Tenebroso
A decoração era de gosto muito duvidoso. A iluminação, muito inadequada. Mas que importava tudo isso? Quem adentrasse àquela casa, perceberia que não tinha nenhum outro objetivo que não fosse disseminar a música. Aquela música tenebrosa, que ressonava pelos cômodos da casa e parecia exprimir muito bem o sentimento dum pianista resignado. Era um homem alto, de cavanhaque, cabelos escuros face redonda e testa saliente. Seus olhos verdes realçavam sua expressão de seriedade.
Mas ele parou. Interrompeu a música, olhando fixamente para as teclas do piano sob seus dedos. Parecia que, por trás daquela disposição havia um insolúvel mistério. Mas que seria? Até mesmo parecia que o mais intrépido dos pianistas não era capaz de penetrá-lo. E nem mesmo foi aquele garoto de dez anos que tocava piano com tanta proeza. Mas aquilo tinha acontecido havia muito tempo. Por que ele recordava isso? Talvez essa característica tão intrigante do piano lhe tivesse atraído pela primeira vez naquela ocasião.
Era um domingo, e a família estava reunida para uma refeição formal. Parentes distantes estavam ali presentes. Parentes chatos que não tinham nada a lhe acrescentar. Tias que não tinha outro propósito de existência senão apertar-lhe as bochechas para constrangimento público. Pra quê ficar no meio de tanta gente estorvante, se poderia simplesmente ficar ali, tocando seu piano? Parecia-lhe muito mais interessante.
Sonata Patética de Beethoven. Quão profunda era aquela melodia! O suficiente para prender a atenção dos parentes tagarelas daquele garoto, fazendo-os interromper a conversa monótona e inútil. Ao que pareceu, os convidados se sentiram atraídos pelo som, ainda que distante. Ao notar, porém, o quão harmoniosa era aquela música, sua atenção foi desviada para ela. Que curioso seria acreditar que tão boa música estava vindo dum cômodo contíguo.
- Quem está tocando? - Questionou alguém.
Olharam em volta rapidamente, questionando quem não estaria presente na sala. Logo perceberam. Era aquele jovem garoto de dez anos. Alguns curiosos tentaram descobrir de onde provinha música e acabaram chegando à sala do piano. Abriram a porta a ponto de vê-lo tocar os últimos compassos da música. Sua concentração era comparável a dum cirurgião. Mesmo quando a porta foi aberta, ele não interrompeu nem por um momento. Continuou tocando com fluência, pois nem tinha percebido que estavam ali.
Mas quando terminou, assustou-se com um urro imprevisto.
- Isso foi incrível!
- E tem apenas dez anos!
- Como consegue tocar tão bem com mãos tão pequenas?
“Minhas mãos devem ser maiores que seu cérebro” disse ele em seu íntimo. Lançou um olhar de intimidação sobre sua pequena plateia, fechou a tampa do piano, apanhou a partitura e saiu, sem dar nenhuma resposta.
Sua conduta foi posteriormente repreendida pelos pais. Mas por quê? Que fizera de errado? Apenas não apreciava a companhia daquelas pessoas. Não era edificante. A música sim era edificante para ele. Parecia, naquela ocasião, que pela primeira vez começara a conhecer tão obscuro mistério.
- Já que você gosta tanto de piano, por que não frequenta uma escola de música? - seus pais lhe sugeriram.
Não parecia má ideia. Com certeza, na escola de música ele conheceria pessoas que tinham interesses em comum com ele, e certamente lá teria companhias edificantes. E não significava que as companhias fossem o mais importante.
Gostava muito de conversar com seus colegas e trocava experiências muito boas com todos. A conversa dele, no entanto, ia muito pouco além da música Em termos de talento, ele era inquestionavelmente superior. Todos os colegas admiravam a sua capacidade de produzir música e sua superior habilidade. Com certa frequência, até mesmo lhe interrompiam para expressar sua admiração.
As aulas já tinham terminado. Quase todos os alunos tinham ido embora. Mas o som do piano, vindo de longe, se destacava. E aquele propenso pianista que tanto admirava seu colega com habilidade superior sabia, era ele quem estava tocando. O único que mostrava afinco muito acima do normal. Voltou para a sala do piano e o viu ali, como bem esperava, tocando com cegante velocidade dos dedos e quase sem errar notas. Mas quando errava, fazia questão de tocar o compasso de novo. Várias e várias vezes, até ficar perfeito.
O tímido rapaz se aproximou vagarosamente por trás do pianista e, tocando seu ombro, disse apenas:
- Com licença - a música que fluía converteu-se num desagradável estrondo.
Ele parou de tocar e, girando a banqueta, fixou o olhar no outro.
- O que foi?
