Harakiri e a construção do Castelo – A Vida de Munetada - reeditado
As impressionantes construções japonesas carregam, no bojo de suas linhas, a vida, impregnada de emoção, vigor e devoção dos seus realizadores. É assim, não só nas construções como igualmente nas obras de arte, especialmente aquelas de antigamente. Não sei como é hoje, pois nunca visitei aquele país, mas imagino o diferencial em arte e beleza. A espada do Samurai, a armadura dos guerreiros de eras históricas até hoje impressionam e deixam cair o queixo de tão perfeitas que são as suas linhas. Parece que ali borbulha cada toque de mão e cada pingo de suor deixado nestes objetos; é como se sentíssemos ainda vivas e palpitantes as horas árduas daqueles trabalhos, mas transformadas em arrebatamento por causa do objetivo principal que os impulsionava: o caminho para a elevação espiritual, tanto do realizador quanto de quem fosse ter o privilégio de utilizá-los.
Munetada sonhou tornar-se um construtor de castelos; na verdade, de um castelo; e nesse trabalho colocaria a sua vida. Tinha consciência da seriedade dessa decisão, mas não importaram as súplicas dos pais para que refletisse antes de partir de Tóquio para o aprimoramento. Deram-se por convencidos, desistindo assim de impor ao filho mudanças de hábitos e pensamentos que já eram o seu dia a dia. Sem ter a necessidade do trabalho ordinário, por vir de família abastada, dedicou-se àquele propósito. Quão belos e magnetizantes eram os passeios de Munetada a pé ou a cavalo pelas trilhas que conduziam aos castelos já marcados para entrar na história!
Todos os tipos de clima passaram por sua têmpera de jovem audacioso. Sobre o verde umedecido do orvalho retinto, as ferraduras silenciadas marchavam imponentes pela condução rítmica do cavaleiro. A postura ereta dava-lhe o ar de guerreiro nobre que sabe o que quer e vai em busca do seu destino. As pontas dos capinzais como que se inclinando a sua aproximação, sabedoras do sentimento raro no peito de um mortal. Elas lhe abriam passagem; deixavam-se mordiscar pelas patas protegidas, quando não amassar e perder assim o viço, tudo com naturalidade; mas valia o sacrifício. Por quem era e por seu propósito, isto seria mais do que um ato abençoado, a reciprocidade de um amor eterno entre natureza e homem especial.
Não eram de despedida, tampouco de decepção os berros de alvoroço das aves que se prostravam nos galhos pela aproximação da cavalgadura de Munetada. Tinham feitio de um cântico de alegria, livre de dor e de tristeza e cheio de orgulho irmão. No seu caminho entre as árvores, quando o chão era de terra, abria-se ante a visão do rapaz, um cenário incomparável. Quando a areia levantada limpava a sua visão lhe apareciam pela frente, sem que soubesse de onde, estas aves misteriosas. Os galhos reverberavam e as árvores se enfeitavam. Daí, saltavam, contornando a figura de Munetada como a orná-lo de um colorido de asas, de um resfolegar de bicos numa orquestra de vozes.
Um desses castelos deixou no ainda menino as marcas mais profundas que caracterizam este tipo de construtor. Depois desta pesquisa inesquecível, a sua decisão que era de ferro transformou-se numa vontade de aço e ele reconheceu a profundidade de sua missão. Ao ver aproximar-se do leito do rio aquela ponte levadiça e correr por ela as centenas de guerreiros em dia de treino; juntar-se a eles e dar o peito à ponta de uma espada e morrer pela pátria era a glória, mas levar adiante sua vocação primeira era o auge da glória. Ele esperou que a multidão se afastasse para, só então apresentar-se ao Sumo.
- Está ciente da sua escolha?
- Não há nada que eu queira mais nesta vida, senhor.
- E quanto à família. Sabe da tradição?
- É por isto mesmo que aqui me encontro.
- Pela idade que diz ter não restam mais do que oito anos para iniciar os aprimoramentos e mais cinco para a finalização do castelo. São treze anos no total. Tem ideia do que isto significa?
- Ideia absoluta senhor. Sei que é esta a minha missão e não pretendo fugir a ela.
- Entendo. Em todo caso, reflita. Apresente-se a um ano do início dos aprimoramentos. Uma vez confirmando e iniciado os primeiros alicerces, não há como voltar atrás e a punição será a pena de morte.
Isto já era sabido e as pesquisas continuaram; os passeios, cada vez mais frequentes e impregnados de uma força crescente de decisão e de alegria. Era assim em suas andanças. À medida que os anos o aproximavam de sua meta final, o respeito e a admiração por esse homem invulgar eram a marca da região onde vivia. Depois que souberam, as visitas frequentes perturbavam o sossego e as oferendas tiravam todos os espaços que antes eram disponíveis. As espadas, belas e invejadas, cintilavam aos raios do sol que ganhavam a sala especial de ofertas. Penduradas em linha, refletiam a claridade dos dias iluminados e dançavam harmoniosas pelo balouço do vento ao deixar no ar a melodia tilintante do precioso metal.
