Armadilha
A campainha está soando pela terceira vez.
Ela começa a sentir uma coisa presa na garganta e pensa em espinhas de peixe, bolas de lã ou um pedaço de bolinho de arroz, tal e qual como o que ela comeu no almoço, oito horas e mil anos-luz atrás. Ela pensa em tudo isso, mas sabe que não adianta se enganar. É medo, é susto, é desespero, entalados na garganta, difíceis de descer goela abaixo.
E a campainha do casarão continua soando insistentemente, pela quarta vez naquela noite.
É medo, susto e desespero, apenas isso. Medo, susto e desespero porque é a quarta vez que a campainha é tocada. Medo, susto e desespero porque ela sabe que, se for se levantar para abrir a porta ou olhar quem está tocando a campainha pelo olho mágico, como fez nas duas primeiras vezes antes de aquele pesadelo todo começar, ela sabe que não haverá ninguém novamente. Medo, susto e desespero porque já faz vinte minutos que a energia caiu (ou foi cortada – possibilidade mais que provada depois que ela se levantou e olhou o poste solitário escondido na escuridão da noite entre os pinheiros através da janela de vidro, constatando que os fios bamboleavam soltando faíscas no chão). Cortados.
É medo, susto e desespero porque ela não consegue encontrar o telefone celular. Procurou em todos os lugares, na enorme bolsa, nos armários, em cima das mesinhas de centro espalhadas pelas quatro salas do casarão, nas bancadas das duas cozinhas. É medo, susto e desespero porque sabe que mesmo que esbugalhe os olhos procurando em cada buraco de rato na casa – e havia muitos, como havia – o amável telefone celular, sabe que não o encontrará. Porque o celular está no carro. Sim, depois de brigar com Jesse, ela atirou o aparelho no banco de trás, nervosa e alterada, dando socos no para brisas, esquecendo-o ali. Ela pode se levantar, destrancar a porta do casarão e ir buscar o telefone celular dentro do carro, pode fazer muito bem isso. Mas não. Nessa noite, ela não abrirá a porta do casarão nem que a paguem por isso. Ela não atravessará no silêncio da noite o curto caminho que liga a varanda até o automóvel estacionado na entrada de carros. Não fará nada disso não porque o vento está muito forte, vergando as copas dos pinheiros, arrastando folhas, terra e fazendo as janelas do lado de cima sacudir, não fará nada disso não porque uma garoazinha gelada começou a cair e a escuridão ficou quase palpável depois que a lua se escondeu atrás das nuvens. Nada disso a amedronta. Ela não fará nada disso porque, na verdade, não é seguro.
Não fará nada disso porque é a quinta vez que a campainha está soando.
Ela estava sentada no sofá, agarrada a uma almofada, tremendo. As luzes estavam apagadas (cortadas, sem energia) e a única iluminação vinha de um lampião a querosene, pendurado do lado e fora e sacudindo-se na chuva. A enorme sala estava às escuras, a televisão antiga sendo nada mais que um borrão do ouro lado do cômodo e os sofás gigantes e macios dispostos no centro. Atrás dela, estavam as mobílias clássicas igualmente mergulhadas no breu.
Ela tremia de medo. A chuva começava a engrossar e o vento agitava furiosamente os pinheiros, fazendo com que se chocassem contra as janelas do lado de cima. Fora isso, na verdade, a casa estava imersa no mais profundo silêncio.
A almofada a que ela se agarrara já estava deformada pela força do abraço.
Trovões riscavam o céu e iluminavam parcialmente o cômodo, a televisão e a estante de madeira de cipreste. Ela engoliu em seco porque toda vez que um daqueles malditos clarões incidia sobre a casa, ela tinha certeza de que podia ver alguma coisa espreitando. Alguma coisa cheirando, esperando... naquele mesmo recinto... mas obviamente aquilo era ridículo. Ela estava sozinha ali, dentro da casa. E esperava continuar assim. Tentara procurar um telefone no casarão, mas não encontrara nada que a pudesse fazer se comunicar com o mundo externo. Os novos ricos donos daquela mansão em estilo alemão, incrustada no meio da floresta e à beira de uma rodovia deserta, a tinham contratado para passar a noite e cuidar da casa até que voltassem no dia seguinte. Tinham ido a uma festa de gala e provavelmente passariam um pouco mais que vinte e quatro horas lá.
