O FIO DA NAVALHA...

Júlio e Melissa, de um dia para outro, se apaixonaram. Perdidamente...
Neste embalo, pensavam que a vida se resumia a uma cama e a meia dúzia de gemidos de amor...
Jovens, mal vividos dezoito anos, viviam inventando mentiras para que pudessem se encontrar, às escondidas, no quarto do rapaz, nos fundos da casa dele. Vizinhos, moravam em frente ao Circulo Militar, no início da Afonso Pena, bem no ponto em que a mais bela avenida do Pantanal começa sua descida na direção do centro de Campo Grande. O casal namorava desde os dezesseis. No início, viviam às turras. Depois que descobriram o sexo, ninguém mais os separava. É claro que ele nem pensava em usar camisinha. Ela, nem imaginava o que era um anticoncepcional. Afinal, Júlio jamais tocara outra mulher e, de Melissa, era o primeiro homem...
Uma bela tarde, a jovem se recusa a ir para a cama dizendo: “Não! Estou com medo! Este mês, não veio! Atrasou! Acho que estou grávida!”. Desandou a chorar. Consolada pelo amante, acalmou-se. Depois de muita conversa, chegaram a uma conclusão. Tudo bem. Ninguém iria achar ruim. Se fosse verdade, melhor para os dois. Casariam o mais depressa possível. Logo estariam vivendo juntos...
Acertaram todos os detalhes. Combinaram que Melissa procuraria um ginecologista. Faria um teste de gravidez. Se ela realmente estivesse grávida, os dois começariam a providenciar os papéis, a igreja, o cartório. Depois avisariam seus pais. Assim, tudo acertado, cada um foi para seu lado em busca da solução de seus problemas...
Dias passados, Melissa procura Júlio para avisar que ele precisava fazer o ELISA. Julio perguntou curioso: “Que é isso?”...
Nada mais nada menos que um teste de HIV. Exigência do ginecologista que examinara Melissa. Só uma formalidade legal. A gravidez? Estava confirmada. O nenê estava bem...
O rapaz vibrou. Sem discutir, concordou em fazer o tal teste. Na mesma semana, foi ao mesmo laboratório em que ela fizera o pré-natal. Cedeu material para prova e para a contraprova. A principio estranhou. Dois exames? A enfermeira, explicou. Era uma norma médica. Uma semana depois da entrega, em mãos, do primeiro resultado, o segundo, confirmando ou desmentindo o primeiro, seria enviado pelo correio. Isto evitava qualquer tipo de dúvidas ou constrangimentos. Julio, mais tranqüilo, acabou deixando no laboratório o endereço de Melissa como se fosse o seu...
Numa segunda feira, Júlio vai até ao consultório buscar o resultado do primeiro teste. Sossegado, orgulhoso com o envelope na mão, parou no Bar do Paulão. Pediu um chope. Acomodado, depois de sorver o primeiro gole, discretamente, começa a ler o que estava escrito naquele pedaço de papel: “Teste ELISA: POSITIVO”...
Um largo sorriso ilumina seu rosto. Ingênuo, pensa: “Ainda bem! Tudo legal! Não deu negativo!”. Dobra o papel. Coloca no bolso da calça. Toma mais um chope. Volta para seu trabalho. Enquanto isto, Melissa, tinha viajado para Dourados onde visitaria uma tia doente. Só voltaria na terça...
O rapaz, cheio de saudades, nem sentiu a semana passar...
Sexta, logo que a tarde chegou, foi até a feira dos altos da Maracajú. Depois de comer um espetinho e tomar uma cerveja, voltou para casa. Ao separar a roupa suja para sua mãe lavar, aquele teste cai de novo em suas mão. Torna a ler, todo satisfeito, o resultado. Fim de noite, quase quarenta graus, resolve ir até ao Círculo Militar tomar uma gelada. Ao chegar, encontra Marcelo, um seu colega de trabalho. Dividem um aperitivo. Começam a jogar conversa fora. As horas passando, Júlio “mais-prá-lá-do-que-prá-cá”, meio “chumbado”, confessa: “Marcelo, estou tão contente! Veja bem! Eu fiz o teste do HIV! Adivinha o resultado? Positivo! Agora já posso casar com Melissa!”...
O amigo, pensando que era uma brincadeira, uma gozação, responde troçando: “Então é isso que nós estamos comemorando? A sua despedida?”...
Júlio, confuso, perguntou: ”Despedida do quê?”...
Marcelo, continuando seu raciocínio, replica: “Despedida deste mundo, seu trouxa! Se seu teste realmente deu positivo, você vai bater as botas!”. E completou: “Ta querendo tirar uma com a minha cara? Pensa que eu sou burro? Ou então misturou as bolas e está fazendo confusão! Seu teste só pode ter dado negativo! Positivo é quando a pessoa está doente! Quando é portador do vírus!”...
Em silêncio, por um instante, ficaram se encarando. Depois, explodiram numa boa gargalhada. Continuaram a beber...
No fim da noite, assim que Marcelo se despediu, Júlio, enquanto pagava a conta, ainda confuso com as palavras do amigo, perguntou para o garção: “Companheiro, estou meio de fogo! Mas, me explica uma coisa! Quando um exame de laboratório dá positivo, a pessoa está sadia ou está doente?”. O rapaz, sem nem prestar atenção no assunto, respondeu secamente: “Está doente!”...
No sábado e no domingo, Júlio ficou refugiado em seu quarto que, para ele, tinha se transformado no próprio inferno...
Ligou para farmácias. Ligou para médicos. Anonimamente, pedia explicações. Infelizmente, a resposta era sempre a mesma. Era portador do vírus. Era soro positivo...
