O DEFUNTO EM FUGA
Por: josafá bonfim
Despertou-se do que lhe parecia acordar de um sono profundamente pesado, ou mesmo um pesadelo, invadido por uma sensação diferente como nunca vivera antes. Sentia-se comprimido, como se dentro de uma caixa escura, que mal o cabia da forma em que se encontrava deitado. Tentou sentar-se, bateu com a cabeça em algo resistente, a poucos centímetros da testa, fazendo-o voltar à posição anterior. Tateava com as mãos o obstáculo ao seu redor, na vã ideia de identificar aquele local escuro sufocante, de cheiro desagradável nunca antes sentido; imaginando como foi parar naquela furna horrível, sem ar, sem luz e sem vida. Alucinadamente começou a esmurrar e soquear as paredes que o encalacrava. Exauriam-se as forças, quando sentiu algo desmoronar, como se estivesse conseguido romper um obstáculo rígido que revestia seu corpo. Continuando o esforço, as mãos começaram a sangrar de tanto enroscar e desferir socos, tentando libertar-se do segundo obstáculo, que parecia muito mais resistente. Comprimido, sem saída, bateu o desespero, começando a gritar, na esperança que uma alma boa ouvisse sua aflição, e viesse ao seu socorro. Inútil... Ninguém por perto, que suplicio... As mãos e os dedos encontravam-se esgarçados e os músculos saturados de tanto lutar para se libertar daquela clausura. Com os membros superiores extenuados, passou a usar os inferiores, dando pontapés contra o obstáculo a frente de seus pés, no que percebeu encontrar-se calçado com sapatos. Enfim, os impactos fizeram ceder algo, provocando claridade, como se uma tampa estivesse sacado no prolongamento dos seus pés.
Avançou arrastando as costas vagarosamente no sentido da abertura na sequencia dos pés, e percebeu que suas pernas não encontravam mais obstáculos. Foi prosseguindo aos poucos com o movimento, até sentir seu corpo escapulir pela passagem feita. Sentiu a frieza da ventilação, percorrer-lhe no sentido das pernas para a cabeça, num verdadeiro alivio. Livre do tormento olhou o novo cenário, se dando conta de que era noite escura.
Que lugar ermo seria aquele, como fora parar ali?
A escuridão campeva o local, a luz mais próxima encontrava-se a uma distancia considerável. Foi andando devagar na direção da luminosidade, parando aqui acolá, acometido agora, por uma forte dor de cabeça, seguida de leve tontura. Meio trôpego saiu tateando tocando em alguns monumentos que encontrava pela frente, deteve-se junto a um deles, e só então, percebeu claramente onde se encontrava: estava dentro de um cemitério.
Tomado pela perplexidade, começou então a sentir cataclismo. As mãos frias e castigadas pareciam dormentes. Os cabelos da cabeça se eriçaram, sentiu-se como se estivesse sendo suspenso a partir destes, por um campo magnético. Adquiriu forças para escalar o muro, saltando numa viela estreita que passava nos fundos do campo santo. No ambiente claro percebeu estar vestido em terno preto completo, no lugar da gravata pendia um Terço Sagrado, em madeira. Não restavam mais dúvidas.., acabara de sair de uma sepultura, em que fora colocado. Como aquilo foi possível? Um turbilhão de questionamento inundou sua mente.
Anacleto sofria de perturbação no sistema nervoso. Quando jovem sofrera de um ataque de catalepsia patológica, não sendo enterrado vivo, graças à percepção aguçada de um médico da família que detectou a síndrome. Guardava aquilo debaixo de grande segredo e somente sua mulher tinha conhecimento da doença rara que era portador.
Enquanto recuperava os ânimos sentado numa mureta encostada no poste, fazia grande esforço para concatenar as ideias.
Desquitado há oito anos, não quis mais saber de companhia, trabalhava numa empresa de grande porte, morava sozinho e só era encontrado em casa no período da noite. Revendo aos poucos o seu passado, chegou ao último estágio no sentido progressivo de sua memória, dando conta que o ultimo instante registrado em sua mente antes de se surpreender naquele cemitério, deu-se num dia quando a caminho do trabalho, caíra na porta de casa, sendo amparado pelos vizinhos. Levado ao hospital lembra apenas, quando os enfermeiros aplicaram-lhe uma medicação intravenosa. Somente vindo restabelecer sua consciência, no leito da sepultura.