E então, a campainha começara a soar.
Primeiramente, no início da noite, ela pensara ser os donos da casa voltando por alguma razão. Abrira a porta. O crepúsculo já corria avançado e negras nuvens amontoavam-se no horizonte, como lobos encimando cordeiros. Choveria naquela noite.
Não havia ninguém do lado de fora. Ela atravessara a varanda e vasculhara a área ao redor. Ainda estava razoavelmente claro, de modo que não sentia medo, mesmo sabendo que se encontrava a quinze quilômetros da cidade mais próxima. Procurara entre os pinheiros, gritando “olá”, mesmo sabendo que isso era a pior idiotice do mundo. Quem quer que tivesse tocado a campainha, se desejasse mesmo ser atendido, teria ficado ali em frente à porta, e não se escondido em algum outro lugar.
Ela andara até o carro estacionado em frente à varanda. Um carro novinho em folha que papai a tinha presenteado no verão passado. Andou ao redor dele, procurando algum sinal daquelas brincadeiras que os adolescentes faziam na lataria (os mesmos caras que tocavam a campainha das casas e depois saíam correndo eram os mesmos que costumavam riscar a pintura dos automóveis alheios com pedaços de pedra ou ferro – em suma, os pirralhinhos filhos da mãe que entravam na puberdade e ainda não se encontravam no mundo). Não havia nenhum sinal, nenhum risco, nenhuma janela quebrada. Só mesmo o carro estacionado ali.
Ela retornara para dentro de casa, subindo os elegantes degraus que conduziam à varanda de madeira. O sol se escondera totalmente e seu palpite era que dentro de uns oito minutos, tudo estaria escuro. Um vento fresco (vento de chuva) soprava suavemente as folhas de pinheiro em forma de agulha pelo caminho de pedras. Ela fechara a porta e – inconsciente, mas inteligentemente – trancara com a singela fechadura em estilo americano.
Umas duas horas depois, a campainha soara novamente. Ela estava na cozinha, comendo um pedaço de peru gelado, pensando em como só dentro daquele cômodo poderia caber sua casa inteira. Não gostava de música, não quando trabalhava, de modo que os únicos barulhos eram as copas dos pinheiros se movendo.
E a campainha.
Pela segunda vez, ela se levantou, deixando no prato uma deliciosa coxa de peru semi roída. Atravessara a cozinha imensa, seus passos fazendo eco no silêncio da casa. Passara pela sala igualmente grande, iluminada pela luz do poste do lado de fora e pelos agradáveis lampiões antigos que circundavam a casa.
Daquela vez, fora diferente. Já estava bem escuro, e ela não abrira a porta. Apenas se colocara na ponta dos pés para poder enxergar através do olho mágico quem quer que estivesse tocando a campainha.
Ninguém.
E o medo finalmente se instalara dentro dela. Tentou visualizar o carro lá fora. Uma mancha na escuridão. Os pinheiros agitando-se loucamente ao sabor do vento. Finas gotas de chuva começando a precipitar. Mas nada de seres humanos tocando campainhas, nem sinal dos adolescentes pubianos com os hormônios à flor da pele.
Tentara reunir coragem para destrancar a porta e sair pela varanda, gritando para que parassem de tocar a campainha ou ela chamaria a polícia. Mas não havia coragem alguma. Só o medo que a fizera se lembrar, naquele momento, do celular que na verdade não estava dentro do casarão com ela. E não havia uma porcaria de um telefone qualquer ali, ou se havia, estava muito bem escondido.
Ela apertara o interruptor ao lado da porta e a luz da varanda, no lado de fora, acendeu-se. Nada.
Respirara fundo, mas o desespero já fincara suas garras. Antes que atravessasse a sala, tentando se acalmar, a campainha soara novamente.