- Você toca muito bem! - disse ele, com um sorriso alegre. Mas sua alegria em nada contagiava o rapaz.
- Você interrompeu meu ensaio só pra dizer isso? - um pouco desajeitado, o rapaz continuou:
- Eu tenho inveja dessa sua técnica. Todos aqui têm. Deve ser legal ter um talento como o seu. . .
- Basta. Por qual motivo veio aqui?
- Só pra lhe dizer isso. - respondeu, intrigado por tamanha frieza.
- Já disse. Posso continuar agora?
- A escola já vai fechar. - ele posicionou as mãos sobre o teclado, suspirou e depois se levantou.
- Então vou continuar em casa.
Parecia certo tipo de espírito indomável. Ele só se aproximava das pessoas quando era para tocar junto, e não encarava com nenhuma brandura os erros cometidos pelo seu parceiro, como que lhe impondo a sua própria filosofia de vida, que o único objetivo da vida era tocar com o maior virtuosismo. E realmente parecia ser isso que ele pensava.
Essa atitude lhe afastava as pessoas. Mesmo seus professores, que lhe faziam frequentes correções.
- Você é um dos melhores alunos da escola. - ouvia com freqüência. - Mas não está tocando do jeito certo. - com indiferença, ele se limitava a responder:
- O jeito certo é o jeito que te agrada?
Embora parecesse uma resposta arrogante, na verdade apontava uma verdade na ideia exposta pelos professores. O jeito de tocar não estava errado do ponto de vista técnico. Mas quando aquele rapaz tocava, fosse Stravinsky, Lizst ou Haydn, parecia haver sempre algo profundo de tenebrosidade. Tocava todas as notas, todos os compassos rigorosamente como a partitura indicava, esforçando-se de alcançar a perfeita melodia idealizada pelo compositor. Mas seu espírito incomensurável, de alguma forma fantasmagórica parecia se manifestar na música, tornando-a agradável, sim, mas ao mesmo tempo tenebrosa.
E basicamente, era isso que os professores lhe indicavam. O sentimento era necessário. Não bastava tocar a música corretamente. Ele não estava incorporando a música, não parecia entender a ideia passada pelo compositor. Mas para ele, aquilo não importava. Para ele estava correto. Algum dia o mundo iria conhecer o seu piano obscuro. Ele transmitia seus próprios sentimentos pelas obras de outros artistas.
Frequentes divergências de atitude o levaram a deixar a escola, depois de tê-la frequentado por quatro anos. No primeiro dia em que deixou deliberadamente de ir à aula, estava tocando com a porta aberta quando seu pai chegou do trabalho.
Ouvindo a música, dirigiu-se a sala do piano, onde encontrou seu filho, com a espantosa concentração de sempre. Mas ele deveria estar na aula. Nunca havia faltado, visto que o aprimoramento musical era a coisa mais importante de sua vida.
- Ora - falou o pai, entrando na sala sem prévio aviso. - Faltou à aula hoje?
- É - disse ele, parando de tocar, mas sem desviar os olhos da partitura. - Cansei de tocar pra agradar tanta gente chata.
Com um sorriso desconfiado, o pai respondeu:
- Mas você acha que vai melhorar, se não tiver um professor? - Fitando-o profundamente, o filho respondeu:
- Eu vou aprimorar sozinho a minha técnica! E vou conseguir.
- Não tenho dúvida nenhuma, você é tão dedicado. - respondeu o pai. - Com certeza vai se tornar um pianista incrível, e isso me deixa muito triste. - dito isso, retirou-se, sem mais comentários adicionais.
“Triste”? Como alguém poderia se sentir triste com o aprimoramento musical de seu próprio filho? Isso foi uma coisa que o rapaz realmente questionou em seu íntimo, mas preferiu não questionar o pai. Ele era ingênuo de não perceber que, embora não tivesse nenhuma experiência musical, o pai compreendia o mistério da música melhor que ele.
Afinal, onde tudo isso começou? Ele manifestou muito cedo seu gosto pelo piano. Quando era pequeno, tinha um professor particular que lhe visitava todos os dias com muito prazer. Percebeu tratar-se duma criança prodígio, e achou essa uma incrível oportunidade; ele poderia ajudar no desenvolvimento dum futuro grande músico. Mas talvez ele não fosse o professor certo, e não era por falta de aptidão em ensinar, pois os pais do rapaz fizeram questão de escolher um professor com altas qualificações.
Aquele professor que havia dado, ainda na infância, as primeiras lições de música e piano havia também incutido nele uma ideia: a alegria de tocar. A música é uma maravilha, e deve ser prazerosa. Não apenas para quem ouve, mas também para quem toca. A arte exige esforço, mas quando se consegue tocar bem uma música, isso deve ser feito como um lazer e não como um compromisso.
