Ramalhete de Flores

17 de março de 1942

Era tarde da noite, as luzes da cidade apagadas, a neblina encobrindo os telhados e os vidros embaçados pelo limo. Ela espiava de sua escrivaninha que ficava de fronte a janela. Uma luz baixa amarelada sobre seu papel. O cotovelo apoiado na madeira e o rosto na mão. Algumas linhas escritas, mas que pouco tinham algum significado.

O lápis camurçado parecia adormecido sobre os seus dedos. Ora, há tempo estava ali. Seu vestido longo encobria os pés encolhidos pelo frio da madrugada. Alguma expressão serena, talvez cansada estampando seu rosto jovial. Mas seus olhos não se rendiam, as pálpebras abriam e fechavam mansas, como a doce sintonia que soava em seus ouvidos.

Talvez fosse estranho que, depois de vinte e oito anos aquela melodia ainda cantarolava insistente na sua cabeça. Era a mesma que mamãe cantava a ela antes de dormir, por no mínimo onze anos de sua vida. Depois que mamãe se fora, a canção parecia ser o único laço que as colocava na mesma frequência. O disco tocava repetidamente, com acordes altos e baixos, suaves e por vezes graves.

Na gaveta da escrivaninha, alguns álbuns de fotos, a capa em couro marrom, mais conservada que supostamente as fotos em preto e branco que se colavam dentro dela. Mas há tempos aquelas memórias não eram abertas. Antigamente, ao se sentir sozinha em seus momentos de angústia, folheava os álbuns a procura de algum consolo no passado. Mas com o tempo, percebeu que lembranças apenas a faziam fugir da realidade, uma ilusão que a matava aos poucos.

25 de julho de 1929

A chuva estava incomodando e ele achou que procurar um abrigo fosse mais confortável. Usava uma capa um pouco longa, escura e com cortes bem feitos em acabamentos europeus. Estava a algum tempo caminhando entre as ruas estreitas, uma noite mal dormida, nem mesmo os remédios ajudariam. Levantou e resolveu que tomar um ar fresco seria bom para os ânimos.

Ele chegou perto, ela parecia deitar sua cabeça sobre seus joelhos, sentada naquele muro de limo, sujo, pouco encardido. Não sabia se ela estava dormindo ou chorando. Mas sabia que algo o atraíra pra que chegasse perto dela, aquela menina talvez sensível ou até mesmo, inocente.

Viu que ela segurava um buquê de flores que provavelmente ela mesma montara. Estava molhado, um pouco murcho. Ela continuava com a cabeça baixa, lágrimas sendo disfarçadas pela chuva. Ele sentou-se ao seu lado. Ela sentiu o toque dele no seu ombro e levantou a cabeça devagar, o cabelo desgrenhado e muito preto.

- Está perdida? – ele tentou.

- Não, senhor.

- Para quem são essas flores?

- São para o túmulo de minha mãe, senhor. – ela continuava com a voz embargada.

-Oh, me desculpe a indelicadeza. – ele sentiu-se perturbado.

- A tarde era ensolarada e os pássaros cantavam alto. Mamãe tinha voltado da padaria com os pães de sempre, apenas quatro, dois para mim, dois para ela, e deveriam durar dois dias. Ela estava especialmente feliz, até mesmo tinha comprado um litro de leite do leiteiro, como não era de costume. Eu estava no jardim, cultivando as flores e cantando, como era normal para uma menina de onze anos. Quando mamãe passou pelo portão, o sorriso dela ao me ver irradiava como nunca. Eu corri para os seus braços e ela me embalou como se eu fosse tão pequena que ainda coubesse em seu colo. E então a noite caiu serena. Mamãe me pôs para dormir, cantando a canção de ninar, como sempre fazia. Meu sono era leve para um baque tão alto. Levantei correndo da cama e no alto da escada, vi mamãe estaqueada lá embaixo, a cabeça sangrando e o corrimão caído em cima dela. Eu comecei a gritar e sacudir o seu corpo já morto. O desespero daquele dia arde em mim até hoje, dia que se completam quatro anos de sua morte. – finalizou com as lágrimas correndo soltas pelo seu rosto.

- Sinto muitíssimo. – ele quase não sabia o que dizer.

- Então eu fui levada para um orfanato, passei três anos servindo às donas da instituição. Algumas pessoas vinham visitar o lugar, e tudo parecia perfeito aos olhos de quem não convivia ali, dia e noite, noite e dia. Um suplício sem fim, um sentimento de solidão que atormentava a todas as crianças. Eu não tinha muitos amigos, ficava quieta em meu transe particular, fazendo o serviço que as donas mandavam, e imersa em pensamentos. Quando completei quatorze anos, decidi que não queria passar a vida no orfanato. Arrumei minha trouxa com um pão que deixei do café da manhã, um bloco pequeno de anotações e esperança. Eu tinha passado tempo suficiente ali pra descobrir algumas maneiras de sair. Aí chegou o entardecer e eu não entrei de volta na casa. Me escondi no muro alto repleto de vegetações rasteiras, e esperei que a calada da noite apagasse meus rastros. Corri, corri sem parar até que meu pulmão não aguentasse mais. Voltei na antiga casa, onde tudo ainda estava como foi deixado, a escada quebrada, meus sapatos perdidos pela casa e a poeira tomando conta de tudo. Eu não podia continuar sem o pedaço mais importante das minhas memórias e da minha vida. – ela estampava nostalgia em seu rosto.

- Essa realmente é uma história fascinante. – os olhos dele estavam vidrados e a boca semiaberta de surpresa.

- Apesar de tudo, senhor, apesar de todas as lembranças que me tiram o sono e que me fazem viver em um pesadelo infernal, o amor da minha mãe ainda arde aqui dentro, e todos os anos venho lhe trazer essas flores, que ainda cultivo na nossa antiga casa. São silvestres e não possuem muito cheiro, mas eram as preferidas dela. – seus olhos novamente estavam marejados, fixos no ramalhete.

- Tens um grande coração, menina. – ele foi sincero.

Os dois se levantaram, agora a chuva caía fina, quase se apagando no céu. A manhã começava a surgir e o sol despontar aos poucos. Ele colocou as mãos no bolso e saiu caminhando lentamente, os olhos ainda profundos e imersos na história dela. Então ele olhou mais uma vez pra trás, e a viu indo em direção ao cemitério, e pensou que sua vida não seria mais a mesma depois daquele dia.