Ela estancara no meio do cômodo, sentindo os dentes bater. Queria gritar para que saíssem dai, queria correr o mais rápido possível pela floresta até a segurança da cidade, mas não conseguia fazer nada. Principalmente quando a maçaneta começara a se mover. De um lado a outro, de um lado a outro. Havia alguém do lado de fora, alguém que não se contentava somente em apertar a campainha. Havia alguém que queria entrar no casarão. Alguém que girava a maçaneta brilhante de um lado a outro.
Não tivera a coragem de retornar ao olho mágico. Ao invés disso, atravessou o corredor que ligava os quartos do andar térreo, acendendo as luzes e sentindo as pernas bambearem. Ainda podia ouvir os sons da maçaneta sendo girada, forçada, do lado de fora. Dirigira-se ao quarto de hóspedes, que ficava embaixo da escada que conduzia ao primeiro andar, e trocara de roupa. Estava vestindo um pijama, pronta para dormir logo depois que jantasse. Tirara o pijama e jogara-o na cama em que passaria a noite até que o casal voltasse, e vestira uma roupa simples, jeans e blusa de manga longa azul.
Retornara pelo corredor escuro (malditas casas grandes, com iluminação sempre precária e que nunca clareavam totalmente o ambiente) e sentara-se no sofá da sala. A maçaneta agora estava parada e a campainha, silenciosa.
Pensara que seria melhor se vestir, caso encontrasse a chance de cair fora daquele casarão. Não se importava mais se quem estivesse tocando a campainha e girando a maçaneta fosse um daqueles adolescentes cobertos de hormônios. Não se importava mais com nada. Só queria estar de olho na porta da frente e vestida adequadamente caso tivesse a chance de correr até o carro estacionado quase em frente à varanda.
Dois minutos depois, a energia fora cortada.
Outro trovão ribombou no céu. O clarão iluminou toda a sala, fazendo-a pensar em esqueletos escondidos em armários e coisas desse tipo.
A campainha começou a ser tocada novamente. Ela se pôs de pé, alarmada, tensa. Pensou que se tivesse de ouvir mais uma vez aquela merda daquele “ding-dong!” de campainha de mansão acabaria por enlouquecer. Pela primeira vez, deu-se conta de que estava descalça e que o chão de madeira estava frio. Pretendia ficar sentada naquele sofá, acordada e envolta na escuridão até que o dia clareasse ou que os novos ricos voltassem, o que acontecesse primeiro.
Mas não poderia fazer isso. A maçaneta girava de um lado a outro novamente, dando voltas em torno de si mesma.
Ela tapou a boca, contendo um grito de socorro. Caminhou lentamente, procurando não fazer barulho, até a porta. Tentou se colocar na ponta dos pés, mas estava muito rígida e tensa. As pernas estavam fracas. Apoiou-se contra a porta, evitando ao máximo tocar na maçaneta que girava loucamente, e olhou através do olho mágico.
Só preto. Ela incialmente pensou que fosse por causa da escuridão, mas quando outro trovão despencou das nuvens e ela não enxergou nada do lado de fora, percebeu que o olho mágico fora bloqueado. Alguém colocara um pedaço de papel ou coisas assim do lado de fora, bloqueando-lhe a visão.
Tentou respirar fundo, acalmar-se, mas o som da maçaneta girando e de alguém forçando a porta do lado de fora eram insuportáveis. Ela apoiou as costas contra a porta e foi descendo lentamente, ouvindo o som metálico da maçaneta torcendo-se e rotacionando.
- Saia daqui! VOU CHAMAR A POLÍCIA!- ela berrou, sentindo o pânico tomar conta de sua voz.
Por algum motivo, ouvir o som de sua voz, sentir as cordas vocais trabalhando, teve um efeito um pouco calmante nela. Pôs-se de pé, tentando controlar o choro de medo e desespero que insistia em sair. Ao que parecia, quem quer que estivesse do lado de fora não ouviu seu grito e limitava-se a continuar seu trabalho na maçaneta.
Quanto tempo aquela porta, aquela abençoada barreira de madeira, aguentaria?
