Vigia Noturno
Aquela seria a última vez e Chris tinha certeza disso. Teve certeza no momento em que Rose Slovik, que era judia, chegou às onze da noite, buzinando em frente à casa dele. Dentro do velho Buick estavam Norman e Gertie Kinshaw, o casal de assaltantes mão-leve que Chris conhecera oito meses antes quando entrara na (como diria sua velha e agora padecida de Alzheimer mãe) vida desgraçada. Norman e Gertie eram dois gordões que batiam carteira no ponto de ônibus, nada muito pesado. Chris tinha certeza que qualquer dia daqueles acabaria encontrando no jornal o obituário dos dois, talvez devido a um ataque cardíaco no momento de mais um assalto ou a uma crise asmática (Gertie estava tão gorda e tão mal ultimamente que até quando estava acordada sua respiração assemelhava-se a um porco roncando na lama depois de um lanche de verduras podres), mas de qualquer forma, ele não se importava muito. Até que gostava de Norman e Gertie, mas depois daquela noite pretendia cortar para sempre seus mergulhos na “vida desgraçada” e começar a pegar firme na construção de uma casa e de um negócio de computadores usados. Em tese, depois daquele último assalto na garagem alfandegária ao final da Rua Treze, Chris esperava incinerar para sempre qualquer laço que um dia tivera com Norman, Rose, Gertie e sua trupe perdida.
Mas no momento não poderia fazer nada disso.
Rose continuou buzinando do lado de fora insistentemente até que Chris saísse do barraco que dividia com sua antiga namorada, que o largara para namorar o nerd virgem que morava dois trailers à esquerda, e fizesse sinal para que ela parasse.
Chris atravessou o caminho enlameado e cheio de lixo que ligava o barraco que um dia ele chamara de trailer até a caranga de Rose.
- Merda, Texano, entre logo!- Norman gritou, chutando a porta do Buick.
Chris respirou fundo. Não era texano, longe disso, era filho de uma boa galera batista que morava a uns dois mil quilômetros do velho oeste, em Indiana. Mas nem se atreveria a corrigir Norman. O porcão estava bêbado e só de pirraça poderia lhe fazer o favor de vomitar no colo dele.
- Chris, temos um problema.- Rose disse, quando ele entrou no Buick e bateu a porta.
Ele não fez sequer um esforço para disfarçar o cheiro que empesteava o automóvel. Era uma mistura de álcool e cheiro de merda e urina. Talvez o resultado de alguns arrotos que Norman amavelmente expelira no caminho da Bouckback até ali. Torceu o nariz e depois, tossiu amargamente enquanto Rose lhe dava uns tapinhas nas costas.
- Vamos, vamos. Temos um problema, Chris.
Ele pigarreou e então abriu a janela do Buick estacionado para engolir um pouco de ar puro.
- O... o que foi, Rose? Qual o problema dessa vez?- ele disse, antes de soltar um último e derradeiro pigarreio.
- Botaram um vigia na alfândega.
Chris franziu o cenho. Gertie, que até o momento estava calada, espremida em seus cento e treze quilos no banco de trás e devorando um saco de batatinhas baratas compradas no mercado uns oitocentos anos atrás, roncou de surpresa. Norman riu e deu uma cotovelada nas costelas dela.
- Um vigia? Mas como...
- Bruce me contou hoje, antes de sair com o carro. Foi bacana da parte dele. Quer dizer, ele frequenta a reunião dos Alcoólicos Anônimos e aquelas sessões de terapia em grupo, e agora jura que está se reformando, então ele não tinha nenhuma obrigação em me avisar nem nada disso, mas fez. Antes que eu saísse com o carro, ele estava regando suas petúnias...
- Papoulas.
- Que seja, Chris. Ele regava as flores amarelas no gramado, me chamou e disse que sabia o que eu andava fazendo por ali. Antes que eu xingasse e o mandasse à merda, ele me disse para tomar cuidado naquela noite porque a alfândega tinha contratado um novo vigia, depois de uns dez meses sem ninguém para vigiar as coisas por lá durante a noite. Depois, ele piscou para mim, me entregou um panfleto das Testemunhas de Jeová e disse que me esperava na próxima reunião na sexta feira. Contornei a curva com o carro e depois joguei o panfleto fora. Achei que seria sacanagem amassá-lo na frente de Bruce depois desse favor.
- Eu odeio Testemunhas de Jeová. Quer dizer, com aquelas roupinhas engomadas e aqueles rabos arrogantes sempre...
- Cale a boca, Norman.- Rose disparou e ele interrompeu-se antes de concluir sua frase.
Rose era bacana, Chris sabia disso, talvez mais bacana que Norman e Gertie juntos. De longe, era a mulher mais durona e pé firme que ele jamais conhecera. Não sabia qual era sua idade, mas a julgar pela aparência e pelos cabelos principiando-se ao grisalho, Chris chutava uns quarenta e cinco, talvez quarenta e oito anos. Mas Rose tinha a agilidade de uma ginasta ucraniana na flor da idade. Andava como um gato, contorcia-se para atravessar portões e sistemas de alarme, era sutil e sorrateira. Quem a conhecesse poderia toma-la por uma mulher pacífica e tal, mas Chris sabia que era pura ilusão. O negócio com Rose era mais ou menos da maneira como era com todos os judeus desse mundo: não pise nos calos e eles serão legais; sacaneie e eles farão você desejar o inferno antes da hora.
- Mas que porcaria. Dez meses sem a bosta de um vigia noturno e agora, na nossa noite...
- Eu sei, Chris. Por isso queria perguntar se você quer ir em frente ou tentar outra coisa. Talvez uma daquelas casas de ricos no Jardim Betel...
