"BENÉ", O "DENTE DE OURO"

"BENÉ", O "DENTE DE OURO"

O amanuense Joaquim Silvério dos Reis andava sobressaltado; virava noites em claro imaginando os beleguins do Marquês de Barbacena a derrubar a maciça porta de cedro por ordem do despótico governador, esquecido que, além de súditos de Portugal, êle e muitos dos brasileiros eram também descendentes de nossos patrícios.

Joaquim Silvério devia já grande soma de impostos à Coroa e o tempo da derrama estava próximo. Seus escravos, alugados a bom preço na praça de Vila Rica, não estavam rendendo o suficiente e a extração de ouro na velha mina herdada da família resultava em produção a cada dia mais insignificante.

A desconfiança de que havia algo de podre no reino -- com mil perdôes, corrijo, na mina -- agigantou-se no íntimo do abastado funcionário público das Minas Gerais, até sombrear-lhe a cobiçosa alma, só satisfeita com o brilho do vil metal entre os macios dedos.

Os escravos trazidos da Bahia vendera-os ao longo dos anos, pois os trastes só pensavam em danças e viviam cantando dia e noite. A maior parte vinha de lá doente, imprestável para o trabalho mais duro, escumalha que as províncias do Rio ou da Bahia teimavam em repassar para as regiões menos favorecidas.

De sua propriedade restara somente o crioulinho Benedito, o "Bené", resquício de um passado de fausto e prosperidade, quando a fazendola do velho Reis produzia nas senzalas o "ouro preto" que inundava a região, com iáiás sestrosas e bem cuidadas destinadas únicamente a procriar a mão-de-obra escrava que sustentaria a enorme riqueza da província.

Dos valiosos ventres saíam centenas de Beneditos e Franciscas, de Beneditas e Franciscos, "erês" de calça ou saia batizados pela Santa Madre Igreja, que os queria escravos mas jamais pagãos... porque isso seria pecado! Ao "Deus dará" o "caxinguelê" "Bené" cresceu na fazenda, girando em torno do tacho fervente de caldo de cana e provando, aqui e ali às escondidas, nacos de rapadura que em pouco tempo lhe estragariam os alvos dentes, cavando "panelas" nas "canjicas" do fundo.

Escravo jovem não ía para o pelourinho, que inutilizava por bom período a "mercadoria" e as máscaras de folha-de-flandres eram muito grandes para aquela cabecinha. Mesmo assim "Bené" andou experimentando a sala de torturas da fazenda, para aprender a não comer porcarias, pois os dentes perfeitos valorizavam a peça na hora da revenda.

Quando os barões mudaram-se para a cidade, com malas e criadagem, o tratamento aos escravos se modificou, porque não era ato cristão e nem de bom tom torturar "nossos irmãos de côr", conforme aqueles letrados de meia tigela divulgavam em panfletos e pasquins, a partir de textos franceses, isso porque tinham boa vida e não precisavam trabalhar, filhos que eram de abastados reinóis com posição e posses.

Contendo suas despesas, o próprio Silvério encarregou-se de vigiar o trabalho escravo na mina fétida, a poeira escura a invadir-lhe os pulmões, com a eterna umidade germinando nele florida tuberculose. Só ao jovem e sorridente "Bené" era permitido entrar na sombria caverna trazendo, de quando em quando, supimpa lanche para o patrão e reles "água de batata" com nacos de pão para os poucos serviçais que marretavam, nús como nasceram, as paredes daquele "mausoléu".

Numa algazarra geral, com uma gritaria ensurdecedora largavam às pressas suas picaretas e avançavam sobre o espantado menino com a enorme bandeja de pão e um balde de líquido doce e colorido. A parede humana escondia virtualmente o rapazinho, que sumia entre braços e peitos suarentos.

Essa rotina se repetiria, dia após dia, por mais quatro ou cinco anos, sem que Dom "Quinzinho" suspeitasse como suas adoradas e valiosas pepitas de ouro puro, seus minúsculos "grãos de felicidade" escoavam-se de sua fortuna diante de seus olhos.

Os escravos alugados, entre tantos outros, reuniam-se à noitinha num local êrmo e, juntando suas economias, promoveriam adiante a compra da liberdade de um deles, mediante sorteio, os mais velhos primeiro. "Bené" também participava, trazendo sempre consigo a imagem de São Jorge Guerreiro, muito venerado entre êles. Depois das preces e sob os olhares curiosos da escravaria, o garoto raspava a argila mole sob a cauda do dragão e de lá retirava 4 ou 6 bolinhas douradas, debaixo dos aplausos frenéticos da galera.