Ela tinha de fazer alguma coisa. Não adiantava ficar em pé, ali, paralisada, esperando que a porta fosse arrombada e que quem quer que estivesse lá fora conseguisse entrar no casarão. Precisava de alguma maneira bloquear a porta ou, no mínimo, fazer com que aguentasse até que o sol nascesse novamente.
O sol – como ainda estava longe! Ela arriscou uma olhadela no relógio que (graças aos céus!) tinha ponteiros luminosos que brilhavam no escuro. Onze e vinte da noite... quanto tempo? Sete horas? Oito até que tudo ficasse claro?
Tempo demais para esperar. Ela passou angustiosamente a mão no cabelo, perturbada com o barulho insistente da porta e logo depois, da campainha sendo soada. Era barulho demais. Outro trovão riscou o céu e ela apercebeu-se das vidraças que cercavam a sala. Podia vislumbrar os pinheiros dançando na chuva, como pares de jazz mal ensaiados.
Seria vidro blindado? Ela suspeitava que sim, afinal, uma casa daquele tamanho, por motivos de segurança (óbvios) não ficaria à mercê dos ladrões com vidraças comuns.
Mas... e se não fosse?
Ela correu até o sofá, subitamente iluminada por uma ideia. Mesmo no escuro, com a fraca luz do lampião do lado de fora prestes a se apagar, ela foi tateando até encontrar o que procurava. O cabo liso, grosso e forte encontrou seus dedos ansiosos e ela gargalhou subitamente, uma risada louca. Tinha o guarda chuvas do Sr. Sou Rico E Limpo A Bunda Com Meu Dinheiro. Pulou até a porta novamente, onde a maçaneta continuava seu baile louco em torno de si mesma e a campainha continuava em sua orquestra de um membro só. Ela respirou fundo, dominada pela excitação de vitória. Enfiou o guarda chuvas entre a maçaneta e a porta de madeira e, subitamente, a peça parou de girar.
Ela conseguira. O guarda chuva impedia que a maçaneta girasse, travando-a. Mesmo assim, ela via o cabo do guarda chuva mexendo-se, como se a pessoa do lado de fora continuasse tentando girar a maçaneta.
Isso lhe dava tempo. A campainha silenciara. Ela correu pela sala, esbarrando em duas mesinhas e torcendo o dedinho do pé, ansiosa demais para se dar conta de qualquer uma dessas coisas. Trombou em um abajur, que espatifou-se no chão. Alcançou a corda que comandava as cortinas imensas e a puxou.
As cortinas correram nos trilhos, pesadas e feitas de pano negro. Correram abençoadamente, bloqueando as vidraças, bloqueando a visão dela do mundo lá fora e a visão do Monstro Que Espreitava E Girava Maçanetas do mundo de dentro. Isso também era um ponto para o time dela. Como as cortinas eram de pano preto, poderiam muito bem camuflar-se na escuridão da noite e disfarçar as enormes e frágeis vidraças da sala.
O único imprevisto era a escuridão. Com as cortinas cerradas, ela estava literalmente mergulhada no breu. Tal e qual uma cega em uma rua movimentada, saiu tateando pela sala, trombando em utensílios de porcelana e derrubando-os no chão. Pisou em um caco e gritou de dor, mas não havia tempo para pensar em dor. Mancou penosamente até o corredor que ligava aos quartos, à cozinha e ao andar de cima.
O silêncio era angustiante. Ela somente conseguia ouvir o som da chuva caindo e nada além disso. A campainha não tocava, a maçaneta não girava.
Passou pela cozinha e então deteve-se, boquiaberta. A chuva e a luz da lua, que saía timidamente de seu esconderijo feito de nuvens, entravam pela porta que ligava o Mundo de Dentro ao Mundo de Fora.
A porta dos fundos estava aberta.
Ela desfaleceu e caiu sentada no chão. A água precipitava-se pela abertura e molhava todo o piso da cozinha. Ainda podia ver, em cima da bancada de ferro, os restos da coxa de peru que estivera comendo.
Porta dos fundos. Como fora tão burra? Como pudera se esquecer da porta dos fundos?
