* SHAW DARKHOLME: A DAMA DOS ESPELHOS ¹
Era madrugada, uma madrugada tempestuosa, onde todo firmamento era talhado por laminas brilhantes em formas de relampagos, e o barulho ensurdecedor dos trovões parecia anunciar o fim dos tempos, não o fim de mais um período. Estacionei o veiculo tentando verificar o guia de posicionamento global que pareceu completamente incapacitado devido a forte interferência magnética, havia dirigido sem rumo por algumas horas, sem ao menos ter alguma noção de para onde estaria indo, mesmo porque teria uma reunião importante na manhã seguinte.
Em razão da chuva, aquela tempestade súbita, ao redor não podia enxergar nada, sequer um veiculo, algum aventureiro insistiria em viajar em meio a tempestade, e fiquei completamente sem qualquer referencia. Assumi a direção e o risco de ficar perdido, saindo do percurso, e quanto mais dirigia, mas parecia aprofundar em meio a tempestade, mergulhando na escuridão mais sombria e aterradora. A tempestade persistia, aumentando sua intensidade, podia sentir a direção do veiculo vibrar em minhas mãos, e comecei a perceber que não havia sido uma boa idéia insistir em viajar em meio a tempestade, pensei em parar, mas em meio ao nada, não seria indicado ou uma idéia racional, assim continuei dirigindo, aumentei o som ouvindo uma serie de rock, para amenizar minha ansiedade e acalmar meus sentidos, todos em alerta, tentando vislumbrar uma referencia em meio a escuridão para que pudesse refugiar por algumas horas.
Dirigi cerca de dez minutos, quando comecei a ver um luz distante, que tremulava diante de meus olhos, em meio a tempestade, acelerei não ao ponto de correr qualquer risco, mas com a consciência de que precisava fugir da tempestade, fui aproximando do feixe de luz, que parecia convidar para uma parada forçada e obrigatória em meio a situação adversa, e estando mais próximo, pude ver que era um velho casarão, com traços rústicos, em uma construção do século passado. Estacionei o veiculo mais próximo da entrada, mesmo porque a única peça de roupa que havia trazido era o terno para a reunião, e caso houvesse que seguir viagem após a tempestade, não teria outra opção. Abri a porta e apressei em meio a tormenta, que pareceu intensificar em cada passo pelo caminho até a varanda, e ao bater a porta com insistência, uma velha senhora abriu com um sorriso nos lábios e indagou:
- Boa noite, em que posso ajudar?
- Boa noite! Que tempestade é essa?
- É uma noite atípica meu filho...
- Nunca chove assim nessa região.
- Nossa, nunca imaginei que pudesse chover assim...
- Parece o fim do mundo.
A senhora sorriu, e apressando pelo ambiente, sentou em uma velha cadeira, onde olhando para mim, disse:
- Sente, fique a vontade!
- Essa chuva não irá passar até o dia clarear...
- Como assim?
- Preciso seguir viagem...
- Tenho uma reunião pela manhã...
- Meu filho, não haverá reunião...
- Descanse, você está em boas mãos...
- A tempestade trouxe você...
- E assim que cessar poderá seguir em frente.
Do lado de fora do casarão, a tempestade parecia agregar vida, em um estrondo ensurdecedor, acompanhado daquela claridade que iluminava toda escuridão, foi quando a senhora disse:
- Vou preparar um quarto para você...
- E não precisa ficar preocupado...
- Somos apenas eu e você isolados nessa tempestade.
- Senhora, eu não posso ficar...
- Mas ficará meu filho...
- Não há outra solução...
A tempestade pareceu começar a ocorrer apenas em torno do casarão, podia ouvir o ruído do vento roçando as paredes de madeira, janelas pareciam ser comprimidas pela força natural, como quisesse adentrar aquele lugar e levar tudo consigo, senti um calafrio, ouvindo os passos da mulher diante de mim, não houve outra forma além de seguir pela longa escada. A senhora caminhava lentamente, não tinha pressa, talvez por que sabia que não iríamos a lugar algum, e ao parar diante de um quarto, sorrindo disse:
- Pode ficar nesse quarto...
- Espero que as acomodações sejam boas para você...
Entrei pelo quarto, havia um aroma aprazível, e ao caminhar em direção a cama, pude perceber todo requinte do ambiente, foi quando a senhora disse:
- Fique a vontade, pode descansar...
- Assim que a tempestade cessar poderá seguir em sua viagem.