Chris cogitou em assaltar a mansão dos ricaços “cagadores de dinheiro”, como dizia Norman. Era muito arriscado. A alfândega era um prédio mais aberto que qualquer uma daquelas mansõezinhas e todo mundo sabia que qualquer ser humano no mundo que tivesse uma conta corrente com mais de sessenta mil dólares ao ano tornava-se meio paranoico com esse treco todo de segurança. Na opinião dele, os quatro – Rose, Norman, Chris e a safada porca da Gertie – estariam ferrados com a polícia antes mesmo de atravessar o gramado de qualquer um daqueles casarões.
Ele bufou e Gertie soltou outro ronco depois que devorou a última batatinha do saco.
- Acho que esse negócio do Jardim Betel não dá certo, Rose. Os ricaços têm guardas, câmeras e toda essa porcaria de vigilância eletrônica. É uma fria, pelo menos para mim.
A verdade é que Chris estava até um pouco aliviado no fato de que a alfândega agora contava com um novo vigia noturno. Quando Rose propusera a ele afanar o carregamento de seda que chegava lá todos os dias vindo do litoral, Chris relutara um pouco, mas diante da insistência de Rose e da grande quantia de zeros que valia aquela seda toda, aceitara fazer o trabalho com ela. Mas agora, descobria que nunca quisera realmente assaltar a alfândega. Uma coisa era roubar uns trocados de velhas e casaizinhos nas ruas dos subúrbios, outra totalmente diferente era invadir uma propriedade de domínio da merda do governo e carregar nas costas duzentos e trinta quilos de seda pura.
Torcia para que Rose desistisse da empreitada e o deixasse sair do carro. Desse modo, não haveria uma última vez e Chris não sentiria mais aquela sensação de perigo iminente que começara a sentir agora. Sem contar que se desistissem do assalto e Chris voltasse ao barraco naquele momento, poderia assistir em tempo o último bloco do Jay Leno.
- Então? O que fazemos?- indagou Rose.
Quando Chris, muito sutilmente, sugeriria deixarem para lá esse assalto, Norman (o maldito Norman!) arrotou outra vez e disse, atropelando-se nas palavras:
- Pode ser que Bruce esteja mentindo...
Rose arregalou os olhos, como se estivesse sendo iluminada. Chris amaldiçoou Norman, aquele beberrão inconsequente, enquanto Rose esboçava um sorrisinho meio fraco.
- Acha isso possível, Norman?- ela perguntou.
Ele balançou lenta e afirmativamente a cabeça. Chris teve vontade de sacudir Rose pela gola da blusa, dar-lhe uns bons tapas nas bochechas oleosas e gritar que merda ela estava fazendo ao ouvir Norman. Em todos os oito meses que Chris estava com a trupe de ladrõezinhos, vira Norman se dirigir diretamente a Rose talvez cinco ou seis vezes, nada além disso. E agora, Norman dissera a coisa errada no momento errado, mas para a pessoa certa.
- Quer dizer, Rose, ele é Testemunha de Jeová e todo esse negócio, mas o cara pode estar mentindo. Talvez até para que nós não afanássemos a alfândega hoje e ele ganhasse mais um testemunho para Jesus ou coisa assim, sei lá. Mas na minha opinião, esse...
- Estou pouco me lixando para sua opinião, Norman. Mas o que você disse pode até ser verdade... e Bruce nunca foi muito confiável. Por que não estaria mentindo dessa vez?- Rose cogitou, os olhos elevados, sonhando acordada.
No banco de trás, Gertie caíra no sono e roncava ruidosamente. Norman cutucou a mulher com os cotovelos e ela pareceu afogar-se no próprio ronco. Depois, piscou os olhos, revirou-se no banco e caiu no sono novamente.
Rose ligou o Buick e o motor estalou e depois soltou um som meio estrepitoso. O cano do escapamento cuspiu uma fumaça preta de fuligem e as rodas quase carecas puseram-se a rodar.
Na calada da noite, Rose, Chris, Norman e a sonolenta suína Gertie partiram em direção à alfândega ao final da Rua Treze, do outro lado da pequena cidade.
Era de tirar o fôlego, mesmo para Chris, que estivera quatro vezes em Nova York espremido entre os maiores arranha-céus do mundo.
A alfândega era um prédio de uns treze metros de altura, pelo que ele calculava, e uns duzentos e cinquenta de largura. Era grande demais para o porte da cidade, que tinha no máximo uns cinquenta mil habitantes (logicamente se você contasse como “habitantes” os caipiras que moravam em fazendas nos arredores. Se os excluísse, a conta caía para mais ou menos vinte mil moradores).
O prédio era todo construído em tijolos. O telhado era plano, um problema grave que Chris ouvira um bilhão de vezes nos jornais na época da neve, que se acumulava e vergava perigosamente o teto. Havia uma imensa e pesada porta de madeira com dois ferrolhos que precisavam de no mínimo dois homens para destravar. Na parte dos fundos, Chris distinguiu oito caminhões parados, desligados e mergulhados na penumbra da noite. Percebeu que lambia os lábios ao pensar que aqueles caminhões provavelmente transportaram os duzentos e tantos quilos de seda. Rose estava certa: se acertassem naquela noite, nunca mais precisariam pensar em marreca ou trambique.
O Buick parou na parte mais escura da alfândega, que era ao lado da parede esquerda. Lá era quase impossível notar o velho automóvel estacionado, que se camuflava muito bem nas sombras. Rose desligou o carro e disse:
- Muito bem, aqui estamos. Norman, preste atenção: é chegar, afanar e sair.
- Sim, Rose Rosita.
Ela virou-se para ele, trancou a cara e depois mostrou o dedo médio.
