Lembranças de Elisabete

O leitor deve estar lembrado de quando contei aqui, com toda a sinceridade que me permitiu o meu estado da época, as peripécias por que passei ao lado de Elisabete quando estive prisioneiro do vício do jogo e acabei, por isso, vítima de vagabundos e assassinos. Muito bem, meu peito não cabe de dor no momento em que repasso a vocês a notícia da morte de minha querida amiga. Juro, pelo mais sagrado na concepção religiosa, que gostaria de ter sido eu a ter que deixar esse mundo, órfão com a partida do ser que tudo representou para mim. Se há algo que não vou esquecer, além de sua imagem tão querida e benevolente, são os sacrifícios a que ela teve que se submeter para que eu não caísse nas garras da lei por crimes que eu não havia cometido e, quando os perpetrei, crimes deixaram de ser ao ter-me visto forçado às ações que resultaram na minha defesa e, em seguida, na defesa de Elisabete.

Melvin, o bandido que eliminei no mais terrível dos nossos dias, não era sozinho e não era um bandido qualquer. Por sorte, toda a ação no supermercado fora captada por câmeras de segurança; isto facilitou e tornou evidente nossa autodefesa. Elisabete não teve muito trabalho ao anular a sentença que me haviam impingido. Após semanas de amargor, jogado injustamente numa cela fria e solitário, ao ser liberto, retomei as minhas atividades normais. Foi quando as relações com Elisabete passaram a ser mais intensas no sentido de uma amizade ainda mais fortalecida. Acompanhei-a durante todo o seu tratamento psicológico e percebia, nessas horas de espera por consultas longas e fundamentais à recuperação de sua real identidade, como ela estava sofrendo. Agora, volvendo aos fatos e às cenas que me não deixam dormir completamente, sinto as garras estertorantes da vergonha e do arrependimento, porque foi o tipo de vida que eu levava o responsável por tudo que resultou na morte da minha incomparável amiga.

Perdoe-me, Elisabete! Mil perdões a este amigo inescrupuloso cujas lágrimas, sobre o papel, borrando a tinta, azulando-o, desfazem o que escrevi, mas a memória não me deixa esquecer cada vírgula, cada momento narrado; e eu os refaço, refazendo a escrita; elas surgem das cenas que já se eternizaram em mim. Antes disso eu era um homem. O tempo entre o dia trágico e a partida de Elisabete fez de mim o símbolo da renovação. Decidira mudar de vida e tudo faria para que desta vez não fracassasse. E não fracassei; tudo por ela, porque fez por mim o que nenhum esforço de minha parte tivera conseguido fazer. Deixara as bebidas, deixara os jogos; era, portanto um ser humano que havia reconquistado a sua dignidade.

- Estou tão feliz por você, Henri – me dizia esbanjando seu largo sorriso, numa das consultas em que eu era seu companheiro para prosas cheias de frases de gratidão de um lado e humildade e elogios do outro, o de Elisabete.

As pessoas que entravam e saiam; as que se reuniam conosco na pequena saleta a espera de suas consultas eram contagiadas com o nosso magnetismo. Eu estava feliz como sempre ficava na presença de minha amiga. Eram raros esses momentos em função de nossas vidas atribuladas e da grande distância que separava nossos locais de morada. Por isso tinha eu como sagradas aquelas consultas intervaladas por longos e saudosos trinta dias distante de Elisabete. Eu estava apreensivo, mas não queria demonstrar isto a ela. Parecia-me tão feliz neste dia! O fato é que estava sendo ameaçada de morte sem que ela mesma soubesse. Como eu permanecia na Pensilvânia, local do episódio em que tentaram estuprar Elisabete durante o assalto ao supermercado, acabei sabendo das ameaças por parte de elementos da quadrilha de Melvin. Demais, Era animador e feliz o fato e vê-la tão alegre e positiva; concluí que iam melhores do que esperados os resultados do seu tratamento.

Alguns dias mais tarde, ao subir as escadas que me levariam ao apartamento onde moro, ouvi passos no corredor. Estranhei esta situação, pois moro sozinho naquele andar e não é comum subir-se as escadas para um andar tão alto. Apressei minhas passadas e constatei que, de fato, algo incomum estava ocorrendo; Ms. Danton é idosa e mora no andar acima do meu sendo, o próximo, a cobertura. Não mais percebi o intruso quando alcancei o patamar. Peguei, correndo, o lance seguinte e, ao ganhar o corredor, antes que eu o identificasse, um homem acabara de penetrar no apartamento de Ms. Danton. Só restou-me a suposição de ter sido um visitante, embora a hora e as circunstâncias em que aquilo tenha ocorrido tornassem improvável esta hipótese.

