“Tec... Tec... Tec... Tec...”
Era o som que se ouvia na sala e ecoava para os demais cômodos vazios do apartamento. O ventilador de teto fazia um zumbido e balanço preocupante. A qualquer momento, parecia que se soltaria dos parafusos e cairia sobre ele. Sua luminária sambava de um lado para o outro e a luz piscava, oscilando entre o giro das hélices. A única luz que existia era a da tela do computador. As letras surgindo formando frases que saíam de nuvens em sua mente, transcritas através de seus dedos gordos para aquele retângulo branco em vertical, em forma de papel A4. A cada dez palavras escritas, sete eram deletadas, letra por letra. Angustiante. O tec tec tec também vinha do teclado.
Ainda sobre a escrivaninha, ao lado da impressora multifuncional que acabara de voltar do conserto, havia uma caixa de bombons. Nas três horas que permanecera ali sentado, sem conseguir transpor nenhuma ideia, quase a devorou por inteira. Alguns deles, mordia pela metade e descartava. Odiava bombons de frutas como banana e maçã. Concentrava-se naqueles que eram compostos apenas de chocolate. Queria ter um copo de Coca Cola à sua frente, mas bebera tudo no jantar. Enquanto digitava, pensou em como seria sentir aquele liquido gelado, com o gosto parecido com canela dissolvida em água com gás. Misturar refrigerante com chocolate lhe dava gases. E provavelmente, só diminuiria a distância entre ele e uma diabetes. No mais, lhe daria apenas alguns quilos para se juntar aos cento e dez que já pesava.
Pegou um bombom de avelã e o abriu devagar, parecendo saborear o barulho da embalagem. O cheiro imediatamente inebriou suas narinas, que se moveram buscando mais daquele odor doce. A boca se encheu de saliva, porém, quando fora dar a primeira dentada, numa mistura de ansiedade e prazer, louco para que sua língua tocasse o chocolate cremoso, ele parou. Não sabia o motivo, mas parou. Sentiu um súbito frio na espinha. No exato momento em que gotas de suor brotavam sob sua sobrancelha e deslizava pelos lados de seu nariz e das têmporas.
O bombom parecia o encarar, aflito. Mas ele não conseguia. Esqueceu-se da tela do computador, e ficou girando a bola achocolatada entre seus dedos, sujando todos eles a cada toque. Pensativo. Tentou leva-la novamente à boca, entretanto algo o impedira. Era como se uma barreira o impedisse. Como se houvesse uma placa de metal entre seus maxilares que o impedia de ingerir qualquer coisa.
Deixou-o sobre o teclado e foi até a cozinha de seu apartamento. Algumas formigas começaram a se reunir, prontas para atacar aquela bola imensa e de aroma doce que aparecera sobre um terreno cheio de desníveis.
Na cozinha abriu a torneira e encheu as mãos com água. Depois, lavou o rosto sentindo as gotas passarem pelos fios de sua barba espessa. Voltou em passos curtos, porém largos para a sala, e lá, novamente pegou o bombom de avelã. Tentou coloca-lo na boca, mas foi impedido. Tentou lambê-lo, mas seu corpo foi tomado por um choque que o jogou a alguns metros dali. Caiu sentado ao lado do sofá, e se levantou assustado. Foi tomado por raiva. Pegou a caixa de bombons e viu que só havia o bombom de banana. Abriu-o com feracidade, cheirou profundamente. Com um sorriso sádico e com o nariz sujo de chocolate, colocou-o na boca. Enquanto o mastigava, soltava risos de felicidade e prazer. Mas havia algo errado. O bombom estava sem gosto. Era como se mastigasse vazio. Sentia gosto de sangue, e não de chocolate. Enfiou alguns dedos dentro da boca, e se surpreendeu quando percebeu que ela estava vazia. Em seus dedos, lá estava o bombom de banana inteiro, e um pouco de sangue de sua língua que acabara de mastigar.