Seu primeiro impulso foi levantar-se e trancar a porta. Mas de que adiantaria? Se estava aberta, é porque alguém a abrira, e se alguém a abrira, alguém entrara na casa.
Sufocada pelo medo e desespero, ela engatinhou na escuridão do corredor. Estava ali, dentro da casa, com o Monstro Da Maçaneta. Poderia esbarrar nele a qualquer momento. Diabos, ele poderia estar ali mesmo, silencioso como um gato, acompanhando-a enquanto engatinhava rumo às escadas que conduziam ao segundo andar.
Ela conseguiu pôr-se de pé, sufocando um grito com a mão quando pisou no caco já enterrado na planta dos pés e que entornava um caldo grosso de sangue. Penosamente subiu as escadas, apoiando-se no corrimão, sentindo que seu sangue deixava uma trilha mais que demarcada caso o Monstro se pusesse a farej...
“Ora, pare com isso! Ele não fareja porque não é um monstro. É apenas uma pessoa. Suba logo essa maldita escada e talvez quando chegar aí em cima, possa se esconder em algum lugar até que o sol...”
Passos.
Ela estancou, subitamente, sentindo o coração subir à garganta.
Passos. Passos atrás dela, cruzando o corredor.
Ela prendeu a respiração, tensa. Olhou para a base da escada, olhou para o corredor. Só escuridão e nada mais.
Mas havia os passos... ela conseguia distingui-los entre o barulho da chuva e dos trovões. Talvez de uma botina ou de uma bota daqueles texanos... logo ali, no corredor, chegando mais perto.
“Mexa-se.”
Ele estava vindo.
“Mexa-se!”
Ela pisou em falso no degrau e escorregou pesadamente na escada, causando um estrondo. O caco de porcelana penetrou mais na carne do pé, dilacerando-o. Soltou um grito quando seu rosto bateu na quina de madeira e o nariz foi nocauteado pelo degrau da escada. Um rio de sangue começou a escapar pelo nariz.
Os passos tinham silenciado.
Ele sabia que ela estava lá, na escada... como pudera ser tão desastrada, tão burra?! Pulou, ignorando a dor no pé cortado, até alcançar o corredor do segundo andar. Não conseguia mais ouvir os passos, e, de certa maneira, isso era pior do que ouvi-los.
Onde poderia se esconder?!
Outro trovão riscou o céu coberto de nuvens. A chuva agora transformara-se em algo torrencial.
Pulou até a porta mais próxima e gritou a maçaneta. A porta abriu-se e bateu na parede. Ela amaldiçoou-se por ser tão barulhenta. Era até melhor que pusesse uma luz na cabeça e um cartaz que dissesse “Venha me pegar, aqui estou!”.
Entrou no quarto e então, fechou cuidadosamente a porta. Estava tudo tão escuro (era um quarto sem janelas) que não conseguia distinguir nem mesmo as sombras do ambiente. Pôs-se de quatro, a engatinhar pelo chão, o nariz vertendo sangue e o pé dilacerado latejando como o diabo. Sua mão ansiosa e desesperada encontrou algo que parecia um colchão. Talvez fosse uma cama.
Sim, era uma cama! Uma abençoada cama onde ela poderia se esconder. Ela impulsionou-se com os cotovelos. O estrado da cama era muito baixo, de modo que ela teve de se espremer sob o móvel, tentando não aspirar a poeira do chão e evitando espirrar.
Quem poderia ser o homem de botas? Um assaltante, talvez? Um assassino? E se fosse...
Onde estava o som das botas, a porra do som das botas? Onde estava, onde estava, onde estava?! Teria ele ouvido os barulhos? Será que sabia onde ela estava?
De qualquer modo, ela precisaria reagir caso entrasse no quarto. Mas não agora. Agora precisava ficar silenciosa e parada como uma árvore no bosque. Precisava esconder-se e ficar calada.
A porta foi subitamente aberta.
