O GATO BRANCO

O GATO BRANCO

No silêncio da tarde, um gato branco deslizava lentamente do galho da jaqueira e se dirigia para o alpendre. A solidão do local dava-lhe um ar de mistério. Solitário habitante da chácara Madagascar, ele se sentia o dono do mundo.

Uma construção sólida no topo da colina, de alvenaria, telhado de amianto, de frente para o portão de entrada, há apenas uns duzentos metros, conduzidos por um caminho gramado, com duas trilhas espaçadas, composta de lajotas de concreto dando passagem para as rodas de automóvel. A entrada, um pequeno portão de ripas de madeiras na vertical, em duas folhas abrindo lateralmente.

Ali morava o gato branco.

Os antigos donos haviam partido.

Depois de uma negociação demorada, onde documentos de posses e escrituras foram devidamente assinados, a transação foi feita. Alegaram motivos particulares para se desfazerem da propriedade. Problemas de saúde. Buscavam um grande centro urbano para o tratamento de uma moléstia não revelada que atacava constantemente os nervos da esposa.

A quietude do ambiente, apesar dos pássaros que cantavam nos galhos das árvores, as próprias árvores, de uma variedade ímpar, além do lusco-fusco da estação, dava ao lugar um aspecto sombrio.

Deitado na mureta do alpendre, o gato branco vistoriava a paisagem que se descortinava à sua frente. Meio alqueire de terras coberto por árvores frutíferas, umas nativas, outras, não; e uma horta mal cuidada. Nada escapava ao olhar atento do felino. Ironicamente, era o cão de guarda da chácara.

O gato branco inspirava segredos. O solitário guardião espreitava no começo da escuridão. Gostava da paz que o ambiente lhe proporcionava. E esperava que os futuros proprietários não lhe incomodassem.

Seus antigos donos haviam partido há algum tempo e os novos proprietários, um casal de professores, estavam para chegar. Algumas reformas precisavam ser feitas e era melhor e mais prático que as fizessem sem os móveis. Evitaria com isso o pó que muito desagradava o futuro dono, alérgico.

Seus antigos donos se foram. Um casal de idosos, beirando os sessenta anos, sem filhos e sem netos por perto, pois o filho morava em São Paulo, e a filha, em Curitiba. A falta de opções de estudo e trabalho faziam com que os jovens da região migrassem para os grandes centros econômicos do país.

Não sentia saudade deles. Os gatos pertencem à casa onde moram e não aos moradores.Não são como os cães, fiéis àqueles que lhes dão casa e comida.

Não sabia o gato que a sua permanência na propriedade era uma recomendação que fazia parte das cláusulas do contrato de compra e venda. Não sabia ele que o casal de idosos não queria levá-lo para a capital paulista. Nas lágrimas da despedida, ele pensou que choravam por ele, principalmente a senhora Marluce, uma gentil lavradora que adorava passear com o animal pelo terreno, principalmente nas horas em que se dirigia até a horta para abastecer a geladeira com frutas, verduras e legumes fresquinhos. Com o tempo, desistiu da plantação.

Mas ninguém chorava pelo gato, choravam pela dor que toda despedida provoca. Choravam pelo temor em habitar em uma cidade grande e totalmente desconhecida. Além de extremamente perigosa. Mas o perigo é filho de todas as ocasiões, em todos os lugares do mundo ele ronda a alma do incauto pecador, como um leão, pronto para devorá-lo.

Quando o caminhão da mudança partiu e o carro do casal de idosos deslizava pela alameda em direção à saída, o gato não se apercebeu que o velho, olhando-o pelo retrovisor, dava suspiros de alívio. Era como se estivesse se livrando de um grande peso, como se algo que lhe atormentava a consciência deixasse de existir a partir daquele momento.

Enquanto o casal partia, o gato branco meditava.

Estava ali naquela propriedade há muito tempo, quase uns doze anos, que para um gato, é quase uma eternidade. Era um savannah. Seus ancestrais eram provenientes de um cruzamento genético de gatos domésticos com um gato selvagem africano, o serval. Era branco com pelos fartos, cara redonda e olhos verdes grandes e arregalados. Tinha quase quinze quilos, mas não estava obeso. Era normal para os de sua raça.

Aquela chácara parecia lhe pertencer, tanto era o tempo em que ali estava desde que fora adotado por um pedreiro solitário que construíra a casa sem seguindo nenhum padrão, a não ser o básico para uma obra de alvenaria feita com blocos de cimento à mostra. Ansiosamente esperava o terceiro dono. Seu primeiro dono morrera afogado na piscina, que ficava na parte posterior da casa, sombreada por uma imensa mangueira. Ao lado da piscina, uma varanda aberta, com banheiro e uma mesa enorme de madeira onde era servida a refeição; geralmente a comida era carne assada na churrasqueia de tijolos refratário, construída junto à mureta da varanda dos fundos, onde também ficava a área de serviço.