A dinâmica do acontecimento estava assim aclarada, mas daqui pra frente, como iria encarar a realidade dos fatos, sendo que mudara sua mentalidade sobre princípios e conceitos, adaptando-se ao novo universo a que passara a fazer parte. Uma enxurrada de introspecção permearam-lhe o consciente.
Qual seria o próximo passo dali pra frente? Não restou outra opção, o lugar seguro era o caminho de casa. Entrou silenciosamente, como quem furta, e em segundos estava de volta ao seu convívio.
Desfez-se da incomoda vestimenta, tomou um merecido banho morno, atirou-se na camada, mergulhando em sono profundo, vindo acordar com o sol alto.
Na mesa da sala, começa a planejar, qual seria a forma ideal de encarar doravante as pessoas e os fatos.
Em meio ao emaranhado de conflitos internos e traumas psíquicos, começou a despertar no seu íntimo, uma revolta com o mundo, com tudo e com todos. Alimentando ódio e vingança contra os que imaginava terem contribuído com a desgraça encontrada. Irremediavelmente, tornara-se outra criatura, de personalidade diferente, com traços de instinto perverso.
Num exercício de memória começou a malsinar ódio contra todos com quem um dia se conflitou, e a primeira pessoa, era a própria ex esposa, depois vinham os médicos que deram o diagnóstico de sua morte. Transtornado, parecia ter encarnado um espírito maligno, durante sua permanência entre os mortos, no sepulcro malfasejo.
Enquanto ruminava a própria ira, ouviu vir lá de fora um barulho, parecendo entrar alguém, após bater o portão com certa força. Inclinou-se para ver se conseguia observar alguma coisa através da fresta da janela. Quando percebeu que a porta principal de entrada estava sendo forçada, e voltando o olhar para a mesma, viu quando o trinco se moveu. Não restou mais dúvida, alguém tentava entrar na casa. Outrora, uma cena daquela o teria deixado em pavor, mas agora, sentia-se outra pessoa, seus instintos de defesa e de ataque, estavam repotencializados. Muniu-se de uma potente barra de ferro, que servia como tranca da porta da cozinha, se colocando em posição de ataque, na passagem da sala para a copa. Quando a criatura apontou no canto, desferiu com toda força, uma pancada em sua cabeça, arremessando-a ao chão. Ensaiou um sorriso amargo, curvou-se olhando com cautela para o intruso, reconhecendo-o: era um rapaz sobrinho de sua ex- esposa, que certamente tinha sido encarregado de fazer a limpeza da casa. Sacudindo-o, certificou-se que estava morto. Arrastou o cadáver até o quintal, removendo com certa dificuldade a pesada tampa de um velho poço desativado, jogando-o precipício abaixo.
Naquela noite não conseguiu dormir sossegado; ouviu algumas vezes, no silencio da madrugada, o lamento de alguém vindo do quintal, pedindo em voz clamorosa e sem ressonância, que alguém o ajudasse: socooorrrrro... me tirem daqui..., está muito frio. Foram escasseando os gritos, até as lamurias afogarem-se nas águas.
Acordara tarde naquela manha de sol bem vivo. Após o banho, e uma xicara de café bem quente, ligou o aparelho televisor para ouvir as noticias, das quais andava afastado há tempos. Sentado na poltrona, estica as pernas sobre a mesinha de centro buscando melhor conforto. Portas e janelas permaneciam fechadas. De repente, o telefone toca no canto da sala... Quem poderia ser? Bateu a dúvida: atender, ou não. Não esperou a quinta chamada, resolvendo atender. Envolveu o aparelho com o guardanapo da mesinha e disfarçando a voz falou: Quem fala?
– É da casa do senhor Anacleto Siqueira? pergunta a voz do outro lado.
– Quem está falando por favor e com quem deseja falar, perguntou.
– Meu nome é Afonso, vi o anuncio de venda do veiculo, nos classificados, me interessei pelo mesmo e desejo comprá-lo.
Anacleto lembrou ter feito o referido anuncio poucos dias antes de sua suposta morte. Certamente tratava-e de mais um incauto..., reverberou. Uma luz rapidamente acendeu na sua mente patológica, trazendo à tona mais um plano sórdido. Precisava evadir-se daquele lugar, antes de ser revelado, mas para isso necessitava de dinheiro, e quem sabe, era o que estava vindo a sua procura.
Voltou a voz ao telefone, para detalhar a negociação, convencionando a metade do pagamento à vista em espécie, e a outra metade para trinta dias, devendo o comprador se dirigir à sua casa levando a primeira parte do dinheiro, de lá já saindo com o veiculo licenciado.