Mas parecia que, com o tempo, essa ideia tinha sido completamente extinta. Não que ele não se lembrasse do que seu primeiro professor dizia. Apenas não concordava com suas ideias e, ironicamente, ia à oposição, como se sua vida dependesse duma extraordinária performance.
Tocar bem não é errado. Mas a obsessão pode fazer a música consumir uma pessoa. Isso era uma inevitável iminência.
Fiel às suas palavras, o garoto começou a treinar para se tornar um grande pianista. Um empenho não muito diferente do que tivera durante toda a sua vida. Ficou cativado em ver, numa sala de música duma cidade vizinha, uma inteira sinfonia apresentada por uma orquestra. Seu pai o tinha levado a tal espetáculo, evidentemente escolhido a seu gosto. Ele amava orquestras, mas aos dezesseis anos nunca tinha visto uma pessoalmente.
Era fabuloso. Mas começou a pensar que ele mesmo poderia estar ali, entre os músicos daquela apresentação. Nada poderia ser mais satisfatório que isso. Mas ele só sabia tocar piano. Se quisesse tocar numa orquestra, teria que encontrar uma peça orquestrada que incluísse piano. Esse passo era o mais fácil. Difícil seria convencer a sala a admiti-lo tocando ali.
Mas, como sempre ele foi ousado. Ele mesmo se prontificou a ligar para o dono da sala e perguntar se ele poderia tocar ali.
- É mais fácil pra você fazer uma apresentação no show de talentos da sua escola, garoto.
- Está enganado. - retrucou ele. - Eu estou acima desse nível. Sou digno de tocar no seu auditório. Dê-me uma chance e o senhor vai ver.
- Sua lábia não me convence. Além disso, você está me pedindo para dar um tiro no pé: colocar um rapaz que nem terminou nenhum curso de música para tocar na minha sala não vai dar lucro nenhum.
- Sou melhor que muitos que fizeram faculdade, creia. Sou melhor que muitos professores de música por aí.
- Mesmo que isso seja verdade, você não tem popularidade nenhuma, e não vai atrair público. Vou ficar em déficit só pela impressão dos ingressos.
No mais, não foi admitido, mesmo com muita insistência. Poderia ter prolongado a discussão por horas, apresentando os mais variados argumentos para que o dono da sala cedesse seu espaço para uma grandiosa apresentação. Mas o rapaz era uma pessoa acostumada a seguir seu próprio caminho, quando a alternativa apresentada era estreita. Era por esse motivo que tinha desistido de frequentar a escola de música.
Mas talvez ainda houvesse algo interessante para se ver lá.
Já fazia dez anos que ele havia deixado a escola de música e desde então não fez nenhum outro curso formalmente; era um autodidata musical. Por qual motivo então voltaria à escola depois de tanto tempo? Onde encontrar bons músicos? Nas orquestras e teatros? Certamente, mas os músicos que tocam profissionalmente não são apenas bons, são grandes músicos que não lhe dispensariam nenhuma, ou quase nenhuma atenção. Isso era compreensível, pois também ele tencionava se tornar um grande músico e, quando conseguisse, não dispensaria nenhuma atenção a amadores medíocres.
A sua alternativa, então era uma escola de música. Durante o tempo em que foi aluno, todos admiravam seu talento, a exemplo do garoto tímido que lhe prestou um elogio depois da aula. Ali ele encontraria as pessoas que lhe ajudariam a se tornar um pianista de concerto como ele queria, mesmo não tendo diplomas que pudesse usar para se gabar.
Tomou a liberdade de entrar naquele prédio, já bem conhecido seu e, andando pelos corredores, ouvia a música resultante do ensaio de vários alunos ali presentes. Ou algo próximo disso. Nada o atraía. Sua tarefa seria mais difícil do que pensara. Mas ele deveria imaginar, já que seu talento era algo de destaque naquela escola; obviamente não haveria muitos como ele, mas talvez um ou outro aluno com inspiração que pudesse servir ao seu propósito.
Quando já estava a ponto de desistir e ir embora, encontrou a pessoa que estava procurando num cômodo reservado. Essa pessoa lhe atraiu primeiro pela música. Andando pelo corredor, ouviu um som de um instrumento de sopro que gradativamente foi lhe desviando os pensamentos, exatamente como havia feito com seus parentes anos antes tocando piano no quarto reservado de sua casa. Antes que percebesse, viu-se completamente cativo por aquele belo som.
- Preciso saber quem é! - falou para si mesmo. - Preciso saber quem é o artista dessa tão sublime melodia.