- Obrigado.
Não sentia aborrecido com a situação, ao entrar naquele quarto, fui acometido de uma calma estranha, e ao fechar a porta, o único ruído que ouvi foi da tempestade parecendo querer abrir as enormes janelas, puxei as cortinas, e ao acender a luz para iluminar melhor o ambiente, descobri que em frente a imensa cama colonial havia um espelho com medidas aproximadas de dois metro e meio de altura por dois de largura, aproximei para apreciar os detalhes, e percebi que podia mover os espelhos, que permitia acesso a um enorme guarda roupas. Imaginei que aquele casarão pudesse haver sido construído por um nobre narcisista, que escolhera colocar aquele espelho para apreciar a própria beleza, ou quem sabe, pelo casarão ser afastado pudesse haver sido um local de encontros clandestinos em um época distante.
Pensei em seguir viagem, mas fui surpreendido por uma sucessão de relâmpagos e trovões, que fez desistir da idéia, e sem ter outra opção, retirei o sapato e a camisa, e deitei sobre a cama. Não sei, e não posso dizer, mas acredito haver adormecido e fui despertado por um ruído acompanhado de um aroma, um perfume que impregnou no ambiente, a tempestade persistia, ainda mais tenebrosa, e ao olhar para o espelho, por um instante pareceu poder vislumbrar uma silhueta humana, e a medida que o ambiente era iluminado pelos relampagos parecia aproximar, vindo em minha direção, saindo do espelho. Esfreguei os olhos, talvez tentando não ser pego tendo uma ilusão de ótica, devido a situação, mas pareceu não adiantar, cerrei os olhos, pensando ser um sonho ruim, e ao abrir a silhueta humana, ficava mais próxima, e para amedrontar mais, pareceu sorrir, diante de meu desconforto e temor.
Levantei da cama, e fui em direção a porta, mas ao tentar abrir, não conseguia destrancar, pareceu pesar ainda mais, ao ponto de sentir a tranca fazer aquele ruído característico, mas a porta não mover sequer um milímetro, foi quando olhando de volta para o espelho, a silhueta pareceu ficar mais nítida e visível, era uma mulher, de pele morena, coberta por um roupão de seda que ao pisar no assoalho de madeira, pude ouvir o estalo do salto alto, e sorrindo disse:
- Porque todo esse temor?
- Não deveria sentir tanto medo...
- Pode ser acometido de um mal súbito.
Senti o olhar dela, um olhar que percorreu todo ambiente em segundos, e como em um gesto de bruxaria, surgiu bem mais próxima de mim, para em seguida, com a ponta dos dedos, roçar minha pele, e sussurrar:
- Imagino que a tempestade tenha sido generosa...
- Há muito não sou atraída além dos espelhos...
- Quem é você?
- Sou conhecida por inúmeros nomes...
- Mas hoje para você sou a Dama dos espelhos...
E com um movimento, fui arrastado pelo ambiente, fui surpreendido pela força da mulher, que sorrindo maliciosmanente, segurou meus pulsos, e prendendo encostado na parede, aproximou os lábios de meu ouvido, e murmurou:
- E quero que você saiba, isso não é um pesadelo...
- E posso sentir esse odor de medo em você.
- Está com medo?
Fiz apenas um movimento com a cabeça, sentindo a respiração quente em minha pele, e uma sensação estranha percorrer meu corpo quando senti as unhas arranhando minha pele, e a mulher dizer:
- Não tenha medo...
- Talvez sobreviva para contar para alguém...
Novamente fui arrastado pelo ambiente, podia ouvir o ruído do salto no assoalho, que pareceu sobrepujar o ruído da tempestade, e sorrindo maliciosamente, disse:
- Você deveria agradecer...
- Mas está com medo para compreender esse momento.
Fui lançado com violência, e surpreendido com a velocidade daquele ser, que surgiu perto de mim, com aquele olhar que pareceu trespassar minha sanidade e sorrindo dizer:
- Relaxe, irá sofrer menos.
- E meu prazer será mais doce.
- Ou pode ser do jeito difícil.
- E essa noite ser prolongada por horas intermináveis.
- Isso deve ser um pesadelo...
Pude ouvir a risada sonora ecoar pelo ambiente, e agarrando meu pescoço, murmurou:
- Acredita que seja um pesadelo?
- Será que um pesadelo pode fazer isso?