Ela estava numa espécie de semi torpor. Não sabia quanto tempo ficara deitada debaixo daquela cama, mas seu palpite era de umas duas horas, tempo suficiente para que se acalmasse e conseguisse cochilar. A chuva lá fora tinha parado, os trovões e raios também. Nem o som dos pinheiros se balançando era ouvido.
Poderiam ser duas horas. Poderiam ser dois minutos. Ainda estava muito escuro, talvez não passasse da meia noite naquele momento.
E a porta estava aberta.
Ela engoliu em seco, pressionando a mão contra a boca para evitar ruídos. A cama ficava bem na parede oposta à porta. Ela virou-se silenciosamente sob o estrado apertado e sujo.
A luz do corredor (luz! LUZ!) estava acesa e um quadrado irregular de luminosidade caía sobre o chão liso e sem carpetes. Havia alguém parado lá, mas a única coisa que pôde ver (e que a arrepiou toda, desde a nuca até os seios) foram as botas antiquadas, feitas de couro. Sua visão alcançava até mais ou menos as canelas do homem parado à porta. Vestia uma calça surrada, talvez um jeans velho ou coisa desse tipo. E as botas... as terríveis botas de caubói.
Ela se espremeu mais contra a parede, sentindo a respiração suspensa. Podia ver a trilha de sangue levemente seco que vinha pelo corredor e conduzia ao quarto, até ali, debaixo da cama. Ele sabia e ela sabia que ele sabia. Amaldiçoou-se em mente por ter quebrado as porcelanas na sala e por ter pisado em uma delas. Lá estava seu rastro, marcado como tinta fluorescente. Sentiu as lágrimas de desespero, nervosismo e medo escorrendo pelas bochechas.
Por quanto tempo o homem ficaria lá, parado sob a porta? As botas não se mexiam e as longas pernas que conduziam até elas estavam igualmente petrificadas.
Ela vasculhou com os olhos alguma coisa, qualquer coisa com que pudesse se defender. Não havia nada por perto, nem mesmo um guarda chuva ou enfeite de cama, nada. Ela moveu os lábios numa prece muda e sem sentido, enquanto colocava os braços em torno de si mesma. O nariz latejava horrivelmente, ela podia ver que estava inchado, e o pé parecia pulsar com vida própria. Àquele momento, a porcelana grudada na carne já tinha quase sido aderida à pele. Infecção, bem vinda a este corpo.
Por fim, para o desespero, horror e medo dela, a bota e as pernas começaram a se mexer. Andavam calmamente, marcando com o som “toc – toc – toc” de couro duro batendo no assoalho de madeira. Andaram em linha reta, aproximando-se cada vez mais da cama. Ela torceu o rosto, sentindo mais uma vez a bola de medo grudada na garganta, maior do que nunca.
A bota estava a centímetros do rosto dela.
Uma bota horrível, de couro sujo e velho, coberta de sujeira.
Ela prendeu a respiração outra vez.
O estrado da cama rangeu.
E então, ela gritou.
O corpo dela foi achado pendurado no banheiro, inerte e já branco, às quatro da tarde do outro dia. Os donos da casa regressaram e encontraram a pobre menina enforcada com uma corda presa à lâmpada do banheiro. Ao lado do corpo, que balançava como um pêndulo e que fez a Sra. Sou Rica E Limpo A Bunda Com Dinheiro desmaiar, havia uma pequena cadeira caída.
Os fios do poste estavam intactos. A energia não caíra na região em parte alguma, segundo relatos das pessoas que viviam ali perto.
O corpo também estava intacto. Nada de cortes, manchas ou sangue. O chão estava limpo, as porcelanas impecavelmente arrumadas, o abajur aceso na imensa sala de televisão e as cortinas abertas, paradas em seus lugares desde um milhão de anos atrás.
A menina foi encontrada morta vestindo um pijama.
As portas da frente e dos fundos estavam ambas abertas, escancaradas. A única coisa anormal de que pudesse se tomar nota.
Não havia sujeira alguma na cozinha. O peru que estivera sendo assado não foi comido, ao contrário, passou do ponto e queimou-se.
De qualquer maneira, por um longo tempo não haveria mais peru naquela casa.