No tempo previsto, a campainha toca. Afonso é recepcionado, e para o anseio de Anacleto apresentou-se só. Gentilmente é convidado a entrar, e tomar assento numa poltrona da sala. Em instante tudo definido: o automóvel é vistoriado pelo comprador, que abre a pasta entregando o dinheiro. Enquanto Anacleto fora se trocar para providenciar a transferência dos documentos, frente à televisão o visitante aguarda passivamente o seu retorno.
Uma chamada do noticiário local, nesse exato momento, noticia o desaparecimento envolto em mistério, do corpo de um funcionário da empresa Brasming ind. & comércio LTD, morto há tres dias; com destaque para a foto do falecido.
A notícia impactou Afonso, que estupefato, sem conseguir esboçar qualquer atitude, vira-se para a entrada do quarto onde seu atendente sumira. E tamanha fora sua surpresa e pavor... Sem chance de reagir, ou tentar fuga, viu uma haste potente descer violentamente sobre sua testa, com tanta força, que fez seu olho direito saltar da órbita. Ao cair no solo, recebe outras pancadas, ainda mais fulminante, esfacelando o cérebro. Seu corpo se debate em ataque convulsivo e aos poucos vai esmaecendo. Os braços vagueiam sem mais resistência; e o que restou da cabeça, esparramou-se pelo chão. O sangue escorre lentamente, abrindo vereda pelo piso branco, até empossar no rodapé ao lado, em profunda abundancia.
Sem perda de tempo, remove o cadáver, envolvendo-o em um grosso cobertor, e com muito esforço consegue colocá-lo no porta-malas do carro. Limpa todos os vestígios que pudessem incriminá-lo; e ansioso passa a aguardar o cair da noite.
Na escuridão noturna, prepara uma pequena bolsa, enfia o pacote de dinheiro por dentro da calça, põe um boné sobre a cabeça, tranca a casa e ao volante ruma para um novo roteiro. Pegou uma estrada vicinal, e a certa altura de um trecho ermo, sobre uma ponte, desce do veiculo, abre o porta-malas e arremessa o fardo nas profundezas das águas. Ao longe, um sitiante serrano, observa do quintal da sua morada, aquela movimentação estranha. Apanha uma bicicleta e se dirige para a cabeceira da ponte. Foca a lanterna em todas as direções, iluminando o leito do rio e tudo ao redor, não conseguindo observar nada de anormal. - Deve ser mais um desocupado que veio jogar entulho no rio, imaginou...
Antes de deixar o local, escuta uma grande explosão lá pra cima da serra. Vacilante, ficou por alguns minutos, atônito, contemplando a imensa claridade que se desencadeou com o sinistro. Como era noite, e por estar sozinho, ficou com medo de ir mais à frente averiguar o que tinha sido aquilo. Assustado, apressa-se em retornar pra casa. No dia seguinte, ficou sabendo que um veículo teria sido abandonado vazio e incendiado.
Com documentação pessoal falsa, alugou uma pequena quitinete no subúrbio da cidade, onde ficaria certo tempo, até executar seu novo plano. Conseguiu um serviço de vigia noturno em um desativado complexo arquitetônico de uma antiga fábrica de tecidos, e com a arma acautelada, costumava escapulir na madrugada, para praticar pequenos assaltos nas imediações de casas noturnas, e assim, amealhar alguns trocados. O propósito do maníaco, agora, era localizar sua ex companheira, e dela fazer picadinhos para se vingar pelo abandono, e sabia que a mesma estava morando naquela cidade.
Nunca admitiu a separação, julgava ter sido traído, trocado por outro, e agora, convertido em outra personalidade, a mágoa e o rancor espargiram-se, transformando a frustração, num desejo horrendo de vingança.
Após a traumatizante separação de Anacleto, que uma vez atentou contra sua vida, por força de um ciúme doentio que cultivava, Madalena mudou-se para outro estado, evitando qualquer contado com o mesmo. Trabalhava numa indústria de calçados, mantendo em sua companhia o casal de filhos adolescentes e um sobrinho que veio fazê-los companhia há pouco tempo. Seu segundo casamento também fracassara, tendo assim, preferido viver solteira.
Passava da meia noite..., na sala todos assistiam a um filme instigante envolto de mistério e muito suspense. No decorrer do intervalo, Marcelo levanta, dando boa noite a tia e aos primos. Precisava dormir, pois no dia seguinte teria que acordar cedinho, para encarar uma fila por emprego. Disse, recolhendo-se no seu cômodo, que ficava numa edícula na parte do quintal da casa .