- Seu bosta. Me chame de Rose Rosita de novo e quebro a porra dos seus dentes.
Norman recuou e depois, sorriu amarelado.
Chris ajeitou-se e então, apontou para Gertie.
- E ela?- indagou, observando a imensa mulher dobrada de lado, roncando baixinho e com gordura de batata frita untando seus lábios e a parte visível (que ele desejava que não estivesse visível; uma visão daquela deveria ser proibida por lei) dos seus seios.
Norman deu de ombros. Rose olhou no relógio.
- Vocês sabem que não podemos levar essa matrona conosco. Está mais gorda que um hipopótamo obeso e mais sonolenta que uma jiboia. Não podemos levar Gertie ou ela vai ficar para trás...- Norman disse, cautelosamente.
Rose respirou fundo, virou-se e agarrou Norman pelo colarinho da camiseta suja. Norman ganiu e então, engoliu em seco.
- Escute aqui, Norman: eu não sei por que deixei você trazê-la. Se descermos com ela, provavelmente vai ficar lá, mas eu não estou nem ligando. Por mim, vocês dois podem ir para o inferno. O meu medo é que o vigia encontre Gertie e a faça abrir a merda do bico gordo e contar tudo, inclusive meu nome, Normanzinho. Já estou cheia de você e desse saco de merda e gordura que você chama de mulher. Não a traga novamente comigo ou vou jogar você e ela de cima da Golden Gate, Norman, e pode ter certeza de que eu dirigiria 860 quilômetros só para ter esse gostinho.- Rose sussurrou, os lábios bem perto da orelha de Norman.
Chris encolheu-se no banco. Sabia que Rose seria capaz, e muito, de fazer alguma coisa contra Norman e Gertie. Era certo que ele quase queria que isso acontecesse com eles dois, especialmente depois de o otário do Norman ter abrido a boca e o feito vir até aquela alfândega escura e fedida. Mas no fundo, bem lá no fundo, sentia pena de Gertie. Havia qualquer coisa meio humilhante no fato de aquela mulher estar quase dormindo em posição fetal, ainda sentindo o gosto da gordura das batatinhas e provavelmente sonhando com mais comida.
E por que Norman continuava com Rose, mesmo que nos últimos quatro trabalhos eles dois tivessem se desentendido seriamente um monte de vezes? A resposta era simples: Rose podia ser violenta, astuta, assassina (ela não escondia de ninguém que já mandara duas pessoas para conversar com Deus antes da hora, um policial que ousou prendê-la sem reforços e um motorista de táxi que reagiu quando ela sacou a pistola de estimação e pediu os trinta e quatro dólares que ele ganhara naquele dia) e mais sagaz que uma gata no cio, mas se havia uma qualidade nela era justiça, por incrível que isso pudesse parecer. Embora ela e Chris fossem os que mais trabalhavam e os que mais se arriscassem nos assaltos, sempre o produto final era dividido igualmente entre os quatro, mesmo que Gertie, por exemplo, ficasse no carro durante todo o serviço. Se conseguissem quatro pratas de algum bêbado, seria uma para cada um. Se conseguissem vinte milhões de dólares – uma possibilidade remotíssima, era óbvio – seriam cinquenta milhões para cada um. O raciocínio de Rose era como ela mesma dizia: “se você está comigo, é parte de mim, então tudo o que eu conseguir enquanto estiver com você também é seu e não apenas meu”. Chris também sabia que Rose dividia sua grana em duas partes, uma para ela e outra para uma misteriosa remessa de dinheiro mensal que depois ficou sabendo que se tratava do pagamento de uma vaga para sua mãe doente e velha no Asilo Presbiteriano do Caminho, em Utah.
E por isso Norman gostava de aturar Rose. Os ganhos no final sempre compensavam as lutas no começo.
Chris estava pronto para separar os dois caso começassem uma briga ali mesmo. Rose segurava o colarinho de Norman até que ele empurrou-a e ela o soltou. Norman caiu no banco e soltou um guincho.
- Puta que pariu, Rose! Maldita seja!
Ela riu e cutucou Norman com a ponta dos sapatos de couro já gasto.
- Pare de reclamar, Norman. E saia logo do carro com o pé de cabra antes que eu o use para abrir um buraco no seu cérebro demente.
A lua escondeu-se atrás das nuvens no momento em que eles saíram do carro. Chris sentiu o ar fresco da noite. Não era para ser assim, não numa noite em pleno janeiro, mas estavam muito próximos do rio que corria ali perto, então o clima sempre estava mais fresco naquela parte da cidade. Colocou as mãos nos bolsos e contemplou a imensa alfândega que se desenrolava à sua frente. Teriam de entrar pela porta dos fundos; provavelmente o vigia estivesse rondando a parte da frente, bem ali, a uma porta de distância. Chris torcia para que esse cara fosse como o vigia noturno da mercearia que assaltaram na calada da noite, no mês passado. Tinham entrado, arrombado a porta e o cara estava encostado na parede, dormindo na cadeira. Não acordou em nenhum momento do serviço e antes de saírem de lá de dentro com dois mil e quatrocentos dólares e quatorze quilos de carne magra e de classe, Rose deixara um bilhete pregado na vitrine da mercearia com “Há, há, há, há!” escrito em caneta vermelha.
Se tivessem sorte, ali seria o mesmo caso, embora ele duvidasse dessa possiblidade. O primeiro vigia, o da mercearia, tinha apenas um patrimônio de uns seis mil dólares para vigiar, entre dinheiro, carnes nobres e uma cruz de ouro que estava pendurada no escritório e que Rose não quisera levar consigo naquela noite. Aquele ali, na alfândega, tinha um que beirava os dois milhões de pratas.
