ANJO CORROMPIDO
Por: josafá bonfim
Eram muitos..., algo em torno de uns trinta. Tocavam a vida rotineira com as tarefas de estudos morando no velho pensionato; estabelecimento de uso exclusivo para rapazes oriundos do interior que chegava em busca de aprendizado na capital. Ambiente simples, improvisado a partir de um velho casario numa área de cortiços contigua à zona do baixo meretrício, no decantado centro histórico da cidade. Não vivia abandonado como tantos ao seu redor, por servir para aquela utilidade. Os quartos, todos no segundo pavimento, eram de condições precárias, feitos com divisórias de compensado, com camas de madeira rústica e apenas dois banheiros serviam à grande quantidade de hospedes, todos do sexo masculino. Pra cada porta/janela, correspondia um cubículo, onde moravam de três a cinco hospedes. Por ser um lugar antigo e mal cuidado, vivia infestado de baratas, ratos, pernilongos e até um tal de percevejo, que emergiam dos porões seculares; sem contudo nunca ter sido seu interior dedetizado ou desinfetado. Limpeza mesmo, só a base de vassoura e água.
Assim vivia aquela legião de futuristas, passando as mais diversas dificuldades, distante dos seus, sem assistência, mas lutando pelos estudos no afã de um dia poder gozar de uma vida digna com o que amealhou através do esforço pessoal. Contavam para a empreitada, só com a pequena ajuda dos pais, que com muito sacrifício, tiravam do seu parco sustento para alicerçar o futuro dos filhos.
Vida de estudante interiorano profissional, ao contrário do que se imagina, nunca foi fácil. Os que vivem somente para estudar, se não tem compromisso com trabalho ou outra ocupação, também não tem como melhorar seu padrão de vida, pois dependem de mesada ou outro tipo de ajuda, que muitas vezes mal dá para a subsistência básica. E assim teria que ser..., por conta do risco de com dinheiro, o beneficiário perverter-se, negligenciando os estudos a ponto de desvirtuar-se, enveredando nos descaminhos da vida. É regra do senso comum, e todo pai de aluno sabe disso, sobretudo os que têm filhos à distancia. Acrescente-se a isso, o risco de imaturos, vivendo longe do acompanhamento famíliar, envolverem-se com amizades perigosas, que costumam levar às fronteiras dos vícios como: alcoolismo, das drogas e prostituição. Carece de sorte, poder um dia realizar o sonho de ver um filho prosperar, vencer a vida, tendo vivido num ambiente desse gênero.
Estamos num cenário tipicamente nordestino, região onde as dificuldades são maximizadas, onde poucos tem muito e muitos nada tem, - assim foi, tem sido e só Deus sabe quando muda essa realidade.
Cidade antiga, provinciana, de estrutura acanhada, mas de custo de vida relativamente alto, com sociedade preconceituosa e discriminadora, pra onde rumavam levas de estudantes do interior e de estados vizinhos, na busca do conhecimento formal. Naquela época as únicas alternativas dos menos aquinhoados egressos do interior, era morar em casa de parentes ou de amigos. A última instancia era o pensionato de estudantes, como relatado, onde o custo era baixo.
A turma do pensionato desta dissertação era distinguida. Os alunos ali instalados, não obstante as diversidades, eram em regra estudiosos e aplicados, sempre obtendo bons resultados em exames vestibulares e concursos diversos. É verdade que também tinham seus momentos de distração, de brincadeiras, de transgressões e até de vexames, ah se tinha...
Alguns moradores do local, algo em torno de meia dúzia, além de estudarem, eram comerciários, trabalhando em lojas nas proximidades. E bem poucos, talvez uns três, viviam somente do trabalho. Dentre os últimos morava um moço de média idade, conhecido como o “homem sombra”, sem que se soubesse seu verdadeiro nome. Bastante introspectivo, de habito soturno, não dialogava com ninguém da turma. Saia muito cedo para o trabalho retornando tarde da noite. O Misterioso Sombra em momento algum tirava os óculos escuros do rosto. Não sabia ter ganho da turma esse apelido e ao cruzar com o pessoal pelos corredores do casarão, sequer dava um bom dia. Ninguém conhecia seu timbre de voz, e só era visto em trajes completos: camisa mangas compridas, calças longas e sapatos. O homem era esquisito em demasia.
Certa feita, na hora do jornal nacional da TV, com seu inseparável óculos e cara bem amarrada, chega perante os presentes e dirigindo-se para a responsável pela casa, pergunta com a voz grave e nasalada, que enfim tornou-se conhecida: dona Suzana a senhora não viu, ou sabe quem bebeu desse leite do pacote azul que está no refrigerador coletivo. – Pergunto para prevenir a turma, porque havia botado raticida nele, para eliminar uns ratos que me perturbam o sono –concluiu em tom enigmático, sem mover um músculo da face.
Apreensiva, responde a encarregada dos serviços:
-Não senhor..., beberam seu leite? Vou me inteirar disso. -Vem cá, mas tinha veneno de rato no leite? Meu Deus, quem terá sido o louco que bebeu?
