O resgate do ser Amado
Segundo inspeções realizadas no local do acidente após tudo haver terminado, constataram os peritos que a origem do incêndio fora uma falha elétrica. A fachada da residência tornara-se irreconhecível. As labaredas consumiram, em questão de horas, tudo que havia em seu interior. Rastros de fuligem escorriam das paredes. Pedaços de canos sobressaiam, enegrecidos pela fumaça. As grades das janelas retorcidas, algumas ainda em brasas, expelindo fumaça. Restos de madeiras fumegantes, que ocupavam uma área isolada fora da casa e faixas amarelas de proteção eram os primeiros sinais de destruição vistos por curiosos que aos poucos iam enchendo o local. A casa, ou o que restou dela, ostentava agora uma inclinação acentuada e perigosa; a expectativa era de um provável desmoronamento e toda área em volta precisou ser isolada.
Homens do corpo de bombeiro iam e vinham. Pequenos focos ainda surgiam em cômodos que guarneciam tecidos e outros materiais inflamáveis. Profissionais em seus uniformes, carregados de utensílios: rádios, martelos, pequenos rolos de corda, chaves de fenda, pés de cabras, estavam atentos a estas pequenas chamas que vez por outra os surpreendiam. Suas pesadas botas afundavam nos densos montes de cinza que se espalhavam, enchendo o ar, fazendo-os tossir, sufocados, enquanto conduziam a mangueira com seu jato incansável. A visão era empanada por este inconveniente e os óculos protetores embaçavam-se com freqüência, atrasando o serviço. Vez por outra um ruído ensurdecedor vinha do alto trazendo restos de reboco que se espatifavam em mil pedaços sobre os capacetes vermelhos.
O som de uma sirene comunicou a chegada de uma ambulância. Chegou em grande velocidade e freou bruscamente.
– Afastem-se do portão – disse o capitão dos bombeiros.
O carro penetrou nas dependências da morada, atravessou a garagem, seguiu e estacionou ao lado da piscina. Desceram, em seus uniformes brancos, o motorista e uma jovem médica, portando uma pequena valise marrom e dirigiram-se a um caramanchão em frente à piscina. Não demoraram em identificar o paciente. Sentado em uma cadeira branca estofada, um senhor de idade, aparentava estado de choque.
– É ele, doutora. É o Sr. Gervásio – disse uma mulher gorda, sentada em um banco de pedra ao lado do velho. Metido num terno branco, ele mirava os cachos de uva que, ainda verdes, cercavam aquela construção. Os cabelos ralos e grisalhos pendiam para fora do chapéu de côco sobre a testa pálida e suada. Tirando-lhe a pressão, disse a médica:
– Está um pouco alta. Acho que podemos tratá-lo aqui mesmo. Havia mais alguém na casa? – perguntou.
– Cremos que não, doutora – disse o capitão, se aproximando.
– Romilda! Onde está Romilda? –¬ disse o ancião, angustiado.
– Quem é Romilda? – quis saber a médica. A mulher gorda fez uma careta surpresa e interrogativa.
– Ninguém que eu saiba, doutora. Há anos sou sua vizinha e sempre o vi entrar e sair sozinho. Pode ser uma antiga namorada que acaba de vir a sua lembrança devido ao estado, quem sabe?
– Romilda! Por favor, salvem a Romilda!
– Capitão – disse a médica, – o senhor não tem como assegurar se havia ou não alguém mais no interior da casa? Este homem parece desesperado; isto pode piorar o seu estado – concluiu, atando-lhe um braço e apalpando a veia para uma injeção.
Entender o que é solidão é tarefa não muito fácil para aqueles que não a viveram. Gervásio conhecera a solidão durante anos naquela casa, mas vinha ultimamente curtindo uma forma especial de felicidade. Perdera aquele ar deprimido que o vinha consumindo. Rejuvenescera. A idade real de 78 anos caíra para 70 ou até menos. Alguma razão muito forte devia haver para isso. Por isto, chegar ao portão de sua bela casa e vê-la sendo consumida por um incêndio abalara-o profundamente. Viu a multidão aglomerada ao virar a esquina. Forçado a diminuir a marcha, desesperou-se ante a cruel constatação. Já desceu sentindo-se mal e teve que ser amparado.