Com passos apressados, logo conseguiu descobrir de qual dos muitos cômodos provinha aquela música. Abriu a porta abruptamente que assustou a garota de baixa estatura, longos cabelos escuros e tez ligeiramente escurecida, cuja boca parecia ter traços dum sorriso permanente. Ela estava sozinha na sala, sentada numa cadeira e tocando a sua flauta transversal, com uma partitura apoiada na estante à sua frente.
Não foi apenas a repentina entrada do homem a assustou, mas também seu estabanado sorriso que embora o deixasse com cara de maníaco, era apenas resultado de sua tremenda excitação.
- Sério? Você gostou mesmo do que eu estava tocando? - pergunta a garota, timidamente abrindo um sorriso.
- Foi esplêndido! - respondeu o rapaz. - Mas acho que ainda falta alguma coisa. Sua habilidade com certeza é o que eu preciso pra chegar aonde eu quero. - Ela ficou apenas olhando-o, como que pedindo uma explicação.
- Você quer montar uma orquestra comigo? - perguntou ele, empolgado.
- Uma orquestra! - falou a moça. - Isso é demais! Não sei se consigo chegar a esse nível.
- Claro que consegue! A sua técnica com a flauta é muito melhor do que o que se vê da maioria dos alunos aqui.
- Mas eu quero progredir. Quero melhorar. Não quero deixar a escola. - Habilidade não lhe faltava, mas sua atitude parecia ser exatamente o oposto do que o rapaz buscava. Ele coçou o queixo e respondeu:
- Acredite, você vai progredir na música muito mais se vier comigo do que se ficar aqui tocando pra gente velha. Se você não quiser, é opção sua, mas eu ficaria muito triste de perder um talento como o seu. Voltarei amanhã para ter a sua resposta.
No lugar da esperada resposta, porém, permanecia a indecisão. Tocar numa orquestra é o sonho de todo músico, mas a pequena flautista não se sentia preparada, e era insegura em seu íntimo. Por que diabos, afinal, o homem não poderia esperar que ela terminasse seu curso para depois eles montarem a tão sonhada orquestra? Parecia uma escolha bem mais sensata e viável.
A resposta estava na música. A música em seu espírito era grande demais para ser contida. Ele não podia guardá-la dentro de si. Tinha que manifestá-la. Tinha que mostrá-la ao mundo. E não era só para ter o prestígio de grandes músicos e produtores musicais, embora fosse esse também um de seus objetivos. Era para que o mundo o conhecesse, e visse a música como ele sempre viu. Tenebroso.
A flautista continuava com sua relutância. O pianista, de sua parte, continuou insistindo, visitando-a na escola quase todos os dias, sempre falando com eloqüência sobre os benefícios e o privilégio que seria tocar numa orquestra. As refutações da garota eram igualmente válidas: não se pode apressar a arte. A orquestra será melhor se tiver músicos mais experientes. Formados.
Mas um dia ele chegou à escola no horário costumeiro e não a encontrou ali como esperava. Ela ficava sempre na mesma sala em que haviam se conhecido, sentada naquela cadeira e tocando sua flauta. Isso havia até mesmo se tornado emblemático. Foi uma surpresa não achá-la ali. Ainda assim, ele entrou na sala, chamando-a pelo nome. Os gritos ressonavam, mas a resposta veio de fora da sala.
- Estou aqui - disse ela, parada em pé sob o batente.
Seu semblante era sério e exprimia confiança, exatamente o contrário do que era geralmente. E isso foi algo que ele percebeu.
- Você parece decidida hoje. Deve ter se decidido sobre o assunto. E tenho certeza que a escolha foi favorável.
- Se quer falar sobre o seu sonho da orquestra. - respondeu a flautista - Eu não quero falar sobre isso hoje. Eu só quero te pedir uma coisa. - A firmeza de sua voz deixou o garoto um tanto intimidado.
- O que é?
- Toque para mim. Quero ver você tocar. - uma resposta certamente animadora.
- Oh! Eu nem mesmo levei em conta que você nunca me viu tocar! Será um prazer tocar pra você! O que você que eu toque?
Sem responder, ela se virou de costas e começou a caminhar. Presumivelmente estava indo para uma sala em que tivesse um piano. Os dois chegaram a uma sala grande e espaçosa, com nada além dum piano de cauda.
O rapaz se posicionou em frente ao piano e tornou a perguntar:
- O que quer que eu toque?
- Não vou escolher. - respondeu ela. - Toque o que você quiser.
Sem dizer mais palavra, começou a executar o vasto repertório de suas peças favoritas para piano. Cada música tinha um significado especial, cada uma representava algo dele mesmo, um momento de sua vida em que esteve presente. Foi a primeira vez que ele teve prazer em tocar para outra pessoa.
A cada música tocada, a garota parecia se ligar mais profundamente à música. O resultado foi que, ao final da performance, ela estava boquiaberta. Olhando-a de soslaio, o homem perguntou:
- E então? Que achou?