Um silêncio fúnebre bateu no recinto. Maquinalmente todos se entreolhavam com a cara assustada, mas sem pronunciar qualquer palavra. Incontinente, ouviu-se um desconcertado temperar de garganta no rumo do banheiro. Alguém verificou..., era o travesso do Ezequiel se acabando de vomitar. – Vejam só..., estava assim, revelada a autoria do feito, tendo o autor a partir de então carregado o sugestivo apelido de “gabiru branco”. Dali pra frente, derivados de leite e outros alimentos frios, sobravam imunes no freezer. Descobriu-se o método milagreiro...
Nesta mesma temporada viveu no badalado pensionato um rapaz conhecido por Manezinho. Era um jovem discreto, retraído, com certa dificuldade de aprendizado, mas de bons costumes. De origem muito pobre. Por trabalhar bastante como balconista de loja, não sobrava tempo nem disposição para o estudo, que levava com tremenda dificuldade. Sem razão aparente, de uma hora pra outra, a vida pareceu-lhe sorrir. O pessoal começou a perceber no rapaz significativa transformação, perdendo a faceta de Mané. Iniciou-se na bebida, sumia nos finais de semana em companhias desconhecidas. Passou a andar bem vestido e vez em quando era visto em rodas de bacanas em ambientes de destaque na cidade. Indagado, dizia ter conseguido ascensão funcional; daí a necessidade de se apresentar melhor por ter que se relacionar com tipos de amizades mais exigentes. Tudo bem... Ocorre que, com o currículo que tinha e a firma em que trabalhava, não dava para crer naquela versão; a moçada não engolia a estória.
O relacionamento social de Manezinho foi tornando-se seleto a ponto de participar de festas e eventos promovidos pela alta sociedade em ambiente de requinte e sofisticação. Que estaria alçando o pobre interiorano àquele patamar? – era a pergunta recorrente.
Dentre as novas e destacadas amizades adquiridas, figurava um grande empresário do ramo automobilístico, com empresas espalhadas por várias cidades, figura vultosa no meio social. Vez e outra era visto junto com o figurão, sempre acompanhados de belas mulheres. Embora não ser novidade na urbe, que o distinguido empresário era homossexual não assumido.
Roupas de marca, joias e relógios caríssimos, passaram a ser objetos de uso rotineiro do novo “bon vivant”, que tocava a sorte numa boa.
A inusitada transformação era observada pela corriola, que não poupava as insinuações tesouradas pelas más línguas.
Em certo bate papo descontraído no terraço do velho prédio, um dos gaiatos da turma saiu-se com essa: Manezinho, cara..., toma cuidado..., esse figurão boiola é gilete..., no dia que ele entender de virar o disco, tu vai ver alma de bigode. – Dizem até que ele em transe é violento e não relaxa um trezoitão, e que nessas horas ele passa de gata mansa para onça furiosa. -Desatara-se um coro de gargalhadas. Manezinho mandou Bira ir tomar onde as patas tomam..., e vermelhinho foi logo se retirando. Não era de se exasperar com ninguém. Pessoa de comportamento sereno, prestativo e bastante cordial, daí gozar de bom conceito com a turma.
Passado o tempo, alguém um dia deu por sua falta, que segundo o companheiro de quarto, Mané teria saído no sábado pela manhã e já era quarta-feira à tarde sem ter retornado. Até do seu serviço já haviam ligado à sua procura. Fato nunca acontecido antes, deixando os colegas mais apreensivos. - Meu Deus por onde se meteu Mané, perguntavam. Pensaram em contatar com sua família lá nos cafundó do Judas. Outros imaginaram comunicar seu desaparecimento a policia. Em acordo alguém disse: vamos esperar até amanhã, se até às dez horas ele não chegar, cairemos em campo.
Enquanto uns folheavam apontamentos escolares, outros na sala assistiam televisão.
Por volta das duas horas da madrugada a sirene corta o silencio lá embaixo, no térreo. Alguém vai atender, e mistura surpresa com alivio: era o danado que retornava ao convívio encharcado de suor, desmilinguido e arrupiado qual gato em final de vadiagem. Os que se encontravam acordados cercaram o fujão para saber o que tinha ocorrido. Taciturno, Manezinho calmo como sempre, responde: Porque vocês estão assim assustados desse jeito? – Ora cara, tu some no sábado, sem avisar nada a ninguém... Todo mundo te procurando... A gente só imaginava em coisa ruim.
– Sê tolo, cara, eu tinha viajado a serviço e não deu tempo avisar..., Tô vindo aqui pra pegar outra roupa e avisar que já to me mandando de viagem, de novo.
Entrou no seu quarto apanhou rápido alguns pertences, despediu-se da turma dizendo ausentar-se por pelo menos três dias. Ficaram intrigados com aquilo tudo, mas deixaram pra lá e quem não voltou a sua ocupação inicial, foi direto pra cama.
No dia seguinte o jornal estampa na principal foto legenda:
[...] É ENCONTRADO MORTO EM QUARTO DE MOTEL