Como podia?...
Não era gay. Não era viciado. Não usava seringas. Não fizera transfusão. Não saia com nenhuma mulher promíscua. Só transava com Melissa...
Melissa? Sim, Melissa. Então. Era isso. Era ela. Só podia ser. Ela, sim, devia estar doente. Mas como? No mínimo o estava traindo. Claro, ela o traía. Saía com outro homem. Ou outros. Descobrira que estava doente quando fizera o pré-natal. Agora, não queria morrer sozinha. Passara o vírus para ele. De propósito. Aquela maldita o havia enganado. Contaminado. Ele e a criança que iria nascer, estavam condenados...
Aos poucos, com o passar das horas, seus maus pensamentos iam se multiplicando. Sua cabeça parecia que ia explodir. Seu coração doía. De raiva. De dor. De medo. De ódio. Estava escrito. Ia morrer. Não queria. Era jovem. Precisava viver. Adorava sua namorada. Ela o traíra. E o filho que estava esperando? Talvez nem fosse seu...
Pobre rapaz. Uma idéia brotou malignamente em sua cabeça: tinha que se vingar...
Na segunda e na terça (dia em que Melissa voltou de Dourados) mal conseguiu trabalhar. Na quarta não quis se encontrar com a namorada que chegara de viajem. Inventou uma desculpa. Estava doente. Dor de cabeça. Não foi trabalhar na quinta. Nem na sexta. Recusou o café da manhã. Não queria comer. A comida se recusava a parar em seu estômago. Seus pais começavam a ficar desconfiados. O jovem, em sua solidão, estava desesperado. Só pensava em uma coisa: vingança...
Sábado, logo cedo, levantou-se. Tomou um banho. Foi até ao baú onde seu pai guardava bugigangas. Revirou. Fuçou. Até que, de repente, suas mãos trêmulas exibem um objeto. Uma arma. Um legítimo e cintilante punhal chinês...
Melissa estava começando a morrer...
Às dez horas, resoluto, começa a caminhar em direção à casa de sua amada. Mecanicamente abre o portão. A porta da frente está aberta, Melissa está no banheiro tomando banho. Pede para que ele a espere na sala. Depois, aparece toda contente. Pergunta se ele já está bem: “Já melhorou? Eu estava louca para te ver!”...
O moço, medindo cada palavra que diria, já ia começar a retrucar . Foi quando, de repente, alguém tocou a campainha. Era o carteiro. A garota se levanta com a intenção de atender o chamado que vinha da rua. Passa na frente de Júlio. Prepara-se para abrir a porta. Era o princípio do fim...
O golpe traiçoeiro, cruel, rápido, raivoso, pleno de ódio, foi certeiro e fatal...
Penetrou por entre as costelas da moça. Fez um rombo no seu pulmão direito. Sem fôlego, sem saber o que estava acontecendo, ela precisava, desesperadamente, de ar. Em pânico, abriu a porta. Saiu. Como se fosse um andróide. No portão, por entre as grades, o carteiro lhe estendeu a mão. Queria entregar-lhe uma carta. Melissa, num gesto instintivo, talvez querendo pedir socorro, estica seu braço. O rapaz assustado, sem entender o porquê daquele estranho comportamento, coloca o envelope entre os dedos da moça. Depois, ao avistar Júlio se aproximando com uma faca na mão, desespera-se. monta em sua bicicleta. Sem olhar para trás, pedala em busca de ajuda avenida abaixo...
Melissa tenta respirar. Em vão. Começa a sufocar. Um filete de sangue desce lentamente pelo canto de seus lábios. Com uma das mãos agarra-se desesperadamente ao portão. Com a outra, aperta o envelope contra seu peito. Faz força para continuar em pé. Vacila. Cambaleia. Dobra os joelhos. Uma lágrima desliza pelo seu rosto. Seu corpo, sem sustentação, desaba rumo ao chão...
Melissa está morta...
Júlio ainda tenta entender o que tinha acabado de fazer...
Atônito, sem saber se socorre, se foge, se grita pedindo ajuda, acaba se ajoelhando ao lado do corpo de sua amada. Depois, tenta tomá-la em seus braços. Num segundo de arrependimento, quer ajudá-la. Percebe o envelope na mão de Melissa. Arranca a carta daqueles dedos já hirtos. Rasga o papel com os dentes. Começa a ler o que está escrito...
É do laboratório. Mais um resultado. É a repetição de seu teste de HIV. Chegara no dia combinado. Exatamente uma semana depois de que tinha recebido o primeiro resultado. Nesta contraprova, o laboratório pede desculpas. No primeiro exame, por um acidente, dois testes haviam sido trocados: alguém tinha ficado com o dele e vice-versa. Agora, encerra o novo aviso dando o veredito definitivo: “Teste ELISA: NEGATIVO”...
Era muito para a cabeça do jovem assassino. Um vendaval desestabiliza sua inteligência. Era sadio. Não era soro positivo. Não era portador de nada. Não tinha Aids...
Tarde demais. Melissa estava morta. Dentro dela, em seu ventre, parara de bater, também, o coraçãozinho de um pequenino ser, inocente, que jamais veria a luz do Sol...
Julio não aceitou aquela verdade. Num último gesto de lucidez, arranca o maldito estilete das costas da amada. Uiva em desesperado acesso de culpa: “Senhor...perdão!”...
Com as últimas forças que lhe restam, crava o punhal em seu próprio coração...
Quando o socorro chegou, o sangue vermelho do jovem casal começava a descer pelo negro asfalto da Afonso Pena...
Rumo ao centro de Campo Grande... 
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