Era durante os raros momentos de lanche na mina que os africanos, adredemente combinados, contrabandeavam o ouro que os libertaria, na única forma de escravidão que permitiu ao cativo, desde seus primeiros dias, comprar a própria liberdade.

Enquanto a parede humana fechava-se sobre o moleque dois negros, apenas dois, entregavam-lhe as diminutas esferas que eram então colocadas nos buracos dos molares cariados, recorbertas em seguida com fina camada de argila, "recompondo" os dentes, E assim, por semanas, meses e anos, "Bené Dente de Ouro" ajudou a salvar inúmeros irmãos de infortúnio, apesar da revista que o patrão fazia nas vestes e na boca mal-cheirosa do moleque sempre feliz.

Joaquim Silvério dos Reis viu-se obrigado a inglório acordo com o cruel Governador, cujos espiões o informaram que Dom "Quinzinho" fazia parte das reuniões daqueles poetas baderneiros subversivos. Não pôde negar a acusação mas alegou que o fez para informar-se do plano total, que pretendia mais tarde comunicar à Sua Excelência.

Na verdade, Silvério participava por precaução pois, caso a revolução vingasse, não queria ser perseguido como escravocrata. Logo, contribuía com alguns trocados para sustentar aquela panfletagem desvairada e colaborar nas despesas de viagem de seu "xará", alferes saca-molas sempre de boticão à vista e que vivia a cavalgar de Minas para a Côrte ou no trajeto inverso.

Na situação em que se achava, não lhe restava alternativa: entregar os rebelados todos ou entregar sua cabeça ao nó da fôrca, perdendo casa, bens e a enxovalhada honra, confiscados pelo despotismo português no auge de sua prepotência. Sendo assim, não hesitou... admitiu fazer uma pequena inconfidência à suprema autoridade, desde que seu infame ato ficasse entre 4 ou 40 paredes, pois o palácio era imenso.

Entregou todos, "dedurou" um por um, acrescentou nomes de inocentes concorrentes cujas minas competiam com a sua e saiu, leve e saltitante, que aquela corja de "ratos de biblioteca" nada tinham com êle, só viviam de escrever e poetar, ambas coisas inúteis já que pouca gente sabia ler. Mas o destino não lhe daria tempo para vangloriar-se do feito. O povo enfurecido apedrejou sua mansão e uma língua viperina, só por vingança, desvendou-lhe o mistério mais temido. Seu fiel escravo Benedito era o ladrão que o enganara todos aqueles anos, surripiando onças e arrobas de ouro do mais puro quilate durante o longo período.

A ira de todos os demônios apossou-se de Joaquim Silvério dos Reis que, na calada da noite, arrastou o indefeso "Bené" amordaçado para a solitária mina, torturando-o até a morte. Esquartejou-o, podando seus membros nas juntas e a cabeça de olhos esbugalhados terminou fincada em haste de metal na praça central da cidade, posando espantada ao lado do tronco decepado, qual peru de Natal gigante.

Pendurado ao côto de pescoço uma placa de papelão, rabiscada com os dizeres "traidor do patrão".

Desolação geral entre a negraria, com toda a Vila Rica em polvorosa por conta do hediondo crime. Ninguém ignorava o nome do autor que, abandonando tudo, "deu às vilas diogo", escafedeu-se, "sumiu do mapa". Querido por todos, Benedito teve o mais africano dos enterros. A confraria dos libertos por êle decidiu naquela noite mesmo declará-lo santo, iniciando a construção de uma capelinha em sua homenagem já na manhã seguinte.

A Santa Madre Igreja protestou com veemência... "Bené Dente de Ouro" não era propriamente cristão, não fizera a primeira comunhão nem sequer fôra crismado, apenas o batizaram. Não poderia portanto ser santificado, mesmo porque com esse nome já havia outro, beatificado pelo Santo Papa em Roma.

Os negros igonraram qualquer argumento, deram às costas para o santinho "lá das Oropa" e, logo que findou a construção da capelinha, entronizaram a imagem em tamanho natural do brasileiríssimo São Benedito, com a cara e o sorriso do "Bené Dente de Ouro", um pedaço de rapadura numa das mãos e as preciosas pepitas na outra.

A Irmandade de São Benedito dos Negros Fôrros cresceu com o tempo, ampliou-se, criou filiais em várias capitais e luta agora junto ao Vaticano para que o Santo Benedito dos brancos adote outro nome, seu sobrenome talvez, para não atrapalhar a fama e a carreira de milagres do "xará" tupiniquim.

-- "E viva Saõ Benedito"!

"NATO" AZEVEDO