- Estou impressionada! - disse a garota. E sua expressão facial certamente respaldava a afirmação. - Você toca bem mesmo.
- De você eu aceito elogios. - disse ele. - Porque eu tenho certeza de que nós dois juntos podemos manifestar ao mundo a nossa música.
- Disso eu não estou tão certa. - falou ela, com um sorriso malicioso.
Em seguida, apanhou o case e tirou de lá sua flauta transversal.
- Está na hora. - disse ela. - de tocarmos algo juntos. - Foi uma atitude inesperada, mas certamente o deixou bem excitado.
- O que você quer tocar? - questionou.
- Qualquer peça para flauta transversal é excelente se acompanhada de piano.
- Eu entendi. - disse o rapaz. Parecia que o sorriso malicioso tinha passado de um para o outro. - Para que boa música seja produzida, é necessária harmonia entre dois instrumentos. Mas deve ser assim com os músicos também. Você quer saber e somos capazes de tocar no mesmo tom? - mal havia terminado de dizer essas palavras e já havia começado uma improvisação no piano.
Em resposta, a garota começou também a tocar a sua flauta. Em pouco tempo, os dois haviam alcançado a harmonia. Depois disso decidiram que música tocar. Foi um espetáculo, como nunca se tinha visto antes naquela escola de música. Os dois tocando juntos com tanta técnica, tanta habilidade, que fez com que todos os que estavam ali presentes, alunos e professores, interrompessem suas atividades, quaisquer que fossem, e admirassem a música vinda daquela grande sala. Exatamente como ocorrido tantos anos antes, quando todos aqueles parentes do garoto foram surpreendidos pelo som de seu piano, muitos se dirigiram à sala de música para ver pessoalmente o concerto que ocorria. Quando terminaram, foram fortemente sustentados por aplausos.
- Isso foi incrível! - disse o homem. - Nunca tive tanto prazer em tocar junto com alguém. Você gostou?
- Com certeza! - falou a moça. - Tocar com você foi tão bom que me convenceu que você é a pessoa certa para tocar comigo. - ao ouvir essas palavras, ele se levantou, mostrando incomum excitação.
- Então você aceita montar a orquestra comigo?
- Sim! - a entonação de sua voz não deixava dúvidas de sua convicção. - Estou certa de que é disso que eu preciso para melhorar; me agradar em tocar com outras pessoas. Montarei a orquestra com você, depois que eu me formar.
Uma decisão empolgante, mas ao mesmo tempo decepcionante. Ele teria que esperá-la terminar o curso para poder montar a sua orquestra. Mas não queria esperar. A música contida em seu espírito era tão forte que precisava ser manifesta.
Durante esse tempo, prestou-se a procurar outros músicos habilitados que pudessem ajudá-lo na orquestra. Suas exigências eram rigorosas, mas conseguiu encontrar o suficiente com anúncios na internet e correspondência com os leitores mais assíduos das revistas de música. Ironicamente, todos aqueles que ele achou que se qualificavam eram músicos formados. Ele seria o único da orquestra sem uma formação acadêmica.
Evidentemente, o projeto precisou ficar suspenso até que a pequena flautista de formasse, o que não levou muito tempo. Quando finalmente chegou a hora, todos os membros da propensa orquestra se reuniram num grande salão para planejamento e, quem sabe, ensaios. Dentre os vários músicos que ele havia contatado por correspondência ou por internet, havia ali um que ele conhecia, e ficou muito satisfeito de vê-lo ali, no meio da multidão.
Aproximou-se rapidamente para chamá-lo:
- Professor! - o homem, sorridente como sempre, cumprimentou-o com alegria.
- Olá! Sabia que você progrediria na música. Mas não esperava um passo tão ousado como querer montar uma orquestra.
- É a única forma que achei de fazer o mundo conhecer a minha música, já que eu não quero me formar.
- Estranha essa sua atitude - disse o professor. - Se você continuasse progredindo nos estudos, tenho certeza que se tornaria melhor que a Valentina Lisitsa.
- Professor! - exclamou, com ânimo. - Você que me ensinou a ter o prazer de tocar, de produzir música! E é exatamente o que estou fazendo! Não tenho prazer em ficar satisfazendo caprichos alheios. Tenho que tocar com toda a minha técnica e espírito, e então o mundo entenderá o poder da minha música!
- Tenho séria dúvida sobre isso. - falou o professor. - Mas você já é maduro o bastante para saber o quão produtivas são as coisas que faz.
Ele definitivamente não viu nenhuma represália nessas palavras. Pelo contrário, ter encontrado novamente o professor de sua infância era motivo de muita alegria.
Voltou ao palco, para que pudesse ser visível a todos.