Senti as unhas arranhando minha pele, uma sensaçao ardente e viscosa, uma dor imensa, e sorrindo, aquele ser murmurou:
- Sente esse cheiro?
- Será que pode sentir esse aprazível cheiro?
- Não, mas eu posso...
- E sinto meu corpo vibrar...
- Por favor, tenha misericórdia...
Novamente, pude ouvir a gargalhada sarcástica, acompanhada de uma nova sessão de tortura, as unhas sendo cravadas em minha pele, e sorrindo, sussurrou em meu ouvido:
- Aquele espelho é um lugar frio...
- Mas o calor de sua pele irá aquecer minha noite...
Senti um calafrio, acompanhado de uma dor, ao sentir as unhas sendo cravadas em meu pescoço, e imaginei que seria morto, tendo a cabeça separada do corpo, foi quando olhando em meus olhos, sorriu e disse:
- Pensa que seria simples...
- Uma morte sem dor?
- Não, você merece um morte honrosa...
- Morrer pelo meu prazer.
Não sei quanto tempo fui torturado, apenas podia sentir que aquele ser parecia divertir com meu temor e sofrimento, arranhando minha pele, por vezes apreciava o aroma do sangue, respirando profundamente sobre a pele, e sorria maliciosamente, aproximava os lábios de meu rosto, e murmurava palavras desconexas, como um ritual macabro, onde a caçadora impiedosa, infligia a caça todo medo, aquele ancestral, que fica impregnado em nosso corpo desde a concepção. Foi quando abrindo o roupão de seda, desfazendo o laço, pude ver o corpo daquela mulher, possuía formas sinuosas, e desafiando disse:
- Gosta do que está vendo, meu caro...
- Será a ultima visão que terá essa noite...
A tempestade pareceu ficar mais intensa, a janela foi aberta por uma rajada de vento, e o perfume daquele ser pareceu espalhar pelo quarto, um alvoroço, tudo pareceu rodopiar diante de meus olhos, atônitos e temerosos, e podia ouvir no furor da tempestade a voz dela ecoando em minha mente, relatando tudo que havia acontecido nos últimos anos, algo que a mente humana não poderia conceber, prisioneira dentro do espelho, ansiosa por reencontrar aquele que havia encerrado sua vida, e que sentenciara a uma existência sombria, envolta nos mistérios daquele casarão, surgiu com uma adaga fina, e aproximando de meu rosto, disse:
- Não tenha medo...
- Não irá doer nada...
- Mas será um prazer para mim.
Pude ouvir o último pensamento dela, um pensamento que fez despertar, daquele pesadelo, um sonho ruim, mas que descobri não ser um sonho. Em meio a penumbra, as cortinas cerceando a visão além das janelas, ao tentar levantar da cama, diante do espelho, pude ver as marcas deixadas em meu corpo, havia inúmeros arranhões, estava completamente debilitado, sentia uma imensa fraqueza, e mal consegui vestir minhas roupas e abri a porta, saindo rapidamente do quarto. Ao descer pelas escadas, pude vislumbrar a claridade do dia, por alguns momentos procurei pela senhora, mas ao não encontrar, sai pela porta da frente, o veiculo estava intacto, mas ao olhar para a estrada, percebi que não seria fácil deixar aquele lugar, a estrada estava imersa, o rio havia transbordado, e seria impossível seguir viagem. Apanhei o aparelho celular, que sem sinal não poderia ajudar, voltei para o interior do imóvel, e procurei por um telefone, mas não havia, o silencio daquele lugar começara a incomodar e assombrar meus sentidos, e sem ter cômo fazer, fiquei esperando, em uma ansiosa espera.
Pude ver o dia ser envolvido pela noite novamente, sem tempestade, iluminada por estrelas, uma noite clara, mas ainda permanecia aprisionado naquele lugar, sozinho.
Seria mais uma noite, apressei em ocultar todos os espelhos, ou qualquer coisa que pudesse refletir imagem, não queria ser surpreendido por aquela criatura novamente, foi quando ao cobrir o último espelho do casarão, recebi uma mensagem no aparelho celular, dizendo:
- Você não pode fugir...
- Muito pouco pode ficar escondido de mim.
Senti um calafrio, e percebi que aquela tempestade havia sido providencial, e intencional ao ponto de trazer mais uma vitima para aquele lugar, onde a Dama dos espelhos esperava ansiosamente noite após noite, para uma sessão de busca e vingança.
•Damien Lockheart