Dormir estava fora de questão, pelo menos ao que Chris pensava.
Norman abriu o porta malas do carro, massageando o pescoço. O pé de cabra que tanto os acompanhara nos últimos serviços, entre assaltos a comércios locais e arrombamento de carros ou das caminhonetes dos caipiras da região, estava cuidadosamente colocado entre uma maleta de ferro, que Chris supôs conter ferramentas, e um pneu velho sem calota.
- Onde está a lanterna?- ele perguntou.
Norman sorriu e então enfiou a mão no bolso, puxando uma lanterna pequena, mas que se mostrou potente quando ele a ligou. Um facho de luz emitiu-se e iluminou a rua escura. Dentro do carro, como se assistisse a isso tudo, Gertie soltou um profundo ronco e Chris riu. Rose sorriu e deu um tapinha nas costas dele, que se esquivou.
- Vamos entrar. Norman, você...
- Já sei, Mestre Rose. Entrar, pegar, sair. Mais ou menos como se faz com as putas lá na avenida Dalton.
Em todos aqueles meses trabalhando juntos, Chris sempre notara que Rose comandava a situação, colocando Norman geralmente no trabalho pesado, como arrombar portas e lutar com um ou dois carinhas que se metiam a besta e reagiam. Gertie sempre se postava a despistar, como na vez em que invadiram uma loja de serragens no centro da cidade. Puseram Gertie para gritar no outro lado da rua, como se estivesse passando mal (todo mundo acreditava; ao que parece, as pessoas sempre esperam que os gordos passem mal nos lugares e momentos mais inusitados e quando isso acontece, geralmente não é muita surpresa para ninguém) e o dono da loja apenas atravessou a rua para tentar ajudá-la. Chris sacara a arma do bolso e tinha desferido uma coronhada na cabeça do pobre coitado, que ficou inconsciente por umas duas horas. Tempo de sobra para Rose entrar na loja, colocar Norman para arrombar a caixa registradora e então afanar toda a grana de lá.
Deram a volta na alfândega e Chris cruzou os dedos na esperança de que o vigia fosse gordo e estivesse dormindo.
A porta dos fundos era menor e, tecnicamente, mais simples de arrombar. A alfândega fora reformada havia pouco tempo. Tinham trocado as portas da frente, dos lados esquerdo e direito e a calha que escoava água da chuva, além de passarem um reboque nas paredes que já esfarelavam por causa da umidade e do sol constantes. Mas a porta dos fundos estava da mesma maneira como sempre estivera, desde que o prédio fora construído, uns oito milhões de anos atrás. Era toda feita de compensado de madeira, o que facilitava o trabalho. Compensado era o sonho de Norman, que não precisaria esforçar-se muito para arrombar com o pé de cabra. A porta estava escura e o compensado de madeira esfarelava-se quando Chris esfregava os dedos na superfície úmida.
- Isso vai ser mais fácil do que eu pensei. Em dois tempos, eu estarei caindo fora daqui em direção ao Hilton mais próximo para lavar meu rabo numa daquelas banheiras de mármore importado cheias de frescura.- disse Rose, e Chris riu. Rose sabia ser engraçada até num momento tenso como aquele.
Ele sentiu um frio na espinha e suas costas e nuca formigaram. Estava bem experiente naquele tipo de serviço – sem firulas, estava bem experiente em ser ladrão e tomar coisas das pessoas desavisadas, e Deus sabia quantas dessas havia na América -, mas aquela sensação, aquele formigamento tenso nunca o deixariam. Desde que realizara seu primeiro assalto com Rose Slovik, uma desastrosa tentativa de roubar umas correntes de ouro que depois se mostraram falsas em uma loja de departamentos barata em Clendon, oito quilômetros ao sul dali, tinha aprendido a controlar bem suas emoções. Não sentia mais os braços e pernas trêmulos nem sofria tonturas ou paralisia momentânea, como acontecera em Clendon e que quase o havia levado à cadeia. Mas o formigamento...
A verdade era que roubar era um exercício de pura tensão, talvez mais tenso do que pintar prédios de quarenta andares em Nova York ou enfiar a cabeça dentro da boca de crocodilos, como faziam aqueles indianos malucos na televisão. Quer dizer, em todos esses trabalhos havia riscos, mas quando o andaime caía ou o crocodilo fechava as mandíbulas e abocanhava uma cabeçona daquelas, as pessoas, pesarosas e generosas, geralmente se juntavam e até se esforçavam para ajudar as vítimas – pintores ou exibicionistas. No entanto, roubar era o único trabalho em que o risco era constante com um diferencial: se algo acontecesse de errado, ninguém se juntaria para tentar te ajudar. Ao contrário, fariam o possível para ferrar ainda mais com você se sofresse um acidente ou tomasse um tiro bem no meio da cara.
Norman enfiou o pé de cabra na fechadura, respirou fundo e seus músculos flácidos retesaram-se quando fez força para baixo. A madeira podre rapidamente estalou e então, desmontou-se com um guincho. Norman surpreendeu-se e quase caiu no chão ante a tamanha fragilidade da fechadura.
- Caramba! Talvez nem precisássemos disso aqui!- ele disse, apontando para o pé de cabra.
Era verdade. Com uma porta podre daquelas, se ele, Chris, desse um chute, poderia abrir um bom rombo no compensado barato e ruim de madeira.
Rose tossiu e sacudiu os braços para espalhar a poeira úmida que subiu da porta. O buraco tinha mais ou menos uns oitenta centímetros de diâmetro, o bastante para que ela e Chris pudessem passar. Norman, evidentemente, com sua cintura de quase um metro e setenta e cento e dois quilos, ficaria de fora dessa vez.
