quente durante a madrugada. Ela encostou na pia enquanto o leite esquentava e dali ficou olhando para o quintal por uma grande janela de vidro com armação de alumínio. O Marido estava dormindo como uma rocha no quarto.

O leite ferveu e a espuma quase transbordou pelas bordas da leiteira, felizmente Suzana ainda não estava totalmente imersa nos pensamentos que levemente a estavam envolvendo. De uns tempos para cá ela vinha sendo acometida por noites de insônia, mesmo não sendo noites em sequência, aquilo estava incomodando bastante.

Derramou um pouco do leite devagar e cuidadosamente num copo, viu a fumaça dançante deixar o copo como se fosse uma miniatura de fantasma que logo desapareceu. Ela foi até o armário e pegou um pequeno frasco de canela em pó; polvilhou sobre o leite e em seguida acrescentou meia colher de açúcar.

Ela tinha aprendido aquele ritual com a mãe e sempre que perdia o sono recorria ao bom e velho leite com canela seguido de um banho, aquilo geralmente era o suficiente para fazê-la dormir.

Sentou por um momento enquanto saboreava sua bebida, era a única pessoa acordada na casa; seu filho, Luciano, de cinco anos de idade também passou por noites sem dormir nas últimas semanas, o que certamente era terrível para uma criança tão nova. O problema é que ele tem uma imaginação extremamente fértil e costumava criar uma série de monstrinhos imaginários que o assustavam durante as noites.

Demorou um pouco até que Suzana conseguiu mostrar para o pequenino que não havia monstro algum em seu quarto; infelizmente, Luciano pediu para dormir com a pequena luz de um abajur âmbar acesa durante toda a noite e somente assim ele parou de se queixar das supostas assombrações que via durante as noites. Coisa de criança.

Mas nas últimas noites Suzana pensou ter escutado vozes dentro do quarto do filho, foi averiguar já imaginando que ele estava novamente brincando durante a madrugada, mas ao chegar lá, Luciano dormia como um anjo em sua caminha repleta de bonecos e desenhos animados colocados em forma de adesivo nas laterais. Ao sair do quarto Suzana ouviu novamente as vozes infantis sorrindo baixinho dentro do quarto; voltou a abrir a porta, acendeu a luz; Luciano ressonava tranquilamente e o único barulho que ela ouvia era o som quase inaudível do ventilador de teto que sempre mantinha ligado numa velocidade reduzida.

Ela tinha certeza de que havia escutado outras vozes e nenhuma delas era a voz de Luciano. Foi a partir daquele momento que Suzana passou a ter noites sem dormir exatamente como seu filho tivera antes dela. Vez por outra ela ouvia alguma coisa vindo do quarto; algum ruído baixo ou algum som infantil, passos, sorrisinhos, coisas sendo arrastadas, como um banquinho que Luciano colocava sempre ao lado da cama para auxiliar a subir e descer, muito embora a cama não fosse assim tão alta.

Deu mais uma golada no leite quente enquanto refletia no que poderia estar acontecendo; nessa noite Suzana havia levantado da cama com a mesma sensação de ter ouvido algo no quarto do filho e como de costume foi até lá para dar uma olhada, mas novamente vasculhou o quarto sem encontrar nada. Ao apagar as luzes outra vez e fechar a porta atrás de si, ela ouviu uma voz muito diferente das que até então ela supunha ter ouvido; era uma voz grossa e encorpada como a voz de um homem. Pareceu chamar seu nome, mas Suzana não teve certeza disso.

Num sobressalto ela abriu a porta novamente, não havia nada; não conseguiu entender o que pensou ter ouvido, a voz pareceu bem clara, mas não compreendeu. Pensou estar imaginando tudo aquilo e decidiu recorrer à receita de sua mãe para relaxar um pouco.

O ruído daquela noite ainda estava vivo dentro da mente dela, pensou em chamar o marido, mas o que ia dizer? Que estava ouvindo vozes no quarto do filho? Desistiu logo dessa idéia. Porém, a voz grossa ficou assombrando seus pensamentos enquanto ela bebia o leite com canela; tanto que Suzana nem percebeu quando o pequeno Luciano entrou na cozinha esfregando os olhos.

_ Mãe?_ Ele disse.

Suzana quase saltou da cadeira; o leite girou dentro do copo que ela por muito pouco não deixou cair, mas fez uma tremenda força para não transparecer o susto que tinha levado.

_ O que foi meu bem? _ falou meio sem graça.

_Estou sem sono outra vez.

_ Mas você estava dormido ainda agora querido.

_ Acordei.

Ela percebeu que tinha qualquer coisa de errado com a criança, ele também estava fazendo força para não deixar transparecer algo.

_Senta aqui. O que foi que houve?

O menino caminhou cambaleante pela cozinha e foi sentar-se na cadeira ao lado da mãe. Estava com medo.

Ela perguntou novamente:

_ O que aconteceu?

Luciano olhava para o chão e segurava as mãos uma na outra como se estivesse tenso.

_ Eles estão lá no quarto.

Suzana sentiu o peito apertar.

_ Quem?

_ Todos eles.

Por um momento Suzana tentou raciocinar mais calmamente, estava sendo invadida por um sentimento pulsante de medo, mas medo do quê? Tinha de ser sensata; não havia nada para temer, ela não tinha visto nada e apenas tinha pensado ouvir vozes. Nada mais.

