Skinwalker
O reflexo do rosto no espelho demonstrava só parte de seu sofrimento. Inchado e avermelhado. Um hematoma roxo circulava o olho esquerdo. Mal podia acreditar que havia acontecido outra vez. Uma lágrima escura manchada pela maquiagem abriu caminho e desbravou seu rosto em uma descida vertical, até que não suportando mais a gravidade despencou em direção a pia branca em que se apoiava.
Estava longe de sua casa, antes, porém, este era seu desejo. Mas percebeu em sua reflexão que este sonho foi a sua ruína física e moral. Não tinha mais estima alguma neste país próspero em que as pessoas se divertem o tempo todo, aparentando não terem problemas. O erro não estava na escolha do país, e sim na do parceiro para sua vida. – Como ele mudou – pensou rapidamente. Não sabia se ele estava usando drogas, só sabia que havia muita bebida envolvida.
Aquele banheiro parecia comprimir e intensificar o seu sofrimento. Após esta curta constatação de sua desgraça, começou a se despir, caminhou até o chuveiro, girou a chave e deixou aquelas gotas frias tocarem seu rosto. A maquiagem ia saindo, sentiu um pouco de dor quando a água entrou em contato com seu olho magoado pela bofetada desferida há poucas horas atrás.
Saiu do chuveiro ainda ouvindo o tamborilar das últimas gotas caindo no chão. Se enxugou e foi para o quarto. Deu graças a Deus por ele não estar ali, devia ter ido beber mais. Era o que melhor fazia nos últimos meses. Olhou pela janela de sua casa e observou por um tempo a tarde de céu nublado que se apresentava. Percebeu nesse instante que um belo cachorro totalmente branco, com um pelo espesso, olhava diretamente para sua janela, como se estivesse observando-a também. Como ele teria entrado em seu quintal? Bem, provavelmente seu marido havia deixado a porta de acesso aberta ao sair.
Desceu para o andar de baixo e abriu a sua porta para espiar pelo gramado e saber se aquele belo cão ainda estava por lá. Não estava mais. Constatou que a porta de acesso estava mesmo aberta e foi até lá fechar para que nenhum outro intruso entrasse sem ser convidado. Quando se virou seu espanto foi grande, pois o cachorro estava sentado e olhando para ela, gentilmente. Pôde ver que parecia se tratar de um cão da raça pastor canadense ou suíço, como também era conhecido. O animal não apresentava qualquer agressividade, por isso aproximou-se dele. Ele demonstrou ser dócil, começou a lamber sua mão carinhosamente, e ela afagou sua cabeça e orelhas. Decidiu levá-lo para dentro, o céu começou a escurecer mais ainda e uma grande chuva se anunciou.
Deixou a porta aberta, para o caso de ele querer fazer qualquer de suas necessidades. Pelo menos imaginou que ele escolheria assim. Não tinha qualquer comida de cachorro em casa, seu marido não gostava de cães. Na verdade, não gostava de qualquer animal. Talvez não gostasse nem dele mesmo. Começou a fazer dois bifes na frigideira. O cão branco, ao sentir o cheiro sentou-se perto dela na cozinha e não parava de balançar o rabo, parecia realmente pedir um pouco daquela refeição que instigava seu olfato.
A chuva começou a cair forte. Ela se apressou em fechar as janelas de baixo e as do andar superior. Só ouvia agora o som das gotas batendo forte contra as janelas e o som da frigideira fritando a cheirosa carne. Os dois bifes estavam prontos. Pegou dois pratos, dispôs um filé em cada, pegou um garfo e uma faca, andou até o sofá, sentou-se, ligou a televisão, colocou um dos pratos no chão e tão logo o fez, aquele belo e faminto cachorro se aproximou e devorou a carne em segundos. Ela sorriu e afagou o animal que agradeceu lambendo sua mão. Ela pensou que se ele falasse, provavelmente teria dito alguma coisa em referência a sua boa ação.
O noticiário não estava agradando, só havia reportagens sobre política interna e externa, cotações das moedas, enfim, nada de seu interesse. Olhou para seu mais novo amigo e pensou que ele poderia dormir ali aquela noite, seu marido provavelmente não conseguiria voltar para casa naquela chuva. Bêbado e trôpego como sempre, cairia em alguma sarjeta e só retornaria ao amanhecer. O cachorro se avizinhou um pouco mais e colocou a cabeça sobre os seus pés.
Após alguns minutos, percebeu que o cão pegara no sono. Retirou com cuidado os pés debaixo da cabeça do animal, foi até a geladeira, pegou uma lata de refrigerante, abriu-a e sorveu o líquido por alguns segundos. Quando deu por si o cachorro estava sentado olhando para ela – será que você acordou com o barulho da lata abrindo? – disse para ele. Caminhou até a pia da cozinha pegou um copo, encheu de água da torneira e deu ao seu alvo amigo. Ele deu seguidas lambidas no copo, parou por um segundo ou dois e voltou a lamber. Depois levantou a cabeça olhando para ela com um pouco de água gotejando pelo seu focinho.
Ela voltou ao sofá, ainda seguida pelo canino branco. Ele não tinha qualquer coleira, ou qualquer identificação, por isso ela não sabia como chamá-lo, pensou se alguém o poderia ter soltado na rua, não parecia um bicho perdido.