- Está muito escuro... não consigo ver nada.- ela sussurrou.
Inconscientemente, Chris agarrou ambas as mãos e as torcia em nervosismo. Rezava para que o barulho não houvesse atraído o vigia noturno, uma possibilidade da qual Rose não tomara muita importância, ao que tudo indicava. Ele podia estar dormindo, é claro, mas a sorte não sorria muitas vezes para ladrões. De repente, aquela situação toda – a completa escuridão dentro da alfândega, a ausência de barulho e o formigamento que quase chegava a ser incômodo – o estressou muito. Queria rapar as coisas dali, toda aquela seda, e cair fora o mais rápido possível.
- Talvez o vigia esteja do outro lado. A alfândega é bem grande.
Chris abaixou-se e enfiou a cabeça dentro do buraco. O odor de poeira misturado a cheiros suaves e outros mais fortes o fez tossir. Podia distinguir o aroma leve de banana ou coisa assim, cebola, sangue (provavelmente do carregamento de carne que viera do rio no dia anterior), peixe, perfume forte e, claro, o cheiro de seda bruta. Se estivessem prontos a roubar um material com aroma tão forte quanto aquele, não o surpreenderia se quando abrissem as caixas com a seda encontrassem ainda uns bichinhos da seda no emaranhado. Aquilo era cheiro de seda fresca. Ou, se você preferir – Chris preferia essa versão – cheiro de verdinhas frescas.
Deixou que seus olhos se acostumassem à falta de luz e perscrutou o ambiente. Distinguiu algumas caixas pequenas, outras enormes, de uns cinco metros de altura, empilhadas nos cantos das paredes. Mas nada do vigia, o que era muito estranho. Só agora ele também percebia que todas as luzes, inclusive as de fora, estavam apagadas ou nem sequer tinham sido acesas.
- Negativo, Rose.- ele disse.
Rose pôs-se a pensar e a morder o lábio inferior. Norman ergueu o pé de cabra e apontou para o buraco circular.
- Por que simplesmente não entramos nessa droga e fazemos o serviço? Quem tem medo de um vigia? Ele é tão esperto quanto qualquer um de nós. E se o cara forçar, podemos...
- Não é isso, seu imbecil. Não tenho medo do vigia nem nada disso. O meu medo, como já te falei antes, boçal, é que haja alguma armadilha aí dentro e a gente caia nela como patos ferrados na gaiola de algum caçador caipira.- ponderou Rose.
- Tipo uma tocaia com uns oitenta policiais? Esperando por nós?
Rose sacudiu os braços, despachando Norman e suas especulações desnecessárias.
- Ou vamos embora ou entramos, Rose. Você decide.- disse Chris.
Ela pensou por alguns momentos. Remexia os lábios superior e inferior e depois, os mordia com a ponta dos dentes. Chris repetia o mantra em sua cabeça insistentemente: vamos embora, vamos embora, vamos embora. Norman, parecendo muito tranquilo com tudo aquilo, pôs-se a assobiar baixinho e a sacudir o pé de cabra de um lado a outro. A lua escondeu-se definitivamente atrás de um emaranhado de nuvens densas e Chris percebeu como a falta de luzes ali fora fazia falta. Mas talvez fosse até melhor. Com as luzes acesas, dificilmente teriam passado dos portões da alfândega àquela hora da noite.
- Vamos entrar. Primeiro eu, depois você, Chris, e depois você abra um buraco maior na porta para que possa entrar, Norman. Não vou arriscar o pescoço sozinha e deixar você escapar se as coisas melarem, Normanzinho.
Ele assentiu, sabiamente prevenido. Chris repirou fundo. Queria dizer a Rose que alguma coisa estava errada por ali, era escuro demais, fresco demais (o vento agitava seus cabelos para frente e carregava até seus ouvidos o que ele deduziu ser o ronco de Gertie, no carro) e escuro demais, mas acima de tudo, silencioso demais. Se houvesse mesmo um vigia, teriam visto a luz de alguma lanterna em qualquer ponto da alfândega. Mas o que Norman dissera também era verdade. Ele podia estar vasculhando atrás de alguma caixa ou talvez até do lado de fora do prédio, talvez atraído pelo barulho de algum guaxinim arrasando uma lata de lixo velha. Ou, numa possibilidade honradamente dourada e improvável, dormindo em algum canto bem longe da seda de ouro.
De qualquer modo, iriam entrar.
Rose agachou-se e suspirou. Chris notou que os pelos do braço dela estavam arrepiados. Seu palpite era que a mulher estava sentindo tanto medo quanto ele, mas idiota e durona como era (do mesmo modo que as prováveis mortes de Gertie e Norman fossem de ataque cardíaco, asma ou insuficiência respiratória durante um assalto qualquer, a de Rose seria baleada por algum ladrãozinho de fundo de beco só porque ela não quis arredar pé e entregar os três centavos de troco que lhe cabiam por ter comprado alguma erva ou pó e se passar por covarde, pelo menos era o que Chris deduzia) nunca se daria ao luxo de confessar que sim, estava com medo, muito medo, e queria voar dali tão rápido quanto viera.
Rose enfiou-se pelo buraco, na escuridão da alfândega. Chris não pôde deixar de pensar numa grande e faminta boca engolindo uma presa ou num buraco negro sugando para sempre dentro de si um planetinha errante qualquer. Ouviu o som dos sapatos de Rose quando ela caiu no chão e arrastou-se. Depois de uns dez segundos, ela deu três batidinhas na porta podre do lado de dentro, o que sinalizava que o próximo – Chris – já podia entrar, ou ser engolido, numa versão mais fiel ao que ele pensava.