Lá fora um leve sereno varria a cidade. A temporada era invernosa e o frio àquelas horas começara a exigir uma boa coberta. Madalena, em meio a trama cinematográfica começa recobrar lembranças de sua vida recém passada. Ansiosa aguardava noticias sobre a saga diabólica, na qual Anacleto se envolvera. Tinha sua própria concepção sobre os fatos, conhecia muito bem o gênio do ex marido, e não queria se envolver numa celeuma, que por pouco não se viu tragada pela mesma. Sentia medo, vivia sempre à espreita, o coração palpitava, temia deparar-se a qualquer instante, com aquela criatura transtornada e embrutecida. Cessado o filme, recolheram-se todos aos seus respectivos aposentos.
Todos dormiam serenamente, menos ela, que virava de um lado pra outro na cama, que lhe parecia espinhar seu corpo. E o sono sem querer vir.
Um mau pressentimento apossou-se de si, parecia que algo terrível estava prestes a acontecer. Não podia precisar, mas pressentia a convergência de energia negativa por perto.
Quando estava adormecendo, despertou-se após ouvir alguns disparos, que pareciam ter ocorrido nas proximidades da casa. Ficou por alguns instantes tentando captar indícios de alguma anormalidade, mas logo desistiu, imaginando tratar-se de mais um pesadelo dentre tantos que tivera naqueles dias. Virou-se para o lado e voltou a adormecer. Mas, não por muito tempo.
Marcelo acorda no horário programado: pouco antes das cinco da manhã. O sol queria despontar na barra, e para não despertar o sono dos demais, em silêncio dirige-se para o quintal. Mal acabara de abrir a porta, ouve o impacto, idêntico a alguém saltando o muro para dentro do terreno da casa, por trás da lavanderia. Controlou o susto, mas sentiu uma sensação estranha percorrer pelo corpo, que pareceu esquentar os ouvidos e o sangue fervilhar nas veias. Não teve dúvidas, alguém acabara de invadir o local. Ficou em dúvida se tinha ou não ligado à corrente elétrica dos fios de energia, instalados como armadilha no quintal, ante o fato da região ser infestada de ladrões, que invadiam domicílios quando a cidade dormia.
Encostou-se na coluna da caixa dàgua, que de tão larga encobria seu corpo. E ficou aguardando a movimentação de quem fosse. A chuva havia parado à algumas horas e o piso do terraço encontrava-se encharcado. O vento cessado após a chuva voltara mais frio, fazendo bailar as folhas de um frondoso coqueiro, que vicejou com a água que costumava jorrar da pia.
Quando deixa o esconderijo para tentar surpreender o invasor pela retaguarda, bate de frente com este, que sem visualizar direito, dá dois disparos em sua direção. No reflexo, o rapaz joga-se ao solo, o que salvou sua vida, tendo as balas passado assoviando acima do seu corpo. O atirador procurava melhor posição para voltar a atirar, quando despercebidamente fora tragado pela fiação elétrica...
Enfim, puderam se avistar frente a frente. A surpresa foi imensa para ambos. Marcelo sabia que aquele instante um dia iria ocorrer, por essa razão fora o mentor da armadilha miraculosa.
As contrações convulsivos foram cessando aos poucos no eletrocutado, que pregado ao fio, na ânsia da morte, imaginava tudo, menos se deparar com aquela criatura, que pra ele, já fazia parte do mundo dos mortos. Não era possível ter de novo a sua frente a criatura que jogara morto no poço. Só podia ser o fantasma daquele infeliz, que emergira das profundezas, para se vingar.
O revolver ao chão não mais serviria aos seus instintos psicopatas. Em fortes vibrações o espírito aos poucos vai deixando seu corpo desfalecido.
Recomposto, Marcelo cata a arma ao chão, e antes de apertar o gatilho, é surpreendido pela tia e os primos, que em desespero, agarram seu braço antes de ser deflagrado o tiro que seria de misericórdia. E ao constatarem de quem era aquele cadáver exposto na fiação, o pavor diluiu-se em prantos. Em instantes, viu-se uma corrente de lágrimas, misturando-se à água que caíra do céu, inundando de angústia e alívio, o cenário do último episódio de uma façanha macabra e sangrenta.
São Luís/MA, 19 de fevereiro de 2013