A solicitação da jovem médica levou até a varanda o capitão dos bombeiros. Não só de curiosos se enchia o local. Muitos procuravam, de alguma forma, dar a sua contribuição para amenizar a tragédia. No auge da queimação, a balbúrdia chegou a ser preocupante. As labaredas castigavam sem piedade. Línguas de fogo amarelo-esverdeadas bailavam ao impulso do vento, projetando-se a alturas incríveis. Por trás da propriedade, as árvores do jardim não chegaram a ser diretamente atingidas, mas parte delas recebia em cheio o impacto da fumaça, tornando-se irreconhecíveis. Jatos d’água caiam sobre os galhos e folhas como prevenção contra um dano ainda maior. Voluntários arregaçavam as mangas e subiam as pernas de suas calças no auxílio com baldes que traziam da piscina. Mulheres e crianças agachadas à beira d’água enchiam-nos com rapidez e passavam a eles, numa troca nervosa e incessante. Outros, mais fortes e destemidos, auxiliavam os soldados com as pesadas mangueiras.
Havia ali, quinze homens uniformizados e três carros chegaram para o auxílio no combate às chamas. A água subia em possantes jatos e tornava a cair de encontro aos focos das labaredas. Pelas janelas laterais e da frente incidiam com maior fervor os esforços dos homens. A luminosidade que vinha de dentro era a imagem do próprio inferno. À medida que água e fogo digladiavam-se, sentia-se, intermitente, o som de vidros se quebrando, madeiras estalando, móveis indo ao chão e outros, pasmantes e indecifráveis. Prédios vizinhos tornaram-se camarotes em cujas janelas e sacadas velhos, adultos, crianças e até cachorros e gatos, descansando as patas sobre os parapeitos ou com as cabeças enfiadas entre as grades protetoras dos varandais, tiravam melhor proveito de tudo, ao testemunharem, de cima, o tétrico espetáculo.
As lágrimas, antes guardadas, desciam agora, livres do pejo e cheias de dor, das faces do pobre Gervásio. – O que vai ser agora da minha vida sem minha querida Romilda?
–Acalme-se! vamos encontrá-la – dizia a doutora, fechando sua maleta e passando-a ao motorista. Gervásio mostrava-se um pouco mais calmo. Largou os braços da cadeira que vinha segurando com tensão e relaxou o corpo um pouco mais. – O que Romilda é do senhor? – perguntou a médica.
– Ela é o meu amor, a minha vida, é tudo o que eu tenho. Vocês não a deixaram morrer, deixaram?
– Acalme-se, por favor!
Para Gervásio a solidão era a morte; sua felicidade era compartilhar o amor. Seus dias voltaram a ser alegres na companhia de Romilda. Voltara a ser criança. Pouco saía, não precisava. Sentia-se mais solitário nas calçadas das ruas mais movimentadas, em meio ao trânsito louco da sua cidade ou dentro da rotina de um supermercado em tardes de sábado. Mas, em casa com Romilda, a vida não passava. Estava no paraíso, sem tempo, sem passado e alheio ao futuro.
Em pé, na varanda da residência, entre paredes enfeadas, donde escorria água trazendo detritos miúdos e enegrecidos, capitão e sargento trocavam as últimas informações sobre o ocorrido. O fogo fora finalmente debelado. A multidão dispersara-se em grande parte. Os homens recolhiam mangueiras, escadas e ferramentas. Latas e baldes espalhados pelo jardim, vassouras, rodos pelos cantos jogados, o nível da piscina muito abaixo da metade, com folhas, trapos e até brinquedos na superfície da água suja e descorada, eram alguns dos sinais do triste incidente.
– Obrigado, Garcia, fez um ótimo trabalho – elogiava assim o capitão o seu subordinado. – Estão todos bem?
– Sim, senhor. E sem perdas humanas, o que é mais importante. E sem resgates, também. Ah! Melhor dizendo – disse, abaixando-se e pegando, por trás de uma cadeira, uma tartaruga média, com cerca de vinte centímetros. – Não é uma gracinha? – acrescentou, encantado, encostando, sem querer, o polegar em sua cabeça, o que a fez recolher-se imediatamente. – Logo que chegamos, em meio ao fogaréu, este bicho surgiu na porta, o que nos fez correr e apanhá-lo. Um minuto a mais e teria morrido torrada.
– E não conseguiram penetrar mais na casa?
– Impossível, a menos que nos quisesse ver totalmente torrados também. E não saberíamos, tampouco, a quem salvar, se é que havia alguém.
– Queira Deus que não! – respondeu o capitão, recolhendo o pequeno animal.
– Serviço terminado, doutora. Como está ele, já pode nos prestar um depoimento?
O velho arregalou os olhos e sorriu largamente à aproximação do militar.
– Romilda! Meu amor, você está viva! Você está viva! – gritou, saltando da cadeira e tirando, das mãos do capitão, a tartaruga, balançando-a no colo em meio a pulos de alegria.