No dia seguinte, o esclarecimento que, para mim, já havia acontecido por força de um fato que vou relatar mais à frente. Como ia dizendo, no dia seguinte encontraram Ms. Danton amarrada e amordaçada dentro de casa sem que nenhum roubo houvesse sido praticado; claro, eram outras as intenções, posto que o bilhete que encontrara ao entrar no meu apartamento explicava a razão do ocorrido. Era o primeiro aviso da minha ameaça de morte; haviam descoberto então o meu paradeiro.
“Parte da vingança já está cumprida. Agora resta o próximo: Prepare-se para morrer"

Muito mais do que medo e apreensão, foi a tristeza que me sobreveio, instantaneamente, após a leitura daquelas palavras. As lágrimas do choro incontido me banharam o rosto e eu corri ao telefone. De fato, tão tarde da noite, não alcançar em casa Elisabete era o que de mais incomum podia haver. Não sei quantas vezes deixei tocar inútil a campainha do telefone. Caí prostrado sobre a poltrona. Mas, não me demorei ali. Fui até a gaveta; peguei minha arma e subi frenético, as escadas para o andar seguinte. Talvez minha ação ao chegar em frente à porta de Ms. Danton tenha representado a morte de minha inesquecível amiga. Poderia ter agido mais energicamente. Um ou dois tiros arrebentariam a fechadura e eu teria uma chance de, mais uma vez, acabar com a raça de um marginal. Não sei se por medo, ignorância ou falta de experiência, ou pelas três coisas ao mesmo tempo, coloquei na cintura a arma e fingi um visita ao tocar naturalmente a campainha de Ms. Danton.

- Nem um movimento – disse atrás de mim uma voz, ao mesmo tempo em que o cano frio de uma arma me pressionava as costas.
Fez-me descer e ingressar em um automóvel que o esperava na portaria do prédio. Ao me empurrar para o interior do veículo pude então reconhecer nele, pela breve visão que havia tido de sua estatura, o meliante que invadira o apartamento de Ms. Danton. Havia outro ao volante. Com a arma apontada para a minha cabeça passei de ameaçado a refém indefeso e comecei a dar como certa a minha execução.Obrigaram-me a conduzi-los ao apartamento de Elisabete, o que achei estranho, pois, se a tinham executado, por que irem até lá?

Comecei a achar que o bilhete não representava a verdade e isto me trouxe uma ponta de esperança de poder salvar a minha amiga. Torcia agora para que a não encontrássemos; havia aí uma probabilidade de isto ocorrer segundo constatei pelo telefonema frustrado que eu há pouco fizera. Ao chegarmos ao apartamento e encontrá-lo vazio temi perder a vida já naquele momento, pois acharam que eu os havia enganado. Precisei provar que era aquele o local. Eles o vasculharam, e certificaram-se, por fotos espalhadas pela casa, de que era mesmo o seu endereço.

- É tudo o que queríamos – disse um deles - Pode começar a rezar, se souber.

Chegara então a minha hora. O que me havia rendido no prédio deu, na sala onde nos encontrávamos dois passos em minha direção. Tirou da cintura a arma, mas não atirou; passou-a ao outro.

- Execute-o, Leo.

Foi quando um movimento de passos no corredor do lado de fora interrompeu a ação do disparo. Houve um barulho de chaves; em seguida um movimento na fechadura. Tudo aconteceu muito rapidamente e eu não me lembro de outros detalhes da ação seguinte. O que posso dizer é que meu gesto foi instantâneo, mas não posso garantir que tenha sido o mais acertado, pois tendo me salvado a vida, resultou, se é que posso dizer assim, na morte de Elisabete. Num breve descuido do que seria o meu executor, ergui minha perna e, com um chute certeiro, arranquei-lhe da mão o revólver; este foi parar atrás dele no outro extremo da sala. Jogou-se para recuperá-lo e eu fiquei preso entre duas decisões cruciais: cair sobre ele, impedindo-lhe a reação ou lançar-me para fora do edifício, bastando para isso atravessar a vidraça da janela atrás de mim. O andar era o segundo e eu sabia que embaixo me esperava um jardim que ornamentava aquela parte do condomínio.

Não hesitei; pularia para cima do meu inimigo; travaria um confronto corpo a corpo, o que me daria chances de sair vencedor e evitar o pior. Todavia, devo ter me demorado neste pensamento e quando dei por ele o sujeito já havia recuperado a arma e se virava para alvejar-me. Não tive escolha, então. Feito um felino saltei para trás e encontrei a janela. Ao estrondo seguiu-se a queda e com ela o espatifar de cacos para todos os lados. No percurso até o chão arrependi-me da loucura feita e achei que um tiro fatal ter-me-ia levado muito mais rápido e sem dor. Amaldiçoei a lerdeza de raciocínio que me conduzira a esta opção. Além disto, deixara Elisabete nas mãos de seus assassinos. Jamais me perdoei por tal falha; difícil é conhecer de antemão o que nos reserva o destino; apenas por isso o consolo não é menor do que a culpa e o arrependimento.

Caí sobre a plantação do jardim. O choque não afetou a minha lucidez, mas não deixou de quebrar-me alguns ossos; logo me rodeei da assistência de uns e da curiosidade de outros.

- Por favor, salvem-na! Corram antes que seja tarde.

Deram por delírio as minhas súplicas, a julgar pela falta de ações dos que me ouviram. O que poderia ser mais grave do que alguém recém caído do alto de um edifício? Contudo, nada me causou maior terror e apreensão do que os tiros que ouvi em seguida. Só então atinaram com as minhas súplicas, mas eu sabia que tarde já era e nada mais poderia ser feito.
Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 13/12/2012
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