Chris respirou fundo pela milionésima vez naquela noite. Depois, enfiou-se pelo buraco e atravessou a abertura da porta podre. Suas mãos tatearam um chão frio, talvez feito de cimento puro e batido, áspero. Então, impulsionado pelos pés, jogou-se dentro da alfândega.
Ali dentro, a escuridão era tão densa que ele quase podia apalpá-la. Distinguiu Rose sentada a uns três metros de distância dele e engatinhou até ela. Estavam atrás de uma caixa. Ele esticou o braço e também deu três batidinhas na porta, significando que Norman também podia entrar.
Por algum momento, nada ocorreu e ele pensou – absurdamente, é claro, uma vez que Rose estava com as únicas chaves do carro – que Norman desistira do assalto, retornara ao velho Buick com Gertie e escapara dali para uma vida feliz, talvez...
Norman pulou pelo buraco inesperadamente e a porta quebrou-se em duas partes com um estrondo. Rose soltou um grito e prendeu a respiração. Chris jogou-se para perto da mulher, certo de que no próximo segundo um milhão de policiais bem vestidos pularia sobre eles com armas, algemas e cadeia, talvez até pena de...
- Norman, seu imbecil!- Rose sussurrou, furiosa.
A porta estava totalmente destroçada e o ar frio da noite entrava pelo buraco, que agora era de uns três metros de diâmetro. Norman engatinhou desajeitadamente pelo chão de cimento, seus quilos de batata frita, hambúrgueres, tacos e burritos bamboleando na escuridão da alfândega.
Pelo menos uma coisa naquela situação toda era boa: se, com todo aquele barulho e agitação, o vigia ainda não dera conta deles nem viera checar o que estava acontecendo, ou o cara era surdo (possibilidade ridícula), ou estava do lado de fora checando o guaxinim da lata de lixo, ou o tal vigia não existia e nesse caso, Bruce, que largara de vez o álcool e o cigarro para virar um amado Testemunha de Jeová, estava mentindo.
Ficaram os três espremidos atrás da caixa, sentados, suando frio, a respiração presa, esperando a qualquer momento que as luzes fossem acesas. Chris não sabia quanto tempo ficaram ali, talvez três minutos ou talvez três anos, mas depois do que, para ele, pareceu a eternidade, Rose tomou a lanterna das mãos trêmulas de Norman e acendeu-a timidamente.
O facho de luz inesperado fez Chris piscar e ele protegeu os olhos com a palma da mão. Rose passeou o facho de luz pelo chão de cimento até os restos da porta podre. Norman literalmente atirara a si mesmo pela madeira e causara um grande estrago. Lascas e pedaços maiores de madeira espalhavam-se por todo canto.
- Você, sabichão gordo maldito, fica aqui. Não se mexa ou corto suas bolas e faço você comer.- ameaçou Rose, apontando para Norman. Ele engoliu em seco e encolheu-se mais contra a superfície da caixa.
Chris seguiu Rose, ambos andando abaixados e sussurrando. A luz da lanterna perscrutava timidamente cada canto por onde eles passavam. Ele viu as caixas de madeira com selos de diferentes partes do país empilhadas por todo o lugar e sentiu mais cheiros do que pensava que pudessem existir.
Rose parecia saber firmemente onde estavam as caixas com a dita seda, o que não surpreenderia Chris. Provavelmente ela conseguira informação de algum trabalhador faminto ali dentro em troca de dez pratas. Percorreram simultaneamente abaixados o galpão, deram a volta por trás das caixas e então, Rose estancou diante de um caixote quadrado, medindo pouco mais de um metro de lado e que tinha a metade da altura de Chris. Ali, o cheiro de seda fresca sobrepujava todos os outros, doce e forte. Rose sorriu e lambeu os lábios, parecendo meio insana para Chris. Ela abaixou e destravou a fechadura da caixa com um clique. Levantou a tampa e depois, seu sorriso alargou-se mais ainda.
A seda estava lá, todinha lá, cheirosa, suave... sedosa. Ela soltou um risinho de satisfação e Chris pensou que a mulher doente e velha no Asilo Presbiteriano do Caminho nunca mais ficaria com as mensalidades da instituição atrasadas. Era cheiro de dinheiro, era cheiro de seda pura.
Foi então que Norman começou a gritar. Dois segundos antes que Rose pedisse a Chris para que se abaixasse e carregasse o caixote – que por sinal, era extremamente leve – o grito de Norman ecoou pela alfândega, causando um eco tão forte que fez os ouvidos de Chris doer.
- Rose! Rose, o que foi isso?- ele sussurrou.
Rose puxou-o pelo braço e apontou para o caixote. Os gritos de Norman continuavam a sora, fortes e agudos e Chris pensou no vigia noturno. Talvez ele houvesse encontrado Norman e nesse exato momento estava dando uma baita surra no coitado. Ou talvez Norman tivesse levado um tiro na perna.
- Vamos embora! Pegue a caixa, Chris!- Rose gritou.
Chris abaixou-se, os gritos de Norman ainda reverberando. Acomodou o caixote de madeira nos ombros e seguiu Rose através do galpão.
O que estaria acontecendo? Chris sentiu os pés amolecerem, como se fossem feitos de manteiga derretida. Era certo que o vigia encontrara Norman. Parecia um tanto brutal e insensível, era verdade, mas Rose e ele precisavam escapar com ou sem Norman o mais rápido possível dali. No entanto, não sabiam como fazer aquilo. Norman – e possivelmente o vigia que o fazia gritar tanto – estavam entres eles e a porta. Precisavam dar a volta pelo galpão e tentar escapar pela porta da frente e foda-se Norman.
- Rose, o que vamos fazer?!- ele indagou, odiando a angústia que transparecia na sua voz.