O telejornal havia acabado e iria começar uma comédia romântica que nada se coadunava com sua situação. O cachorro estava deitado sobre o tapete agora. Orelhas em pé. Dava pra perceber que ele não iria dormir. Com o passar dos minutos o temporal parecia aumentar, o barulho do vento entrando pela fresta da porta era grande e um pouco assustador, mas ela não estava com medo, parecia protegida agora ao lado de seu novo amigo.
Uma sonolência seguiu-se, e aquela bela mulher de cabelos negros e olhos castanhos aconchegou-se no sofá esticando as pernas para um breve cochilo. Ela não esperava o que Morpheus havia guardado para ela naquela noite. Imagens um pouco desconexas de um lugar parecido com uma floresta começaram a se formar em sua mente. Estava caminhando com um vestido preto, rasgado nas pontas. Um leve vento frio foi sentido por ela e aquela peculiar sensação de medo que nos acomete em sonhos se abateu sobre ela. Foi quando ela escutou um uivo de lobo, seguido por vários outros. Poderia afirmar que nunca sentira tanto medo como naquele instante. Aproximou-se de uma árvore, pressentiu que estava sendo perseguida, ficou de costas para o tronco. Após cessarem os uivos, foi acometida por um forte golpe na parte lateral direita de cabeça, sentiu seu sangue escorrer pelo pescoço, pegajoso entre seus cabelos. Não havia desmaiado, conseguiu se virar. Reconheceu seu agressor na mesma hora, era seu marido. Olhos injetados de sangue, sentia até o cheiro forte de álcool. Quando ele se lançou para mais uma investida sobre ela um grande cachorro branco saltou sabe-se lá de onde atacando seu ofensor.
Foi aí que acordou assustada com a batida forte da porta de sua casa, mas o medo não passaria tão rapidamente, seu marido havia chegado e tão logo a viu deitada no sofá, irrompeu um sem número de xingamentos e injúrias contra ela e se lançou a estapeá-la.
– Sua vagabunda, onde está o jantar, eu boto comida nesta casa não é pra você ficar só comendo e dormindo. Quem esteve aqui? Por que dois pratos estão sujos? Sua puta sem vergonha, quem esteve aqui? – gritou puxando ela pelos braços – Eu vou matar você se não abrir o bico sua piranha!
– Foi um cachorro que entrou aqui, eu não sei onde ele foi, por favor acredite em mim!
– Um cachorro sua sem vergonha mentirosa! Onde está esse animal então?
– Não sei, deve ter saído enquanto eu dormia.
Ele empurrou-a contra a parede, ela bateu fortemente com a cabeça e caiu sentada de costas para a parede. Sentiu a mesma sensação que teve no sonho ao perceber o sangue escorrendo e se misturando ao seu cabelo. Quando ele se preparou para desferir um murro bem na direção do rosto da mulher um rosnado se fez ouvir. Ele parou o movimento, olhou para a cozinha, de onde vinha o rosnado e viu o cão de que a esposa lhe falara. Tentou não fazer movimentos muito bruscos, apesar de estar bêbado sabia que corria perigo agora. O bicho rosnou mais auto e se lançou latindo sobre o ofensor da mulher. Derrubou aquele homem de pouco mais de um metro e oitenta e cinco com sua arremetida.
A mulher se desesperou com aquele cenário de violência, o animal tinha se lançado ao pescoço do homem e dilacerava a garganta daquele infeliz. Este tentava a todo custo se desvencilhar da fera iracunda. A mulher com medo correu até o andar de cima, entrou em seu quarto e se trancou. O barulho da peleja no andar de baixo era grande ainda. Colocou as mãos sobre os ouvidos pra tentar não escutar. Até que tudo silenciou.
Ela olhou pela janela e viu que a chuva ainda caia com força naquela noite. O sangue de sua cabeça havia coagulado e fez seu cabelo grudar em seu pescoço. Sua cabeça doía muito agora. Resolveu sair e olhar o que havia acontecido. Lentamente abriu a porta e se dirigiu as escadas, desceu-as vagarosamente. O corpo de seu marido estava imóvel. Um ferimento grave na altura da jugular por onde saíra muito sangue formou um circulo rubro em torno da cabeça, dando-lhe um aspecto de um santo, com auréola vermelha. Não viu onde estava o cachorro, começou a procurar o seu defensor, mas não o encontrou dentro de casa. Foi até a porta, muita água da chuva havia entrado por ali, o tapete estava pesado. Foi grande o seu susto quando olhou na direção da porta que dava acesso a rua, a uns dez metros de onde estava e viu um homem muito branco nu parado na chuva observado-a. Ela ficou meio desorientada com aquela visão. Mas de alguma forma entendeu o que havia acontecido. O homem acenou como em despedida e virou as costas e saiu da propriedade daquela mulher.
***
Em menos de trinta minutos aquela mulher tentava formular explicações plausíveis para o chefe de policia. Sabia que ela era a principal suspeita de ter cometido aquele crime bárbaro até o momento. Mas pensou neste paradoxo que se apresentava para ela, pois mesmo que fosse presa, estava livre. Realmente agora estava liberta. Sabia que o horror de sua vida tinha passado e este não consistia em barras de ferro de uma cela. Provaria sua inocência, o legista não titubearia diante das evidências de mordida animal. E ela, ao final, seria eternamente agradecida a um cachorro branco que cruzara em sua história.