A Casa
Desde pequeno eu ouvia falar a respeito daquela casa. Muito já fora inventado sobre ela. Por causa de sua locação e de seu passado, aproximar-se de suas cercanias era submeter-se a todo tipo de perigo proveniente do disse-me-disse. Chegar até ela já representava uma aventura. Era preciso descer por uma encosta íngreme e acidentada, firmando bem os pés no barranco escorregadio, deixando descer calhaus que iam se soltando com as pisadelas. Até avistar-se a propriedade, meio que escondida no carvalhal era uma boa caminhada.
Não havia por perto outras residências, mas o bosque silencioso que a protegia. Ao final da encosta um riacho atravessava o caminho; era preciso transpô-lo. A torrente desse curso d’água era um dos raros sons que se ouvia ao ganhar-se o início do bosque. Os pássaros, os poucos animais que se cria haver no local deveriam estar cientes da necessidade de silêncio que ali se clamava. A mínima agitação turvava o leito do rio, fremia nos galhos adormecidos e despertava a vida que não queria ser despertada, mas sentida em toda a sua intensidade.
Há como uma emoção que não se explica ao se sentir o silêncio. Entre nós, seres humanos, ele não é confiável; nem todos conseguem mantê-lo por muito tempo, por medo de suas consequências. O silêncio traz à tona verdades entranhadas na alma, ele põe a nu a verdade de qualquer um. Causa medo porque esclarece o que a prolixidade só faz complicar. É odiado por quem esconde segredos e não quer expor sua verdadeira intenção. O silêncio é paz, é amor verdadeiro, mas pode mutilar para sempre uma relação ainda não alicerçada na prática de muitas horas de um silêncio total.
Somente a contemplação do espelho d’água, já desfeito após o mergulho das rochas que se precipitaram no leito do rio com a minha descida tem ares de um convite para se ficar mais tempo e se banhar na luz que tudo envolve. Tão serenamente descansa esse leito que impossível é desviar os olhos de sua superfície. O frescor, o brilho e o vaivém da sombra projetada por galhos que se inclinam sobre sua margem parecem provocar e desafiar nossa capacidade de apreciar o belo. Há uma pequena ponte para atravessá-lo; muito baixa, improvisada, de madeira trabalhada e cortada em pranchas. A casa então aparece. Ainda tímida. Entremostrando-se aos poucos por causa dos abetos que guarnecem uma de suas laterais. À direita da pontezinha há uma trilha estreita e depois, à esquerda, outra que vai dar na frente da casa. Mas o melhor caminho é esse mesmo do bosque por ser mais discreto e menos arriscado.
A força da palavra falada é incalculável. Se o silêncio oprime, a palavra transforma. Nada requer mais extremo cuidado do que proferir pensamentos através de palavras, como interpretar o que um pensamento deixou escapar. Pelas palavras criou-se o mundo. O verdadeiro sentido nem sempre está naquilo que foi expresso, mas na intenção por trás do ato de dizer alguma coisa. Coisas ouvi dizer e a cada passo me ponho a refletir se vale a pena continuar.
O porquê de não haver outras casas perto daquela; o antro de morte e de sacrifício; as cruzes brancas demarcando o terreno na parte de trás; o enorme cadafalso no centro e a escadinha de cinco degraus conduzindo ao patamar. A corda balança-se no alto da trave. O pequeno barril ainda está a espera dos pés condenados. Esta visão me embaraça o espírito, faz desacelerar minhas passadas. Mas a decisão já está tomada e eu sigo em frente.
Em cada cruz um nome e uma data. No verso, a razão da execução na descrição do delito que levou o desgraçado àquele fim. Andei por ali sem conseguir conter o meu medo. Tinha olhos para todos os lados, mas especialmente para a parte de trás da herdade. Ela não tinha muros, mas um paredão branco projetando-se sobre pilotis de concreto, arredondados e baixos. Sob tal alicerce um terreno escuro, onde mal se distinguia o solo tomado pelo mato avançado. No alto, pombos pousavam nas vigas de sustentação das telhas, marimbondos circulavam os ninhos que já se faziam numerosos em todos os ângulos e percebia-se a umidade e grandes manchas como pontos esburacados e outros castigados por rachaduras.