Mas Munetada era muito mais chão do que cama, mais solidão do que todo e qualquer beneficio de uma simples aglomeração de gentes; via nelas o amor, a sinceridade, mas via também o medo da morte estampado em seus olhares resignados. “Aonde ia a coragem dessas pessoas? O que há de mais importante e vital do que a própria vida?” Era assim que pensava Munetada; a vida pela vida, do Japão, do imperador, mas, sobretudo, da perfeição do espírito e da arte de Deus.
Quando visitava os castelos, não era pouco o seu entusiasmo. Sabia que, os segredos, não lhes contariam. Mas que seriam dele exclusivamente e com ele iria para o túmulo do esquecimento. As pilastras suntuosas, os jardins que circundavam a ponte. Munetada cruzava esses espaços, sequioso de entusiasmo e de curiosidade. Sequoias que ocultavam homens, cujo abraço, para envolver seus troncos, dependeria da ação de muitos; as folhas amareladas das ricas e altivas acácias deslumbravam-no pela riqueza do seu colorido; as flores pontiagudas e entrelaçadas das coníferas que circundavam as áreas de alguns castelos, os abetos em forma taças esverdeadas.
Os jardins circulares de algumas construções eram o toque de entrada para os visitantes e Munetada passeava entre eles cheio de orgulho e um pouco menos de vaidade. Mas era no interior dessas construções, quando lhe permitiam entrar, e sabedores de sua futura ocupação peculiar, que o jovem se encantava ao ponto das lágrimas lhe cobrirem as faces rosadas.
Os retratos dos que vieram antes de si ornavam as paredes do hall de entrada. Se não lhe podiam ainda revelar os caminhos das passagens secretas por não mais pertencerem a este mundo, revelavam, em suas fisionomias, a satisfação da missão cumprida. Via-se que partiram em paz, completamente vitoriosos e satisfeitos da escolha que haviam feito. Como missão de pré-aprimoramento Munetada andou penetrando as dezenas de metros dos corredores internos, das salas de armas, dos dormitórios dos samurais e dos caminhos intermináveis que continham as passagens secretas, mas que não podiam, por hora, ser a ele reveladas; contudo, este momento haveria de chegar.
A perfeição, o toque mágico, o acabamento de cada pintura, o contorno da cada vão não podiam ser descritos em meras palavras e quem viu, jamais deles deixou de ter as mais vívidas recordações. É preciso tirar do fundo da alma a inspiração e o talento que impregnaram aquelas construções. E permanecem ali, na alma, agora no espírito dos que se foram e por isso e para isso se foram.
Não poderia se outra a resposta de Munetada senão um sim à indagação mais importante de sua vida, o seu destino. Assim começou ele, após todo um ritual de treinos e de aprimoramentos, o trabalho digno e magnânimo a que se propôs. Trabalhou incansavelmente, com ânimo, com alegria. O trabalho que saía de suas mãos não pode ser avaliado como simples trabalho humano por ser algo que transcende a própria razão. E o toque, a perfeição e o acabamento não cabem na concepção do que se conhece por obra de arte. Cada ajustamento de pedra e cada formação em bloco de uma torre, quando apreciados, não encontram, na ótica da arquitetura moderna uma explicação plausível para tamanha precisão e beleza. Assim foi o trabalho de Munetada. O suor do castigo que as horas da missão lhe impunham não o esmorecia jamais.
Quantas vezes não subiu e desceu a torre com o peso da massa a lhe entortar os quadris e fazer sangrar os ombros imperdoavelmente requeridos nesse esforço hercúleo! Quanto não incharam seus pés pelo aperto das botas e pelo caminhar excessivo! Se escolhemos o nosso destino ou se somos por ele escolhidos não fez, nesse, caso a mínima diferença no coração de Munetada.
Todos os esforços que ele nunca considerou sacrifícios acabaram por ser coroados com a conclusão dos trabalhos e a inauguração do castelo; sem pompa, mas também sem dor e sem arrependimentos porque esses sentimentos não faziam parte da época e não povoavam o coração do grupo que ladeou Munetada e muito menos dos nobres que o apoiaram. A contemplação da magnificência, do arrojo da obra e da perfeição máxima a que pode chegar o espírito de um ser humano compensaram, de longe, tudo o que pudesse anuviar a alegria daquele momento solene quando...
Do alto da torre, enfileirados, Munetada entre eles, entregaram de fato a vida ao fim maior, ao da realização. A espada em riste, outro produto da perfeição humana, refletindo no ar o brilho inesquecível daquela manhã ensolarada, cumpriu com maestria o seu papel e, sem dor nem arrependimento, lá se foi Munetada e todos os outros com os seus segredos. Perfeito haraquiri para uma perfeita obra.