Gostara do pedreiro como quem gosta de um pai. Fora abandonado na mata que circundava a chácara. Era um bebezinho ainda, que mal sabia miar, e caiu nas graças do pedreiro, que o adotou. Dois solitários perdidos na imensidão de uma casa de quatro quartos, sala, cozinha e banheiro. A casa era para abrigar uma paixão. Paixão de adolescente, cultivada pelo desejo da mocidade. Uma semana antes do casamento, descobriu-se que a noiva o traía passeando com o cunhado pelas matas da redondeza. Os iguais se atraem. Gato e dono do gato vagavam pelas terras da propriedade como dois amigos, conversavam de tal maneira que o gato parecia falar, tamanho era o seu ronronado nas caminhadas.

Já do casal de velhos, entretanto, não tinha muita saudade.

Deu uma volta ao redor da casa, pulou sobre a mureta novamente e averiguou o ambiente. Estava tudo dentro da normalidade. Alguns ratos rondavam por ali em busca do milho guardado em um saco de aniagem sobre o telhado tosco de folha de zinco que cobria parcialmente o galinheiro. Era um gato nobre, portanto, não perderia o seu tempo perseguindo ratos. Ratos era coisa pra gato vira-lata. E ele era um nobre descendente das savanas africanas e não estava disposto a sujar a sua penugem correndo atrás de reles roedores famintos.

Naquela noite, a propriedade dormiu sozinha.

Sozinha, não!

O gato branco era o guardião da noite e estava a posto. Nada de ruim poderia acontecer ali naquela noite.

Ali, ruim mesmo era o próprio gato branco.

Na manhã seguinte, o barulho de um portão sendo aberto e o ronco do motor de um carro entrando pela alameda acordou o gato branco.

Era um automóvel sedan branco, que rangia forte subindo a colina em direção à casa e parando em frente ao portãozinho da varanda.

Dele descera um casal, aparentemente com menos de trinta anos de idade. Ela, alta, morena, esguia, pernas bem torneadas semicobertas por um vestido semicurto. Os longos cabelos pretos, da cor de jabuticaba madura, balançavam ao sabor do vento no ritmo da passada cadenciada. Ele, estatura média, branco, quase pálido, queixo proeminente e olhos pequenos e apertados, franzindo sempre a testa. A marca era um sorriso, constante, demonstrando uma alegria permanente ou um bom humor corriqueiro, daqueles que se alegram até com piada sem graça.

Nele, uma aura apagada. Nela, a vivacidade parecia brotar dos poros. Enquanto ele andava em direção à entrada, ela marchava. Peito empinado, ombros erguidos, passos firmes e rápidos. Desfilava.

O gato branco se apaixonou pela gata nova que chegava.

Os recém-casados logo se adaptaram à rotina do local. Eram da capital e vieram para o interior como professores efetivos. Ela, de Matemática; ele, História. Antes de partir para o trabalho, molhavam a horta e as plantas ornamentais que enfeitavam a alameda. Davam milho às galinhas e ração do gato branco era sempre depositada com um cafuné feito por ela na cabeça peluda do animal.

Trabalhavam na mesma escola, alternando os horários no período da tarde, enquanto que de manhã, iam cedo e voltavam juntos na hora do almoço.

O carinho da mulher se contrapunha ao desprezo do marido. A alergia a pêlos fazia do gato um inimigo número um. Sempre que se aproximava do gato, espirrava por várias vezes seguidas, além de ficar com os olhos vermelhos e o nariz vertendo gotas e gotas de coriza.

O tempo passava lentamente.

A antipatia entre os dois machos se acirrava. O principal veneno era o ciúme. À noite, no sofá da sala, assistindo a novela das nove, que nem sempre começava no horário, os dois disputavam o colo da fêmea. O marido alegava pra si o direito de esposo, o gato desrespeitava qualquer direito e se enrodilhava nas pernas dela e subia ao seu colo. Geralmente irritado e espirrando muito, o marido se dirigia até o quarto do casal para ler um livro de detetive, sua paixão. À sua cabeceira sempre tinha duas coisas: um livro e uma revista de palavras cruzadas. Adorava ler, mas faria qualquer outra coisa somente para ficar longe daquele animal peludo.

Numa fria noite de inverno, o gato foi ousado e pagou caro.

Enquanto o marido tomava banho, ele, o gato branco, se deitou junto à mulher, estilo conchinha, totalmente escondido pelo cobertor. Quando o marido chegou, ainda na penumbra, ao levar a mão para tocar o corpo da esposa por sob o lençol, um obstáculo. Tamanha foi a raiva que ele pegou o gato pelo rabo, deu várias voltas e o arremessou porta a fora, para o corredor. Um a zero para o marido.

