BOI DE PIRANHA
Com um incontido acesso de fúria, ele bateu a porta com força, pela segunda vez no dia, estremecendo toda a parede fazendo trepidar a janela, e saiu mais revoltado que na primeira vez. A mãe, angustiada e um pouco paternalista, ainda tentou correr e contê-lo, na esperança de trazê-lo de volta, cedendo à sua chantagem emocional, sendo impedida pelo pai que, serenamente, chamou-a por duas vezes. Ela deveria deixá-lo ir, eles não poderiam parir o destino do filho, essa escolha era exclusividade dele.
Mais que nos meses anteriores, eles já haviam discutido muito, pai e filho. Este chegou a ameaçá-lo de agressão. O pai não o desafiou, mas também não retrocedeu, mostrando que, não obstante seus cabelos brancos como uma algodoeira, ele ainda era senhor do seu humilde e simples teto.
A família, com modesta renda, não podia suprir os caprichos e as exigências do filho que, inimigo dos livros, intolerante com o trabalho, sem disciplina e sem esforço, não conseguira nada na vida, já aos trinta e dois anos. A mãe, escondida do pai, aceitava ser extorquida pelo filho, sempre na esperança de que assim ele não se envolveria em encrencas.
O filho único, fanfarrão, contumaz e rebelde, queria dinheiro, um bom carro e luxo, sem que tivesse que pagar por isso. Nunca conseguira se estabelecer em algum trabalho. Ele era um homem de argumentação prosaica, patusco e alegre com outros; mas, em casa, revoltado com os pais; principalmente com o pai que era inegavelmente o culpado de serem pobres.
Já ameaçara o pai de morte porque este se recusara, juntamente com sua esposa, a sair de casa e perambular pela noite, para que o filho se encontrasse com uma mulher em casa. Seus olhos odiosos faiscavam contra o pai, o qual permaneceu firme em sua decisão. A mãe, temendo pela segurança do marido, tentava sempre propor um acordo, normalmente a favor do filho, a fim de conter-lhe a fúria.
O que houve de errado com a criação do filho? Ele não fora excessivamente mimado, e nem mesmo recebera promessas de que a vida lhe seria um jardim de rosas. Desde pequeno fora encorajado pelo pai aos estudos e trabalho, contudo nunca levou a sério os seus conselhos.
Por duas vezes o filho quis guardar, no quintal da casa, o carro de uns amigos, era só aquela noite. Contudo, suspeitando da intenção do filho e dos amigos com quem ele estava, terminantemente o pai o proibiu, vencendo com a argumentação de que chamaria a polícia, caso algum veículo fosse deixado em sua casa.
O filho chegou em casa por volta de vinte e três horas. Havia um brilho diferente em seus olhos, puro contentamento. Sua mãe quis saber a razão de tanta euforia. O pai, de soslaio, aguardava ouvir a explicação. Com entusiasmo e eloquência o filho fez questão de dizer que arranjara um bom trabalho, que acertara a boa. Não era muito legal, mas estava dentro da normalidade. Ele iria levar alguns carregamentos de CD piratas para o interior do Rio de Janeiro. Ele faria uma viagem por semana e ganharia cinco mil reais por cada viagem; sendo que ao final de cinco viagens, o carro, um Ford Eco Sport, seria dele. Era tudo que ele sonhara. Pouco trabalho, lúdico, viajando para o Rio, ganhando muito. A mãe, mesmo sabendo da ilicitude do trabalho, alegrou-se, tentando convencer o marido, pois, era uma coisa que todo mundo fazia, afinal de contas, em todas as esquinas havia vendedores de produtos piratas; além disso, o filho daria a eles um pouco de sossego. O pai, simples e sábio, como quem estivesse aceitando a maneira desaforada com que o filho lhes dera as novas, respondeu com silêncio, assentindo desconfiado com a cabeça, fingindo acreditar na impressionante história do filho.
Satisfeito por ter convencido os seus pais com o embuste, ele sentiu-se senhor da situação; e até mudou a maneira de andar, fazendo-o a passos lentos, espaçados e de asas abertas como uma galinha choca. Seu olhar era distante e confiante, o sorriso era leve e matreiro.
O Cabeça, como era conhecido o seu contratante, era afamado por comandar um grande negócio de tráfico de entorpecentes. Todos sabiam qual era o seu negócio, contudo ele nunca fora preso, nunca fora pego com algo que o incriminasse; sua ficha criminal era limpa, melhor que a ficha de muitos cidadãos consideráveis.
Ansioso, ele aguardava devaneando, com o promissor negócio que começaria no dia seguinte. O carro e a carga estavam sendo preparados. Tudo seria um sucesso. Ele chegou a exceder no devaneio, pois, conseguiu até a imaginar, com um forte desejo de cobiça e inveja, que o seu chefe poderia morrer em conflito com outros traficantes ou com a polícia, assim, ele assumiria o comando do tráfico e seria um poderoso chefão; seria rico e temido por todos. Imaginando assim, ele sorria satisfeito, como se tudo pudesse acontecer hoje, quem sabe, afinal de contas a vida tem certas surpresas e vive nos pregando peças.
