Pássaros nascem para voar
_Vamos embora daqui?
Eu realmente estava com a corda toda aquela noite. O meu pai tinha me emprestado o carro para que eu viesse na festa de formatura. Meu irmão me deu uma grana, caso eu precisasse. Logo que cheguei, eu me aproximei da Cíntia, simplesmente a menina mais bonita e cobiçada da turma, e ela me deu bola – algo que surpreendeu até a mim, imagina a galera, que ficou de queixo caído. A Cíntia sempre foi uma garota muito fechada, muito na sua, e nenhum de nós lá da escola conseguiu qualquer coisa com ela, nem o Vinícius, que não deixa passar nada – e olha que o cara tentou... E o nosso papo até que estava bom. Achei-a um pouco triste, mas ela sempre estava assim, com um certo ar de tristeza nos olhos – talvez fosse aquilo que a deixava ainda mais atraente.
Agora, ela acabou de me chamar pra sair da festa. Eu tava no céu, nem podia acreditar. Então ela pegou na minha mão e saímos pro pátio, e senti os olhos arregalados do povo nos acompanhando até que chegamos no carro. Eu me senti "o cara"...
Abri a porta para ela, no maior cavalheirismo, e ela entrou. Quando bati a porta e enfiei a chave na ignição, eu quase nem conseguia raciocinar. Minha nossa senhora, a garota mais linda, a garota que eu mais desejei na minha vida, estava comigo dentro do meu carro.
_Que carro bonito. É seu? Ela perguntou.
Arranquei e coloquei a segunda marcha.
_Bom, é da família. Mas meu pai deixou eu dar uma volta com ele hoje.
_Legal. Você se dá bem com o seu pai?
Levantei os ombros, depois fiz um sinal afirmativo com a cabeça.
_Sim, meu pai é um cara legal. Ele não é como a minha mãe, que fica me alugando o tempo todo. Mas também não deixa correr frouxo, não. Quando precisa, ele chama a gente na chincha...
Vi que escapou um meio sorriso da sua boca.
_E você, se dá bem com o seu?
Ela, que estava olhando pra mim, voltou o rosto para a janela e demorou um pouco para responder. E suas palavras foram ásperas.
_Meu pai é um grande filho da puta.
Vi que o seu semblante se transformou, e continuou olhando para a paisagem que corria lá fora. Eu fiquei surpreso, jamais vi ou ouvi a Cíntia falar daquele jeito, e fiquei sem reação. Parei na preferencial e esperei os carros que passavam a nossa frente. Então ela virou-se e, parecendo recomposta, me perguntou:
_Você já foi no Dom Bosco?
O Dom Bosco era um patrimônio que ficava a uns vinte quilômetros da cidade, depois do rio. Naquele fim de semana estava acontecendo uma festa tradicional por lá, e era uma grande festa, com barracas de doces, brincadeiras, baile e, como não podia deixar de ser nessas festas do interior, muita comida.
_Eu já. Sempre minha família vai almoçar lá no domingo da festa.
_Vamos pra lá, então? Eu nunca fui, estou louca para conhecer.
Olhei para o relógio do carro, ainda não eram nem dez horas da noite. Tinha gasolina bastante no tanque e eu estava com o dinheiro do meu irmão no bolso. Perfeito.
_Vam´bora – falei, e pus o carro novamente em movimento, agora na direção da rodovia.
Saímos da cidade e nos embrenhamos na escuridão do asfalto, só com os faróis iluminando o caminho. Era pouco o movimento naquela hora, e eu não tinha pressa nenhuma de chegar.
Então nos aproximamos da ponte. Foi aí que ela novamente me surpreendeu, dizendo:
_Vamos parar um pouco para ver o rio?
_Ver o rio à noite? Não vai dar pra ver nada...
_Ah, pelo menos dá pra ouvir o barulho da água. Vamos, pare aí.
Eu achei a princípio um tanto arriscado parar naquele lugar e naquela altura da noite. Mas ela puxou o meu braço e praticamente me implorou.
_Tudo bem – consenti, mesmo que contrariado. Vamos parar lá do outro lado da ponte.
Depois que passamos sobre o rio, parei o carro no acostamento, o mais longe da pista que consegui. Não queria que acontecesse qualquer coisa com o carro do meu pai. Ela saiu e foi na minha frente, atravessou a pista e pôs-se a andar ao lado do beiral da ponte.
Eu apressei o passo e fui caminhando logo atrás dela. A pouca luminosidade da noite realçava ainda mais os contornos do seu corpo perfeito. Fiquei animado: aquela seria a hora certa para investir...
Então ela parou, e estávamos mais ou menos no centro da ponte. Ela encostou o corpo no beiral e olhou para baixo, onde a água corria tranquilamente. Soprava uma brisa suave, e podia-se ver algumas estrelas no céu. Mas era lua minguante e a noite estava bem escura.
_Você sabia que meu pai cria pássaros?
_Não – respondi, colocando-me ao seu lado e olhando também para a escuridão das águas lá embaixo. O rio não era muito largo, mas eu sabia que ali ele era bastante fundo.
_É, lá em casa tem um monte, mas todos ficam presos nas gaiolas. Uma vez eu abri todas elas, e deixei os passarinhos saírem. Meu pai ficou uma fera. Me pegou de cinta e me deu uma surra que quase me matou.
Senti que a voz dela ficou um pouco embargada, mas no escuro não pude discernir o seu semblante.
_Ele ama aqueles passarinhos, mas eu odeio ver todos eles presos naquelas gaiolas horríveis.
Então ela subiu no beiral da ponte e esticou os braços, fazendo um movimento como que se estivesse batendo asas.
_Você não acha horrível ver um passarinho preso?
_Ei, cuidado aí, não vai cair na água porque eu não sei nadar e não vai ter ninguém aqui pra te salvar.
Ela pareceu não me ouvir, e repetiu o movimento do ruflar de asas.
_Pássaros não podem ficar presos a vida inteira. Eles nasceram para voar.
Então ela flexionou os joelhos, inclinou-se para frente e se jogou.
_Cíntia! Gritei, apavorado.
Eu nada pude fazer. Ela se perdeu no breu que recobria o vale debaixo da ponte. E no instante seguinte, ouvi o barulho do seu corpo se chocando contra a água.