- Muito bem. - disse ele. - Agradeço à presença de todos. Pode parecer algo amadorístico nós organizarmos essa orquestra por conta própria, mas eu me certifiquei da habilidade de cada um aqui presente para garantir que essa orquestra seja exatamente o que eu quero! Se treinarmos bastante, podemos conseguir performances tão boas quanto as de qualquer orquestra sinfônica por aí!
- E então, o que nós vamos tocar? - perguntou alguém. Parecia ser a pergunta mais óbvia para se responder.
- Para iniciar em grande estilo minha carreira como concertista, escolhi uma peça do meu compositor favorito, Rachmaninoff. Espero que todos estejam de acordo.
- Não é o primeiro concerto para piano, é?
- Exatamente. - o burburinho dos músicos começou logo em seguida.
- Mas mesmo que essa ideia de orquestra amadora te empolgue tanto - manifestou-se um violoncelista. - Não vai adiantar se não tivermos um músico profissional para nos conduzir.
- Quer dizer um maestro? - questionou a pequena flautista.
- Exatamente. Todos nós aqui temos altas qualificações num determinado instrumento, mas quem vai reger a orquestra?
- Podem deixar isso por minha conta. - falou o professor. - Eu fiz curso de regência, embora nunca tenha exercido essa função. Além disso, eu tenho certeza que o papel do pianista está bem determinado, então eu seria desnecessário aqui a menos que fosse para reger.
O homem no alto do palco abriu um afável sorriso.
- Então essa questão está resolvida. Vamos agora distribuir as partituras para começar o ensaio.
Os ensaios se estenderam por meses. Durante várias horas, era pesado e cansativo. Não havia nem um único dia de descanso. Todos os dias a orquestra estava reunida. Era difícil, mas certamente necessário para que atingissem o grau de altivez requerido para tocar num auditório.
Sim, de fato, essa era toda a pretensão do rapaz. Tocar num auditório. Tocar com a orquestra talvez fosse a melhor experiência que ele poderia ter em sua vida, mas para ele seria apenas o prelúdio de sua vida como músico profissional. Ele seria um pianista renomado e conhecido em todo o mundo. Esse era seu objetivo e a orquestra o ajudaria em muito a alcançá-lo.
Esse assunto foi tema duma conversa que teve com a pequena flautista certa vez, quando eles estavam na sala de sua casa, ouvindo o concerto escolhido dum CD para ter uma referência avaliativa da qualidade exigida da orquestra.
- Quando essa peça foi gravada pela primeira vez em 1941 - comentou o rapaz, deitado no sofá - Rachmaninoff foi o pianista, e não o regente. Mesmo compondo grandes obras, ele conquistou o mundo e ficou conhecido como um grande pianista. Seria ótimo se essa mesma peça me elevasse a essa posição, já que sou eu que vou tocar o piano.
- Às vezes eu acho que você é ambicioso demais. - respondeu a flautista, sentada na poltrona bem à frente do sofá.
- Não tem nada de errado em ser ambicioso.
- Com certeza não, mas a sua ambição deve ter a motivação correta. Porque se não foi esse o caso, ela vai prejudicar a você e outras pessoas. Mas principalmente você.
- Como poderia ser prejudicial? - questiona o jovem.
- Bem. - falou a flautista, ruborizada e desviando o olhar. - Se ela não for comedida, com certeza será prejudicial. Você precisa de algo que contraponha sua ambição. E isso você não tem.
- Contrapor! Que bobagem! Minha habilidade no piano é um perfeito complemento à minha ambição. É uma pena que você não seja tão ambiciosa, porque seu talento com a flauta não é de se jogar fora.
Ela não respondeu mais nada. Não por falta de argumentos, mas simplesmente porque não queria contrariar o rapaz, embora se preocupasse com ele.
Depois de vários meses de árduos ensaios, a orquestra finalmente se apresentou àquela mesma sala de música cujo dono recusara obstinadamente a deixar o rapaz se apresentar anos antes. Ele voltou a contatar o dono, com a mesma ideia, mas o diferencial era que ele já tinha uma orquestra pronta e à disposição para tocar ali no auditório.
- Você tem uma orquestra própria? - indagou. - Isso é maluquice!
- Mas tenho certeza de que essa maluquice vai dar certo. - retrucou ele. - Por que não nos dá uma chance? Confie em mim. Eu assumo todos os riscos. - o homem do outro lado da linha telefônica meditou um pouco em seu íntimo e então respondeu:
- Como pode me garantir que vai dar lucro?
- Temos contatos de algumas das principais revistas de música do país, que nos darão cobertura. Só o que precisamos agora é da sua aprovação. - ele ficou pensativo mais um tempo e então perguntou:
- Todos eles são formados?
- Todos, menos eu.