Ele partiria bem cedo, assim poderia retornar no mesmo dia e por a mão no tão merecido dinheiro. Ele demorou a dormir, a ansiedade o deixava tenso. Por fim, dormiu.
Às cinco horas da manhã sua mãe o despertou sorrindo-lhe. Ele retribuiu com um sorriso e um afago no rosto. Há muito não fazia isso. O café estava posto, comeu com pressa. Poucos minutos depois de ter ingerido o seu desjejum, uma buzina fina soou rapidamente por duas vezes, era o sinal de que tudo estava pronto.
Sua mãe o encarou francamente nos olhos. Para evitar o constrangimento causado por esse profundo olhar, ele a abraçou. Há muito que não a abraçava. A mãe, surpresa, teve esse gesto como um bom presságio, algo como que uma mudança no íntimo do seu ser. Não faltou a tradicional recomendação própria das mães, como: Tome cuidado, meu filho; vá devagar; seja paciente; seja prudente; e Deus te proteja.
O pai não se levantou para despedir-se dele; pensou que isso seria uma hipocrisia, e que também estaria sendo conivente com o descaminho do filho.
Ao sair de casa, um pouco à frente, estava o carro já preparado para a viagem. O Cabeça fora pessoalmente encaminhá-lo na jornada; o qual, deixando a vaga do motorista vazia, estava assentado no banco ao lado. Quando ele chegou à porta do carro, o Cabeça fez-lhe reverência, apontando para o assento do motorista como se fosse um trono. O seu ego encheu-se, quase explodindo, arrancando-lhe um sorriso de profunda satisfação.
Ele arrancou o carro e rodou uns dez metros. O Cabeça fez-lhe sinal para parar. Tirou do bolso mil reais em dinheiro e entregou-lhe juntamente com um sorriso. Era para as despesas de viagem. O carro estava com o tanque cheio, mas era um presente para garantir o conforto do novo membro da família. O chefe encarou-o seriamente, apertou o seu ombro como sinal de otimismo e sacou da cintura uma pistola ponto quarenta, entregando-a a ele juntamente com um sorriso, balançando a cabeça em assentimento, ele poderia precisar. E como garantia de sucesso, sacou, da parte de trás, de suas costas, sob a sua jaqueta preta de couro, outra pistola. Era a sua arma de uso pessoal, a qual também lhe seria entregue com a promessa de que ele deveria cuidar dela e a trazê-la de volta. Após essas recomendações, o Cabeça desembarcou e foi-se devagar, como quem estava passeando, em sentido oposto, cabisbaixo; vez ou outra chutava um pedregulho pela rua, descontraidamente.
A viagem foi tranquila. O carro era novo e bom de estrada. Ele se aproximou da divisa de Minas Gerais com o Rio de Janeiro. Tudo estava tranqüilo, e a barreira da Polícia Rodoviária Federal estava até meio deserta. Alguns carros e caminhões iam e vinham. Logo atrás de si vinha um caminhão carregado com hortifrutigranjeiros. “Coitados desses motoristas, pensou ele, sentindo-se superior, eles têm que trabalhar tanto.”
Ele passou a barreira tranquilamente, contudo, de repente, três viaturas da Polícia Federal cercaram a pista, fechando-a diante dele. Ele brecou rapidamente tentando sair pela tangente, pelo meio do mato. Doze agentes já estavam posicionados, empunhando fuzis e metralhadoras. Ele saiu com as mãos na cabeça e deitou-se no mato à beira do asfalto, como lhe fora ordenado.
No carro encontraram cinco quilos de pasta de cocaína, pura; além das duas pistolas. Ele recebeu voz de prisão em flagrante. Os policiais se alegraram ao extremo por terem finalmente prendido o Cabeça com provas suficientes para mantê-lo preso por muitos anos.
Ele não entendeu o que acontecera, mas logo começou a juntar as peças a partir das provas que reuniram contra ele. A Polícia Federal recebera uma denúncia anônima de que o perigoso Cabeça estaria seguindo para o Rio tal horário, em tal carro e com tais produtos. As coisas só pioraram. Eles não conheciam o Cabeça, podendo ser este mesmo. Além disso, o carro em que viajava era um veículo furtado, o qual utilizava uma placa clonada de outro veículo. Para piorar ainda mais as coisas, uma das pistolas que recebera do Cabeça pertencia a um Inspetor do Rio, o qual fora covardemente executado pelos soldados do tráfico.
Enquanto a grande operação fora montada com as atenções voltadas para prender o perigoso Cabeça, outros traficantes do Cabeça passavam tranquilamente pela barreira com um caminhão de hortifrutigranjeiros carregado com trezentos quilos de pasta de coca, pronta para o refino.
Sua mãe nunca mais o viu, mas consolou-se com a esperança de que o seu filho, egoísta como era, tivesse se dado tão bem que nem mesmo quis voltar em casa. Quanto ao pai, eu não estou bem certo de suas convicções, mas alguns meses depois ele vendeu sua humilde casa na Capital e comprou outra no interior de Minas, onde viveram os seus dias tranquilos, modestamente e sem preocupações.