Segundo inspeções realizadas no local do acidente após tudo haver terminado, constataram os peritos que a origem do incêndio fora uma falha elétrica. A fachada da residência tornara-se irreconhecível. As labaredas consumiram, em questão de horas, tudo que havia em seu interior. Rastros de fuligem escorriam das paredes. Pedaços de canos sobressaiam, enegrecidos pela fumaça. As grades das janelas retorcidas, algumas ainda em brasas, expelindo fumaça. Restos de madeiras fumegantes, que ocupavam uma área isolada fora da casa e faixas amarelas de proteção eram os primeiros sinais de destruição vistos por curiosos que aos poucos iam enchendo o local. A casa, ou o que restou dela, ostentava agora uma inclinação acentuada e perigosa; a expectativa era de um provável desmoronamento e toda área em volta precisou ser isolada.
Homens do corpo de bombeiro iam e vinham. Pequenos focos ainda surgiam em cômodos que guarneciam tecidos e outros materiais inflamáveis. Profissionais em seus uniformes, carregados de utensílios: rádios, martelos, pequenos rolos de corda, chaves de fenda, pés de cabras, estavam atentos a estas pequenas chamas que vez por outra os surpreendiam. Suas pesadas botas afundavam nos densos montes de cinza que se espalhavam, enchendo o ar, fazendo-os tossir, sufocados, enquanto conduziam a mangueira com seu jato incansável. A visão era empanada por este inconveniente e os óculos protetores embaçavam-se com freqüência, atrasando o serviço. Vez por outra um ruído ensurdecedor vinha do alto trazendo restos de reboco que se espatifavam em mil pedaços sobre os capacetes vermelhos.
O som de uma sirene comunicou a chegada de uma ambulância. Chegou em grande velocidade e freou bruscamente.
– Afastem-se do portão – disse o capitão dos bombeiros.
O carro penetrou nas dependências da morada, atravessou a garagem, seguiu e estacionou ao lado da piscina. Desceram, em seus uniformes brancos, o motorista e uma jovem médica, portando uma pequena valise marrom e dirigiram-se a um caramanchão em frente à piscina. Não demoraram em identificar o paciente. Sentado em uma cadeira branca estofada, um senhor de idade, aparentava estado de choque.
– É ele, doutora. É o Sr. Gervásio – disse uma mulher gorda, sentada em um banco de pedra ao lado do velho. Metido num terno branco, ele mirava os cachos de uva que, ainda verdes, cercavam aquela construção. Os cabelos ralos e grisalhos pendiam para fora do chapéu de côco sobre a testa pálida e suada. Tirando-lhe a pressão, disse a médica:
– Está um pouco alta. Acho que podemos tratá-lo aqui mesmo. Havia mais alguém na casa? – perguntou.
– Cremos que não, doutora – disse o capitão, se aproximando.
– Romilda! Onde está Romilda? –¬ disse o ancião, angustiado.
– Quem é Romilda? – quis saber a médica. A mulher gorda fez uma careta surpresa e interrogativa.
– Ninguém que eu saiba, doutora. Há anos sou sua vizinha e sempre o vi entrar e sair sozinho. Pode ser uma antiga namorada que acaba de vir a sua lembrança devido ao estado, quem sabe?
– Romilda! Por favor, salvem a Romilda!
– Capitão – disse a médica, – o senhor não tem como assegurar se havia ou não alguém mais no interior da casa? Este homem parece desesperado; isto pode piorar o seu estado – concluiu, atando-lhe um braço e apalpando a veia para uma injeção.
Entender o que é solidão é tarefa não muito fácil para aqueles que não a viveram. Gervásio conhecera a solidão durante anos naquela casa, mas vinha ultimamente curtindo uma forma especial de felicidade. Perdera aquele ar deprimido que o vinha consumindo. Rejuvenescera. A idade real de 78 anos caíra para 70 ou até menos. Alguma razão muito forte devia haver para isso. Por isto, chegar ao portão de sua bela casa e vê-la sendo consumida por um incêndio abalara-o profundamente. Viu a multidão aglomerada ao virar a esquina. Forçado a diminuir a marcha, desesperou-se ante a cruel constatação. Já desceu sentindo-se mal e teve que ser amparado.