Impaciente e preocupado, começou a aplicar tapas em seu rosto como se quisesse se acordar de algum tipo de alucinação. “Deve ser o açúcar”- pensou. - Suas bochechas obesas balançavam a cada tabefe, e mesmo assim, sentindo ser real aquele pesadelo, continuava se flagelando. Enquanto se batia, encarava os dois bombons sobre o teclado. Pareciam sorrir diante de seu fracasso. Pareciam ter vencido a luta de não serem comidos. E ele, o predador, era o fracassado da história. Se não bastasse ser somente um fracassado na arte que escolhera para a sua vida, como se não bastasse ser uma vergonha literária, agora até coisas inanimadas lhes seriam superiores. Continuou se batendo até que seu pescoço estalou.
Sentou-se de novo na frente do computador fazendo a cadeira giratória afundar com seu peso. Pegou o bombom de banana com uma das mãos, e o de avelã com a outra. O ventilador continuava com seu zunido. A luz continuava piscando e cada vez demorava mais para se tornar acesa. Ele então, tentando se acalmar, levantou a cabeça e ficou encarando as hélices girando. As bochechas gordas, por detrás da barba, estavam rosadas de tantas bofetadas que havia recebido. A blusa cinza se encontrava encharcada de suor e água, que escorrida da cabeça e dos pelos em seu rosto. Manchas de chocolate tornavam sua cara mais ridícula e grotesca, que causaria repulsa em quem a visse naquele estado. Sentiu seu estômago roncar. Sentiu sua boca salivar novamente. Num ato de desespero, encarou a cruz de aço pregada na parede atrás do computador, e pediu a Jesus que o deixasse em paz. Pediu que deixasse pecar, que sabia das consequências. Queria aqueles bombons, independente do que aconteceria. Independente do que já lhe fora avisado em sua última estada no hospital de cardíacos.
Nesse momento, o ventilador parou e a luz apagou de vez. Suas mãos caíram sobre suas pernas, como se de cima delas fosse tirado um peso. Devagar e receoso, pegou os bombons que agora se encontravam caídos no chão. Ajoelhou-se e ergueu-os bem perto de suas narinas. Elas abriam e fechavam instintivamente. Tudo parecia em câmera lenta. O frio na espinha havia voltado, e agora mais sufocante. Sentia algo no peito, como se estivesse descendo à toda velocidade numa montanha russa, e de repente, sentisse seu corpo flutuar. Aquela sensação de estar caindo quando sonhando, porém, agora acordado. Agrupou os dois bombons de chocolate sobre a mão direita. Os dedos gordos os cobriam quase que totalmente. Levantou-se tão rápido que até mesmo se surpreendeu.
Agora eles estavam na entrada de sua boca faminta. Maxilares estavam de prontidão, como engrenagens de um triturador. Foi se aproximando, e assim, enfiou-os dentro de sua goela, como se fosse sua primeira refeição após anos perdido num deserto da fome. Mastigou com avidez. Feroz. Um devorador nato. Sorria os mastigando, e agora lá estavam os dois, dentro de sua goela, derretidos, vencidos e triturados. Tanto lutaram, mas haviam perdido aquela guerra, assim como seus outros irmãos. Assim como o bombom de amendoim, como o bombom de cereja e o de nozes. Todos se reunindo no pós-vida dentro de seu estômago. Sorriu ao perceber que estava dramatizando a vida de bombons. E sorriu ainda mais, porém sem entender o motivo, ao ver que caído no chão estava ele, com a face roxa, sem vida e redonda. Com as mãos sujas de chocolate, assim como sua boca e seu nariz.
Metade do bombom de banana se aproximou rolando até seus pés, mas não parou. Passou por eles como se não existissem e só parou ao bater contra a parede. Agora tudo era silêncio. Agora tudo era escuro. Agora não sentia mais vontade de comer.
FIM