_ Eles quem filho?

O menino bocejou longamente. Não estava sem sono e sim forçando-se a permanecer acordado.

_ Posso dormir com você?

O marido de Suzana, Lucas, costumava dizer que ela mimava o garoto demais e não gostou quando o filho pediu para dormir com eles em outras ocasiões, mas ela não queria saber; Luciano estava com medo de alguma coisa, provavelmente fosse apenas aquele medo infantil comum aos meninos. Mas se era esse o caso então por que ela também estava com medo?

_ Claro que pode.

Ele finalmente olhou para a mãe.

_ Eles fazem muito barulho._Estava apavorado, mas já tinha ouvido o pai dizer várias vezes que não havia nada em seu quarto e não queria parecer um medroso.

Suzana repetiu a pergunta:

_Eles quem filho?

_ São só Eles; não disseram os nomes.

_ Você perguntou?

_Perguntei.

Ainda tentando ser sensata, Suzana bebeu mais um gole do leite deixando apenas mais um pouco no copo. A lembrança da voz grossa atrás da porta ainda retumbava na memória dela; não podia acreditar que seu filho de fato estivesse conversando sabe-se lá com o que ou quem durante as madrugadas no quarto, mas também não podia ignorar o fato de que tinha escutado claramente, não uma nem duas vezes, vozes e muitos ruídos sem explicação também.

Naquele momento ela estava no ponto exato onde seu pensamento racional se encontrava com o medo irracional, Suzana estava fazendo força para não tombar para o lado mais primitivo. Teve uma idéia, tentou desconversar.

_ Você quer um pouco de leite?_ perguntou.

Luciano balançou a cabeça afirmativamente.

Ela levantou e foi até o fogão, em seguida pegou outro copo e repetiu a receita que tinha feito para si; adicionou ao leite um pouco de canela e um pouquinho de açúcar. Mas antes que ela terminasse de preparar o filho falou:

_ Eles trouxeram mais um hoje.

Suzana parou de mexer o leite com a colher e se virou para o filho. Ele continuou:

_Esse é diferente, ele diz que escutou todas as vezes que falei com papai do céu.

A mãe não soube o que dizer e quando percebeu já tinha perguntado:

_Como é a voz dele?

_É escura.

Suzana não entendeu bem o que ele quis dizer, mas lembrou com muito mais intensidade da voz atrás da porta.

_Tome o seu leite e vamos dormir._ Entregou o copo com leite para o filho e esperou.

Luciano bebeu e parou.

_ Ele disse que ouve você também, todos os dias. E perguntou o seu nome._ bebeu mais um pouco do leite.

Quando finalmente o menino terminou de beber o leite, Suzana colocou todas as coisas novamente na pia e pegou o filho pela mão. Juntos caminharam em direção ao quarto dela.

Entre a cozinha e o quarto de Suzana havia o corredor e nesse corredor outras duas portas, uma delas era o banheiro e a outra era o quarto do pequeno Luciano. Quanto mais eles se aproximavam do quarto da criança mais tinham uma sensação estranha que ela não conseguia identificar. A única coisa da qual tinha certeza era que o medo dentro dela estava crescendo mais e mais.

Quando passaram exatamente em frente ao quarto do menino, a porta que estava quase totalmente aberta começou a se fechar lentamente, sem fazer ruído algum; como se alguém atrás da porta a estivesse fechando vagarosamente para não ser visto. O coração de Suzana disparou mais uma vez e ela puxou o filho para mais junto de si; Luciano estava com os olhos fechados e uma das mãos na frente do rosto.

Dentro do quarto a escuridão era intermitentemente cortada pela lâmpada âmbar que piscava freneticamente, mas não se escutavam mais as vozes.

Ela ficou atenta, mas não ouviu vozes, nem risos, nem passos, nem ruído algum; porém ainda tinha a lembrança de tudo aquilo fustigando sua memória; não tinha explicação plausível que pudesse dar a si mesma e nunca fora dada a acreditar em coisas de cunho sobrenatural. A porta moveu-se lentamente, mas não se fechou, ficou a um palmo de fechar completamente.

_ Vamos mãe!_ Luciano puxou Suzana pelo braço em direção ao quarto dos adultos.

Como uma mulher de pensamento racional acurado Suzana jamais reconheceria que qualquer coisa fora das leis físicas estivessem agindo ali. De fato, ouvira muitos relatos de pessoas sobre casas assombradas, mas certamente não era aquele o caso, ela e o marido moravam no imóvel fazia quase dez anos e nunca tinham presenciado absolutamente nada que pudesse ser caracterizado como assombração; a casa era ótima, exceto nas últimas semanas quando os ruídos tinham começado.

_Mãe!_ Luciano tentava puxá-la; queria sair dali rápido.

Suzana pensou em entrar no quarto para averiguar, mas desistiu ao sentir as mãos do filho puxando seu braço. Pensou melhor e decidiu fazer aquilo no dia seguinte com a ajuda da claridade e do sol.

Só uma certeza estava profundamente gravada na mente dela. Jamais esqueceria aquela voz.

Luiz Cézar da Silva
Enviado por Luiz Cézar da Silva em 05/04/2013
Código do texto: T4224389
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