No último instante

Um cheiro insuportável, pútrido, intolerável tomou conta dos meus sentidos. O cheiro de carniça subjulgava meu raciocínio. O impulso de correr fora impelido por uma confusão mental estarrecedora. O cheiro só aumentava e inundava meu ser, minha alma. Queria correr, sair dali, daquele lugar incrivelmente mal cheiroso, foi quando que por entre a confusão percebi que estava deitado.

- Que danado estou fazendo deitado? Onde estou? - Resposta alguma.

- Que escuridão é essa? E esse fedor? - Nada. Silêncio total.

Tentou se concentrar, vencer o caos mental em que estava mergulhado. E, num breve instante, um lampejo de silêncio, uma sensação de organização mental.

- Meu Deus! Não sinto minhas pernas; Não sinto meus braços; Não sinto meu corpo! - Percebeu o caos mental se aproximando novamente.

- O que está acontecendo? Que fedor insuportável!

O cheiro de carniça, carne apodrecida no auge da decomposição, incomodava mais que o fato de estar num escuro absoluto, sem sentir nada de seu corpo. Havia ainda a mente que atormentada pelo mal cheiro, não ajudava na compreensão do que estava acontecendo.

Esforçou-se. Precisava compreender. Era preciso concentração. Mais uma vez obteve êxito e outro breve instante lhe permitiu lembrar que sofrera um acidente. Um grave acidente de trânsito. Estava em seu automóvel na BR quando do nada na contra-mão surgiu um caminhão em alta velocidade e desgovernadamente atigiu-lhe em cheio. Como uma imagem estática, lembrou-se da proximidade daquele monte de ferro atingindo o carro e aproximando-se violentamente em sua direção.

- Estou morto! - ainda não fora uma constatação definitiva!

- Meu Deus será que estou morto?

*****

- Será que é assim que é? - Bem diferente de tudo que já ouvi ou li. A começar pela conversa de campos cheios de flores, familiares e amigos que a muito se foram vindo lhe recepcionar. Absolutamente. Aqui estou tão só que nem mesmo corpo tenho. Na verdade só acredito que ainda existo porquê não há nada mais desagradável que este tremendo fedor. Esse cheiro de carne putrefa a insistir em exalar tal maldito mal cheiro. Isso confirma minha ainda existência, acredito eu. Acho que já desvendei o segredo: Pelo menos percebo que ainda mantenho meu intelecto. Estou morto e jaz, enterrado. Meu corpo morreu. As ligações nervosas que faziam a conexão entre meus membros se foram, e por algum motivo, meu cerébro mantêm-se vivo. Não mais enxergo, nem provavelmente ouço, não sinto mais nada físico, meu corpo está morto, mas ainda vivo. O mal cheiro que sinto provavelmente trata-se de minha própria carne em decomposição, e sendo devastada por vermes impiedosos e famintos. É assim que é estar morto? - Pelo menos não sinto dor. Não há lembranças. - Minha nossa, que coisa mais infectante. Este mal cheiro me faz pensar que estou no purgatório.

E agora? o que acontece. Sem passado e sem futuro? Apenas o momento fétido, impotente? ... que absurdo!

- Estou preso? Estou preso!

Onde está a luz? Ou o maldito inferno e seus demônios perversos e profanos? O que devo fazer? Quanto tempo devo permanecer assim? no limbo?

Aliás, algo diferente se mistura. Isto me parece familiar. - É cheiro de terra. Areia molhada e barro. - Ah! que bom poder sentir algo diferente mesmo que tão sutil, singelo. Este maldito mal cheiro ainda persiste infectando tudo. - [Risos], Tudo? - Que tudo me resta? Tudo? Apenas uma mente, senão um sopro de pensamento que ainda persiste em ser terreno, amaldiçoado em ter de sentir tão desagradável cheiro.

*****

Mas este novo sabor, sabor sim, porquê foi assim que senti de tão agradável que é este novo cheiro. Percebo que lentamente vou conseguindo me desvencilhar do pútrido para o agradável. Novos cheiros vão se incorporando, e cada vez mais sinto que a confusão que me flagelava não mais ameaça se impor.

- Sinto cheiro de raízes; - Como sei que são raízes?, acho que nunca senti cheiro de raízes em vida. - Deve ser como saber o gosto de chumbo sem ao menos ter passado a língua nele. é. pode ser.

- Quanto tempo será que estou morto? ou assim? - Nem sei ao menos o que sou. Mas sei que sou. De alguma maneira, ainda!

*****

Ainda posso imaginar. - Que engraçado: Posso imaginar! - O que devem pensar os que bem me queriam enquanto vivo? - Está no céu, sendo acolhido por Deus! - Bem, ainda não! No momento sou apenas esse apego ao mundano. Ao sujo e ao fedido.

Não consigo me lembrar quem sou. Ou quem fui ao menos. - Sem identidade. - O que sou? Ou o que penso ser?

Começo a sentir cheiro de seiva, o cheiro indescritível de folhas. e já não é tão terrível o mal cheiro da carne em decomposição, pois há outros e maravilhosos cheiros para se concentrar.

- Algo mais começa acontecer. Não sei o que é. Mas parece-me agradável. Uma nova sensação. Um novo elemento se incorporando ao pouco que há. Uma sensação de acolhimento. Algo semelhante ao que se diziam sobre ser recepcionado por amigos e familiares, mas aquilo que me envolve tem cheiro de terra, barro, raízes, folhas e caules.

Sinto conexões. Sinto ou penso, não sei bem, novas e agradáveis sensações. coisas que não são minhas mas que agora o são. Um bem estar singular, e apenas uma lembrança parece agora formar-se: O do maldito mal cheiro de carniça que parece ser apenas uma e a única lembrança.

- Sinto-me mais de um. Parece que estou conectado. Sou mais de um. sou um e se sou todos e tudo.