- Irônico que você seja o destaque.
- É que eu sou de todos o melhor. E você será testemunha ocular disso se nos deixar tocar. - por fim, o dono da sala deu uma larga risada e então disse:
- Muito bem, garoto, você me convenceu. Vou te dar uma chance de se apresentar.
- Sério? - indagou empolgado.
- Quero ver do que sua orquestra é capaz. Você fala com ares de grandeza que me convence que, de um jeito ou de outro, será interessante. Se for bom, será um novo astro da música nascendo bem na minha sala! Mas, se for ruim, vai ser um prazer para mim rir da sua cara!
E, ao que parecia, o objetivo tinha sido alcançado com grande esforço e persuasão. Mas seria necessário ainda mais que isso. Ele teria que fazer uma excelente apresentação junto à orquestra para provar que merecia o privilégio de tocar ali.
Certamente, era um desafio à altura. Suas habilidades na música não perdiam de ninguém. E aquela era sua melhor chance de provar isso.
Finalmente chegou o dia da apresentação, e não apenas repórteres em nome das importantes revistas de música estavam presentes, mas também grandes músicos, vindos das maiores orquestras do mundo, que estavam presentes para observar a possível ascensão dum músico, conforme fora anunciado.
- O destaque de hoje é o pianista. - diziam entre si. - Todos dizem que ele vai impressionar, e nós queremos ver do que ele é capaz.
O rapaz ficou emocionado como nunca ficara antes em sua vida quando viu o tamanho do público reunido para vê-lo. Essa era sem dúvida a oportunidade imperdível de manifestar seu espírito pela música. E isso o faria grande. Lhe daria destaque. Mas ele tinha primeiro que vencer o desafio. E julgava-se apto para isso.
Finalmente chegou a hora da apresentação. O seu professor de piano da infância era o regente, e ele era o pianista que todos queriam ver. O destaque da noite. Tocou cada compasso, cada nota de Rachmaninoff como se fosse o demônio. A típica velocidade cegante de seus dedos sobre o piano, combinada com seu olhar fixo e determinado na partitura, realçavam a impressão que ele tocava com total ambição. Era como um gladiador em batalha, com nenhum outro objetivo senão derrotar seu inimigo. Cada toque, cada tecla era como um golpe proferido contra seu adversário na intenção de matar. Incorporava a música tão profundamente que se tornava um pianista funesto.
Mas não havia dúvida. A música era excelente. Uma interpretação de Rachmaninoff muito acima da expectativa. E com isso todos concordaram.
- Aquele pianista - os músicos comentavam entre si - é sem dúvida um dos melhores que eu já vi, e ele tem apenas vinte e nove anos!
- Mas existe algo de estranho na música dele. Algo um tanto. . . tenebroso.
E enquanto aqueles do auditório compartilhavam suas impressões da apresentação, atrás das cortinas os músicos da orquestra faziam o mesmo.
- Muito obrigado a todos pela ajuda! - disse o pianista. - Agora está tudo feito. As revistas de música vão me exultar e logo eu serei um renomado concertista. Mas eu não vou me esquecer de vocês! Tem muitas músicas que nós ainda vamos tocar juntos.
- Pensando bem. - disse um dos músicos ali presentes. - Eu não quero mais tocar nesta orquestra. Boa sorte como pianista.
- É, eu também não quero mais. - concordou outra pessoa. E logo essa unanimidade se espalhou a todos ali, que se retiravam da sala sem dar satisfações.
Em vão, o homem tentava convencer a todos a não desistir, e que aquela orquestra era um dos melhores investimentos que eles poderiam fazer. Mas ninguém concordou. Nem mesmo seu professor.
- Professor?
- Essa foi a última ajuda que eu te dei na música. Agora você precisa ajudar a si mesmo. - falou, um momento antes de sair.
A sala não ficou totalmente vazia. Ainda havia alguém ali. Era a pequena flautista. Ele a olhou com um sorriso de satisfação e disse, triunfante:
- Eu sabia que você não me abandonaria! Que seja, não precisamos deles! Só nós dois juntos podemos fazer grandes coisas!
Ela nada respondeu. Mas, suspirando, foi até o piano e, sentando-se, começou a executar uma dramática melodia. Era uma música que ele conhecia muito bem. Claro, como poderia não conhecer? A Sonata Patética de Beethoven.
Sem dizer palavra, ele a assistiu tocar a peça até o fim. Mas não assistia com gosto, mas com grande dúvida. Seu semblante expressava muito bem essa intriga.
- Por que você tocou essa música? - perguntou, ao final da apresentação.
- Você não percebe? - falou ela. - Será que até agora ainda não percebeu? Tudo começou com essa música.
- Essa música? - estranhou. - Como pode ter começado com essa música? Já conhecia muitas músicas antes dessa.