Mas o gato branco não esquecia uma agressão. Esquecia sempre a mão que afagava, mas um gesto violento, isso nunca!

Já era começo de primavera no hemisfério sul e as árvores do pomar exalavam o cheiro suave da florada. Um súbito calor rondava a região. Despreocupadamente, o marido caminhava em volta da piscina. De propósito, o gato entrelaçou-se entre seus pés. Um tombo feio. Na queda, um braço que bateu na quina da piscina. Braço quebrado, professor de licença médica. Sutilmente, o gato empatou o jogo.

A guerra estava declarada.

A professora, sem jeito, ficava no meio do conflito. Passou a assistir a novela no quarto. Ali, o marido trancava a porta e escutava, vibrando como se fosse um gol do seu time, o miado constante do gato em cima do telhado. Não era um miado, era um gemido.

Um dia desses, o gato, aproveitando-se de que o vidro do carro estava abaixado, pulou para dentro e fez suas necessidades no banco do motorista.

Por um longo tempo, fez-se paz!

Gato e marido começaram a perceber que outro adversário entrava em campo.

A mulher se preparava para ser mãe. Dentro dela brotava o fruto do amor. Gato e marido ficaram para escanteio.

Nas horas de folga, a mulher, sentado na rede ou no sofá, acariciava longamente a barriga que começava a se avolumar.

Tanto para o marido quanto para o gato, a indiferença era a mesma.

Toda a atenção agora se voltava para a criança que estava para nascer.

Segundo exames de ultrassom, uma menina. Para a alegria do casal e para a tristeza do gato branco.

Uma bela e saudável criança vem ao mundo numa manhã de abril, com o vento fresco de outono soprando suavemente.

Já se fazia três anos que os novos donos estavam na chácara. Vez ou outra o gato branco e o marido se estranhavam e sobravam arranhões e pontapés para todos os lados.

A criança crescia na formosura do seu tempo, uma linda flor brotando no jardim da nova família.

Com a presença da menina, a linda Mel, o gato branco parecia invisível na chácara. Tanto o esposo quanto a esposa pareciam não mais ver o gato branco. E aquela indiferença agredia-o profundamente.

Contra o a indiferença do casal, o gato branco ficava desarmado. Era um abandono completo. Por algumas vezes lhe faltava a água, por outras, a ração não lhe era dada. Dentro do animal a semente do mal, por um tempo, escondida nas entranhas do bicho, começava a brotar novamente.

O gato branco não aceitava aquela situação. Se fosse um cachorro, tudo bem. Os cães se contentam com pouco. No sol ou na chuva os cães saem do seu abrigo para receber seus donos; em um caso de assalto, eles são capazes de morrer para defender seus donos. Os cães eram leais aos seus donos, os gatos eram fieis às casas de seus donos.

A menina era o xodó da casa. Com alguns meses de vida, a criança já dava os seus primeiros passivos pelo quintal, ora caindo, ora engatinhando.

Era uma manhã de sábado. O pai saíra para a pelada de fim de semana com os amigos. A empregada não trabalhava naquele dia.

Na área de serviço, nos fundos da casa, a mãe lavava roupa e a criança brincava, entre baldes e bacias com roupas de molho.

Dentro de casa, o telefone tocou. A mãe nem deu bola. Mas o telefone continuou a tocar, insistentemente.

Lavando as mãos cheias de espuma de sabão em pó e secando-as no avental, a mãe foi atender ao telefone.

Brincando à borda de um balde com água misturada com sabão em pó até a metade, a criança se divertia com as bolhinhas que se formavam quando ela agitava a água com um das mãos.

À mente cruel do gato branco, uma imagem veio à tona. Alguns anos antes, o seu primeiro patrão, que voltara a se apaixonar por outra mulher e esquecera-se da vadia que o havia traído, acabando por esquecer também do velho e bom amigo gato branco, companheiro solidário das horas tristes e vazias. Ainda no resquício de uma bebedeira, caminhava trôpego perto da piscina. De repente um pulo do gato sobre as costas do pedreiro, na escuridão da noite. Um susto e o mergulho foi fatal.

Ainda brincando à borda de um balde com água misturada com sabão em pó até a metade, a criança ainda se divertia com as bolhinhas que se formavam quando ela agitava a água...

Bastava apenas um pulo nas costas da criança.

Apenas um pulo...

O pulo do gato!

Jonas De Antino
Enviado por Jonas De Antino em 26/02/2013
Reeditado em 25/07/2014
Código do texto: T4161260
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.