Até ali predominavam o silêncio e a solidão. Meu receio era o transcorrer das horas me pegar ainda no local para depois ter de enfrentar um retorno ao cair da noite. Havia um caminho mais fácil se eu quisesse me arriscar a passar na frente da casa para ser visto por algum ocupante e, daí, não imagino a consequência que esse meu ato acarretaria. Ao levar em conta o que diziam, e em sendo isto verdade, só o pensamento me atormentava.
Minha infância sempre fora marcada pela curiosidade. Muito sofri por isso. Todavia, confesso que as vantagens foram maiores e os ganhos superaram as perdas. Sendo assim, e hoje no auge da juventude, mantenho aceso esse dom, embora me custe alguns suores frios como agora. Definitivamente, não me sobraria tempo de fazer uma boa investigação e retornar pelo mesmo trecho. Concluí isto ao olhar o relógio e calcular a minha chegada; a escuridão me pegaria ainda a meio caminho, e em plena selva, antes de alcançar o rancho onde moro.
Justiça pelas próprias mãos é algo que foge aos preceitos de uma boa legislação. A triste realidade é constatar que no lugarejo onde nasci, me criei e até hoje vivo isto é praticado, como que para alertar aos verdadeiros homens da lei que sua justiça é falha.
Assim, por uma boa paga e após convencerem-se de que houve o crime e descobriu-se o culpado, após o “julgamento” condena-se o réu e a forca é geralmente o castigo. Houve a recompensa, fez-se a “justiça” e vingou-se a vítima. É assim que funciona. Se perguntarem a Jack, “O Ganso” a Ted Baloon ou a Black Spencer todos terão, na ponta da língua, a mesma resposta: “Pagam a gente, eliminamos um mal feitor e todos ficam satisfeitos”.
“A Vingança de Ted Baloon”. Era esta a manchete estampada em nosso jornal. Eu havia acabado de engolir o café da manhã e corria para a escola quando avistei esses dizeres no exemplar que papai lia em nossa varanda.
- Para que essa pressa? – perguntou quando passei por ele alvoroçado.
- É esse Ted Baloon, papai! É esse Ted Baloon! – Eu disse, mas como a primeira coisa que me veio à cabeça, com medo de que ele lesse os meus pensamentos. Já programara, para aquela tarde, a visita a tal morada.
Não me restou alternativa a não ser por em prática a minha coragem de jovem curioso: contornar o terreno, passar na frente da casa, esclarecer minhas dúvidas e tirar minhas próprias conclusões. Era o que eu devia fazer antes de pegar a trilha e descer para a cidade. Foi o que fiz, então. Os abetos me ocultaram, a princípio. Logo, porém, ao fim de alguns passos me vi embaixo de uma janela fechada. Antes de ganhar a frente uma voz de mulher me surpreende, deixando-me pálido e sem pernas.
- Ted! Você é o Ted Baloon; vamos sair. A ação nos espera do lado de fora. Estamos contigo.
Entreguei a Deus minha alma; era tudo o que me restava. Súbito, um homem enorme, de uma barriga redonda e proeminente surge a metros de mim na porta de saída da misteriosa residência. Entre nós um jardim modesto, com rosas, rodeado de pedras brancas e um chão de grama recentemente podada. Ele não me viu, pois olhava ainda para o interior de onde surgira. Em seguida deixam a casa mulheres, cinco ou seis, com vestimentas extravagantes, seguidas de homens muito bem arrumados. Passaram apressados pelo homenzarrão e por mim, ignorando-me e seguiram para a grande área verde. Uma das mulheres, porém, com um vistoso chapéu e um vestido vermelho de noite, dá uma breve parada ao meu lado.
- Ei! Garoto. Seria um prazer ter alguém assistindo ao nosso ensaio para o grande filme; você vem?
Ted Baloon, ou melhor, o seu personagem, também agora acabara de passar por mim; sequer olha-nos e corre para a sua obrigação. E eu juntei-me a um grupo de pessoas que vinha subindo pela trilha naquele momento para me divertir um bocado.