- Foi com essa música que a música começou a te destruir! - disse a flautista, grandemente alarmada.
- A música me destrói?
- Está te destruindo até agora. Você não viu? Todos te deixaram. Ninguém mais quer ficar com você, porque parece que para você só existe a música. Essa paixão destruidora com certeza vai acabar te deixando sozinho, sem Deus no mundo!
Em seu íntimo, ele sabia que o que ela falava era verdade. Mas irracionalmente começou a negá-la, começando com um riso desesperado.
- Isso é absurdo! - clamava. - A música é boa. Ela não pode trazer nada, nada de ruim. Não tem como a música destruir ninguém!
A moça calmamente desceu da banqueta e falou:
- É melhor que você perceba as coisas antes que os efeitos sejam irreversíveis. Se já não forem!
Ele agressivamente correu até ela e a agarrou pelos braços. A mulher não ficou amedrontada diante de tal violenta reação, pois sabia que o homem estava confuso.
- Mas você ainda está comigo! E vai ficar comigo! Vamos nos casar!
- Não. - disse ela, afastando-o. - Eu sou da mesma opinião que os outros. Não quero mais ficar com você. Só estou dizendo isso porque você é um fanático, e nunca iria perceber o quanto está se prejudicando. Como seu professor disse, você precisa se ajudar! - ele soltou um áspero grunhido e então respondeu:
- Eu não preciso de ajuda. Mas eu gosto de você! Amo a sua música! Amo a sua flauta! Por que não podemos ficar juntos? - Com olhar sério e tom de voz firme, ela respondeu:
- Eu tenho um namorado que se mudou para o exterior para estudar clarinete. Eu vou me mudar para lá também e nós vamos nos casar. Eu nunca estarei sozinha.
- E eu também não! - gritou.
- Claro que não. - respondeu a mulher, com o mesmo tom de voz de antes. - Você tem a música.
Aquelas palavras lhe fizeram perder as forças e ele caiu sentado no chão. Mas por quê? Eram só palavras. Será que a música, durante todos aqueles anos, não foi o suficiente para lhe fazer perceber isso? Ao menos não explicitamente.
- A música não deveria ser suficiente? - Balbuciou ele.
Sem resposta, a mulher se virou de costas e seguiu seu rumo. Mas antes de chegar à saída, ela disse calmamente:
- Se você duvida, vá em frente. Realize seu sonho de ser um concertista. Siga a grandiosa carreira que você quer. Só não se esqueça de ler o que as revistas de música vão falar sobre você. - dizendo isso, saiu.
Mas a admoestação não parecia necessária. Ele se empenhou a vida inteira por um objetivo, e então havia conseguido. Não havia motivo para seguir outro caminho.
Ele se tornou um concertista de renome internacional e realizou apresentações muito bem assistidas nas maiores salas de música e teatros do país. Tocou nas maiores orquestras do mundo, sob a batuta de maestros de grande renome que também ele admirava. Mas ainda faltava alguma coisa.
Uma coisa que ele nunca teve, desde a primeira vez que tocou piano. Seria então tarde demais para procurar essa substância? Afinal, resolveu seguir o conselho da flautista e ler o que as revistas de música diziam a seu respeito. Pela primeira vez perscrutou a opinião pública. E o resultado foi surpreendente.
A freqüência com que apareciam expressões como “pianista demoníaco”, “perturbado”, “fanático” e “músico infeliz” era desestimulante. À sua música, porém, parecia ter sido reservada uma única palavra: tenebrosa.
E talvez estivesse certo. Mesmo com a música ao seu redor, todo o tempo, ele não estava satisfeito. De jeito nenhum. A música o havia destruído, mas era tudo que havia em seu mundo. Não poderia se livrar dela.
Profundamente perturbado com essas questões, isolou-se em sua residência e começou a compor. O dia inteiro, não parava de tocar o piano e escrever as suas próprias músicas. Eram numerosas, mas não havia com quem compartilhar. Poderia apresentá-las onde quer que fosse, mas já sabia o resultado. Sua música não era apreciada pela crítica. Na verdade, não o era por ele mesmo.
Continuou compondo até se resignar. Aquilo não seria o bastante para lhe satisfazer, por mais que quisesse. Talvez ele haveria mesmo de seguir outro caminho, porque o mistério apresentado sob as teclas do piano continuava ainda insolúvel.
Ainda assim, sua certeza era de que a música nunca o abandonaria. Melhor ainda, a música era a única coisa que nunca o abandonaria. E então, solitário e resignado, começou a tocar ali, naquela casa com horrenda decoração, a música Tenebroso, de Ernesto Nazareth. Certamente, não haveria nenhuma outra que melhor descrevesse o efeito da música em sua vida.