Subitamente, os gritos pararam. Não esmaeceram aos poucos, como acontece com vítimas de acidentes ou bebês famintos, mas pararam de repente. Num segundo, ainda ouviam os berros e gorgolejos de Norman, no outro, silêncio novamente.
Ele não pôde deixar de pensar no que acontecera tão rapidamente que fizera Norman calar-se. O medo agora era real e os ombros, pernas e braços de Chris tremiam, mas ele continuava agarrado à caixa inconscientemente.
- Saia pelo outro lado. Vamos pegar esse cara e fazê-lo odiar o dia em que nasceu.- disse Rose.
Chris e ela seguiram em sentidos opostos, ambos dando a volta pelo galpão. Agora, todo o som que sobrara era algo como uma lixa raspando no chão de cimento. Chris engoliu em seco e apertou mais a caixa com a seda que valia milhares – e por que não milhões? – de dólares nos ombros. Suas costas estavam banhadas de suor frio e ele se pês a tremelicar os dentes, batendo um no outro.
Podia localizar Rose do outro lado do prédio, o facho da lanterna seguindo firmemente o chão. E se encontrassem o vigia? E se ele não estivesse sozinho? E se houvesse uma arma?
Não percebeu quando seus pés chapinharam em algo grosso e quente. Foi só quando ele estancou diante da porta quebrada e que se deu conta de que não havia ninguém lá, nem mesmo Norman, que as luzes foram acesas. Os refletores potentes no teto da alfândega cuspiram um feixe pálido de luz branca e então, tudo foi iluminado.
Tinham sido descobertos.
- Rose, fique parada!- ele gritou, sacudindo os braços.
Rose soltou um gritinho e depois um palavrão. Chris abaixou-se atrás de outra caixa e viu o sangue.
Sangue vermelho pintava todo o chão de cimento. Chris andara nele por quase dois minutos e a barra de sua calça estavam toda suja de sangue. Seguiu a trilha do líquido grosso, que fora espirrado e esfregado na madeira das caixas, mudo, paralisado de terror.
Norman estava lá. Pelo menos algumas partes dele.
Chris escorregou e a caixa caiu de seus ombros, horrorizado, e pôs-se a berrar. Os braços do que antes fora Norman tinham sido arrancados do corpo e jaziam jogados, pintados de vermelho sangue, em frente à porta quebrada. A cabeça de Norman fora esfolada até ficar em carne viva no chão de cimento. Uma perna fora arrancada, mas Chris não a viu ou não a percebeu em nenhum lugar, e a outra também fora esfregada com firmeza no cimento e músculos, tendões, gordura e carne apareciam do corpo destroçado. Mas isso não era o pior. Norman ainda estava vivo. Chris percebeu-o erguer a cabeça e piscar um olho (o outro tinha sido estourado ou perfurado) meio perdido naquele mar de carne que um dia fora seu rosto.
E Chris berrava e berrava.
A caixa caíra de seus braços e espatifou-se no chão. A seda desenrolou-se e logo ficou presa ao cimento pelo sangue grosso que parecia uma cola. Chris sentiu as pernas amolecerem novamente, como manteiga deixada muito tempo sob o sol.
E foi então que o vigia noturno fez seu segundo ataque da noite.
Quando as luzes se acenderam, Rose, que até o momento já tinha recuperado parte da calma, sentiu o medo acumular-se tal e qual catarro na garganta seca. Era medo e desespero, uma combinação não muito legal que bloqueava a respiração. Do outro lado do galpão, escondido atrás de umas caixas, ouviu Chris gritar para que ela ficasse parada.
Ela abaixou-se e amaldiçoou Norman, o maldito gordo que agora, por uma razão ou outra, não gritava mais. Talvez aquilo até fosse bom. Se, de repente, o vigia tivesse liquidado o coitadinho, ela poderia escapar dali com Chris e também com (principalmente) a seda.
Ela começou a respirar pausada e ritmadamente. Era especialista naquele assunto, havia já uns bons anos que praticava furtos e roubos e, apesar de toda a situação favorecer o contrário, ela tinha de permanecer calma. O primeiro passo era aceitar a situação: ela fora idiota em tentar roubar a alfândega, mas fora mais idiota ainda em acreditar que Norman pudesse ajudar em alguma coisa. Norman, que era tão ágil quanto uma lesma derretida num punhado de sal. Segundo, ela...
Chris estava gritando?
Ela subitamente parou de pensar e enumerar seus vários motivos para permanecer calma e encolheu-se atrás de outra caixa. Estava a poucos metros da porta quebrada, mas do ângulo em que estava, ainda não podia ver os pedaços de Norman nem o sangue espirrado no chão e nas paredes. Talvez isso tenha dado a ela mais uns dez minutos de vida. Ou talvez foi o que ela viu dez segundos depois.
Rose ouviu entre os berros de Chris (sim, só podia ser Chris, essa voz grossa e indistinta, definitivamente diferente dos gorgolejos roucos de Norman) o som de alguma coisa caindo e quebrando e engoliu em seco, reprimindo ao máximo a vontade de pular de trás do seu esconderijo e verificar o que caíra, o que se quebrara, embora soubesse que, sim, era a caixa de seda.
Seu primeiro impulso foi o de atravessar o galpão iluminado até onde Chris gritava em pânico e verificar o que estava acontecendo. Mas, pensando bem, Chris era um cara sério. Alguma coisa muito ruim deveria estar...
Ouviu um estrondo e pôs a mão sobre a boca para abafar um grito. Cautelosamente ergueu os olhos de trás do seu esconderijo.