A solicitação da jovem médica levou até a varanda o capitão dos bombeiros. Não só de curiosos se enchia o local. Muitos procuravam, de alguma forma, dar a sua contribuição para amenizar a tragédia. No auge da queimação, a balbúrdia chegou a ser preocupante. As labaredas castigavam sem piedade. Línguas de fogo amarelo-esverdeadas bailavam ao impulso do vento, projetando-se a alturas incríveis. Por trás da propriedade, as árvores do jardim não chegaram a ser diretamente atingidas, mas parte delas recebia em cheio o impacto da fumaça, tornando-se irreconhecíveis. Jatos d’água caiam sobre os galhos e folhas como prevenção contra um dano ainda maior. Voluntários arregaçavam as mangas e subiam as pernas de suas calças no auxílio com baldes que traziam da piscina. Mulheres e crianças agachadas à beira d’água enchiam-nos com rapidez e passavam a eles, numa troca nervosa e incessante. Outros, mais fortes e destemidos, auxiliavam os soldados com as pesadas mangueiras.
Havia ali, quinze homens uniformizados e três carros chegaram para o auxílio no combate às chamas. A água subia em possantes jatos e tornava a cair de encontro aos focos das labaredas. Pelas janelas laterais e da frente incidiam com maior fervor os esforços dos homens. A luminosidade que vinha de dentro era a imagem do próprio inferno. À medida que água e fogo digladiavam-se, sentia-se, intermitente, o som de vidros se quebrando, madeiras estalando, móveis indo ao chão e outros, pasmantes e indecifráveis. Prédios vizinhos tornaram-se camarotes em cujas janelas e sacadas velhos, adultos, crianças e até cachorros e gatos, descansando as patas sobre os parapeitos ou com as cabeças enfiadas entre as grades protetoras dos varandais, tiravam melhor proveito de tudo, ao testemunharem, de cima, o tétrico espetáculo.
As lágrimas, antes guardadas, desciam agora, livres do pejo e cheias de dor, das faces do pobre Gervásio. – O que vai ser agora da minha vida sem minha querida Romilda?
–Acalme-se! vamos encontrá-la – dizia a doutora, fechando sua maleta e passando-a ao motorista. Gervásio mostrava-se um pouco mais calmo. Largou os braços da cadeira que vinha segurando com tensão e relaxou o corpo um pouco mais. – O que Romilda é do senhor? – perguntou a médica.
– Ela é o meu amor, a minha vida, é tudo o que eu tenho. Vocês não a deixaram morrer, deixaram?
– Acalme-se, por favor!
Para Gervásio a solidão era a morte; sua felicidade era compartilhar o amor. Seus dias voltaram a ser alegres na companhia de Romilda. Voltara a ser criança. Pouco saía, não precisava. Sentia-se mais solitário nas calçadas das ruas mais movimentadas, em meio ao trânsito louco da sua cidade ou dentro da rotina de um supermercado em tardes de sábado. Mas, em casa com Romilda, a vida não passava. Estava no paraíso, sem tempo, sem passado e alheio ao futuro.
Em pé, na varanda da residência, entre paredes enfeadas, donde escorria água trazendo detritos miúdos e enegrecidos, capitão e sargento trocavam as últimas informações sobre o ocorrido. O fogo fora finalmente debelado. A multidão dispersara-se em grande parte. Os homens recolhiam mangueiras, escadas e ferramentas. Latas e baldes espalhados pelo jardim, vassouras, rodos pelos cantos jogados, o nível da piscina muito abaixo da metade, com folhas, trapos e até brinquedos na superfície da água suja e descorada, eram alguns dos sinais do triste incidente.
– Obrigado, Garcia, fez um ótimo trabalho – elogiava assim o capitão o seu subordinado. – Estão todos bem?
– Sim, senhor. E sem perdas humanas, o que é mais importante. E sem resgates, também. Ah! Melhor dizendo – disse, abaixando-se e pegando, por trás de uma cadeira, uma tartaruga média, com cerca de vinte centímetros. – Não é uma gracinha? – acrescentou, encantado, encostando, sem querer, o polegar em sua cabeça, o que a fez recolher-se imediatamente. – Logo que chegamos, em meio ao fogaréu, este bicho surgiu na porta, o que nos fez correr e apanhá-lo. Um minuto a mais e teria morrido torrada.
– E não conseguiram penetrar mais na casa?
– Impossível, a menos que nos quisesse ver totalmente torrados também. E não saberíamos, tampouco, a quem salvar, se é que havia alguém.
– Queira Deus que não! – respondeu o capitão, recolhendo o pequeno animal.
– Serviço terminado, doutora. Como está ele, já pode nos prestar um depoimento?
O velho arregalou os olhos e sorriu largamente à aproximação do militar.
– Romilda! Meu amor, você está viva! Você está viva! – gritou, saltando da cadeira e tirando, das mãos do capitão, a tartaruga, balançando-a no colo em meio a pulos de alegria.