Chris arrastava-se pelo chão. Estava bem no centro do galpão. Rose tossiu, virou-se e vomitou, enjoada, quando viu que a barriga estava aberta e Chris arrastava-se, deixando uma trilha de sangue e vísceras no chão, sobre suas tripas esfoladas. Rose jamais assistia a filmes de terror, na verdade ela acreditava que uma pessoa como ela, que vivia à beira do perigo (pelo menos ela o considerava assim), já vivia seu próprio filme de terror a cada roubo que fazia. Mas aquela cena, Chris arrastando-se pelo cimento, berrando por ela (sim, berrando o maldito nome dela!) a fez lembrar algumas raras películas que assistia nas noites de sexta feira, nos drive thrus da cidade. Filmes sempre com roteiros detestáveis, mas com muito sangue e vísceras.
De repente, uma sombra pulou de cima das caixas, derrubando algumas, e caiu em cima de Chris. Rose poderia muito bem escapar dali, mas suas pernas estavam simplesmente travadas. A coisa – o novo vigia noturno, haha, Bruce afinal não mentira, era um bom Testemunho de Jeová – esmagou o pobre homem com seu peso. Bruce estava certinho sobre o novo vigia noturno quando alertara Rose. A única coisa da qual ele se esquecera de dizer era que o vigia noturno não era humano.
O bicho – pelo menos era o que parecia, um cachorro gigante, com patas fortes e musculosas, pele coberta por pelos brancos e uma boca escancarada suja de sangue – abocanhou a nunca de Chris e ele berrou loucamente. Perto dos gritos ensurdecedores de Chris, o que Norman emitira parecia um mero sussurro. Chris berrou até que sua garganta estourasse e uma bolha de sangue escapasse pela boca. O cão monstro puxou a cabeça de Chris para trás brutalmente, formando quase um ângulo de 180 graus.
E finalmente, após um som que arrepiou Rose, um som que remetia a um cartão de crédito sendo quebrado, Chris soltou um esgar e parou de gritar. O cão arrancou um bom pedaço da nuca de Chris, deixando o crânio exposto e um bom caldo de sangue pintando o cimento batido.
E então, quando o bicho pôs-se a mastigar o naco de carne, ossos e cabelo que arrancara de Chris, Rose caiu sentada e pôs-se a correr abaixada, muda, em choque.
O que diabos era aquilo?! Ela sentiu o desespero crescer insuportavelmente e pôs-se a soluçar de pânico. O cão somente se deu conta dela – enquanto comia um pedaço das nádegas magras de Chris – quando Rose dobrou a esquina de caixas e inesperadamente, com um grito de horror, escorregou na papa de sangue que dez minutos atrás corria nas veias de Norman e caiu desajeitadamente, derrubando uma pilha de caixotes.
Os caixotes despencaram de sua pilha e espatifaram-se no chão, enquanto as cebolas que estavam dentro deles pulavam por todos os lados. O bicho ergueu a cabeça, alarmado, e vislumbrou Rose. Agora era a vez dela gritar a plenos pulmões por socorro.
Rose tentou se levantar, mas caiu novamente depois que seu pé direito escorregou na massa de sangue semi seco. Frustrada, enquanto o monstro caminhava calmamente atrás dela, a apenas oito metros de distância, pôs-se a andar de quatro, esfolando os joelho e berrado por ajuda.
Não deu certo. O cão gigante pulou e abocanhou o antebraço direito de Rose, fechando as mandíbulas numa poderosa e mortal mordida, cortando com os dentes brutais ossos, carne, pele e tendões. Rose gritou angustiada e tentou puxar o braço da boca do animal, mas tudo o que conseguiu foi decepá-lo até a altura dos cotovelos. Só então, em pânico, com metade do braço jorrando uma explosão de sangue e a outra metade na boca do bicho, é que ela caiu de costas no chão e desmaiou para nunca mais acordar.
Ela abriu os olhos, piscando freneticamente.
Onde estava? Tudo tão escuro, exceto por um facho de luz que aparecia mais à frente...
Estava dentro do carro? Sim, ainda dentro do carro. Mas como... onde estava Norman? Onde estava Chris? E onde estava... onde estava Rose?
Gertie levantou a cabeça, sonolenta e esfregou os olhos, tirando a remela que se acumulara nos cantos. Sua boca estava amarga – as batatinhas do Chicken King eram ótimas, mas rançosas se você as comesse duas horas depois de compradas. Sentiu um arroto formar-se na boca e o expeliu com gosto, sorrindo.
Estava ao lado daquele prédio, dentro do carro... como é mesmo o nome? Alfândega, isso mesmo. Sentiu outro arroto formar-se dentro de si e tossiu.
Estava muito frio dentro do carro. A porta da alfândega estava aberta e um quadrado de luz aconchegante banhava o terreno em frente. Norman com certeza estava lá dentro com os outros, embora o lugar estivesse muito silencioso.
Gertie abriu a porta do carro e espreguiçou-se. Um vento frio agitou os cabelos engordurados dela. Abraçou seu próprio corpo e pôs-se a andar até o quadrado de luz que se derramava de dentro da alfândega.
Teriam os outros conseguido roubar a seda? Gertie achava que sim, embora o silêncio do lugar fosse bem inquietante. Cambaleou, seus pés gordos firmando-se com dificuldade. Abraçaria Norman depois que estivessem com o dinheiro na mão e diria a ele que nunca mais roubariam nada. Estava cheia daquela vida, assim como suspeitava que Chris também estivesse cheio. Só Rose combinava com aquilo.
Gertie postou-se no retângulo de luz e colocou as mãos na frente dos olhos. A luz forte a ofuscava e impedia de ver os pedaços de seu marido e o corpo de Rose e Chris no meio do galpão.
Inocentemente, firmando os pés para não cambalear de sono, Gertie entrou na alfândega.