O Bêbado e a Enfermeira
O Bêbado e a Enfermeira.
1. O Bêbado.
Eu estou confinado e infeliz. Não me encontro nada bem depois que me tiraram o que me é mais importante. O que me faz viver. O que me dá alegria e força para encarar o pedregoso e esburacado caminho da existência. Sem ela não tenho forças para continuar. A estrada se estreita. Fica curvilínea, escorregadia e perigosa. Dificultando sobremaneira o prosseguir, o ir adiante, a realização dos objetivos. Não, eu não perdi um amor, ou algum ente querido. Na verdade, me impediram de beber e cercearam minha liberdade.
Todos me chamam de bebedor compulsivo, alcoólatra, alcoólico. Um doente. Porém, o que eu sou mesmo, na real, a vera, é cachaceiro, biriteiro, pé de cana, pudim de cachaça, um fuleiro de marca maior. E não adianta me repreender. Muito menos ter pena de mim. É só me deixar beber, e pronto, simples assim. Até morrer? Você deve está se perguntando. Sim, eu respondo, até morrer. Pessoas como eu não têm mais esperanças. Não vamos parar nunca, e pronto. Entendam isso. Nós não temos medo de morrer de tanto beber, nosso maior medo, o que assombra nossos sonhos, saibam vocês, é morrer sem poder beber. Morreria muito feliz estando bêbado. Em contrapartida, quando penso na agonia que seria morrer querendo dá um trago no meu uísque e não poder, eu tenho calafrios. Ah, isso sim seria sofrimento. O pior dos pesadelos. Chega uma ocasião que não tem mais nada pra fazer, é entregar a Deus, se ele existir, e esperar no que vai dar. Com os viciados em outras coisas penso que também aconteça da mesma forma. Seja em cigarro, medicamentos, cocaína, heroína, comida, jogo, sexo... Sei que não é fácil para ninguém. Como deixar que alguém se destrua? Ainda mais quando esse alguém traz tanto transtorno e sofrimento para todo mundo. Compreendo que muitos de nós, além de acabarmos com nossa vida, arrastamos também para o lodaçal quem está do nosso lado. Tornamo-nos egoístas tão incuráveis quanto nossa bebedeira. Uma vez escutei que eu era um leproso moral. Doeu muito, me fez refletir, mas não me fez parar de beber.
Estou completamente resignado e sei que não tenho cura, e por conta disso, achava que eu iria morrer bebendo e não semi-abstêmio, como estou agora. Deteriorado, miserável, submisso, contudo, bêbado, ah sim, muito bêbado, era desta forma que eu gostaria de morrer. Como no filme “Despedida em Las Vegas”, - que rendeu o Oscar de melhor ator a Nicolas Cage -, quando Ben Sanderson, a personagem de Cage, depois de perder o emprego, vai a Las Vegas e bebe até morrer. Elisabeth Shue, a eterna namorada do Daniel Sam em Karatê Kid, fazia par romântico com ele, com o Nicolas. Ah, que filme! Esse drama foi exibido nas telonas no ano de 1995, quem nunca assistiu aconselho que veja. É um filme que dá água na boca. Na minha deu. Em vez de me deixar depressivo e tudo mais, qual nada, quando saí do cinema, fui direto para um bar e bebi por três dias ininterruptos. Eu tinha acabado de fazer trinta anos naquela época, tinha força, fôlego e estava inspirado pela película. Ah, que filme! Que sede! Tenho ciência que parece masoquismo, um autoflagelo, uma forma de se punir. Talvez seja isso mesmo, uma punição. Vai lá saber? Devo estar à procura da infelicidade plena, já que o oposto, a felicidade absoluta, eu sei que é utopia. Independente dos motivos e desmotivos, o importante mesmo é que quero, ou melhor, eu necessito estar embriagado, não por birra, ou alegria, ou, talvez, tristeza, e sim, disto tenho plena consciência, por necessidade fisiológica. Sem o álcool no meu corpo eu não posso viver. Eu só vivo se estiver com ele circulando em minhas veias, passeando em meus vasos sanguíneos, sedando minhas células. Ele é vital para mim. De outra forma sou um farrapo humano, um arremedo de homem. Tinha dias, nos dias que eu estava mais debilitado, que a bebida não parava no estômago. Botava para fora, aos engulhos, o primeiro gole. Era bebendo e vomitando, bebendo e vomitando, bebendo e vomitando. Compulsivamente. Dois, cinco, dez copos, quantos fossem precisos, um em seguida ao outro, até que o conteúdo, de ao menos um, ficasse no estômago, aí sim, ficava satisfeito, e meu dia poderia começar. Parece triste não é? Mas, como disse antes, não sou digno de pena. Por beber, não. O estado em que me encontro hoje, por ventura, sim. Hoje minha condição é merecedora de condescendências. Estou vivendo este pesadelo há um ano ou dois, sei lá, na verdade não sei há quanto tempo estou neste martírio. Escrevo isso aqui como uma forma de não enlouquecer, se é que eu já não esteja louco. A situação está cada vez pior, todavia, não tenho o que fazer. Só lamentar, observar, escrever e padecer. Vou tentar explicar o que está acontecendo. Antes, entretanto, saibam um pouco mais sobre ela, a enfermeira.
2. A Enfermeira.
Ela parece meiga e é bonita. Olhos doces e sorriso ingênuo. Trinta e seis anos, alta, com tudo no lugar. Nasceu em uma família comum, classe média. Estudou em bons colégios particulares devido ao grande esforço de seus pais. Sua mãe era pedagoga e seu pai motorista de ônibus interestadual. Durante a infância era conhecida como a menina que cuidava de bichos. Desde pequena trazia bichos que encontrava pela rua e levava para a casa para dar-lhes alimento e conforto. Cresceu assim, sendo conhecida como benevolente e caridosa. Mas o que ninguém sabia e nunca tinha visto era seu sadismo. Quando estava sozinha com seus animais, ela praticava todos os tipos de atrocidades com os indefesos bichos. Exercitou toda sua crueldade com aquelas pobres criaturas. Também gostava de seviciar, física e psicologicamente, seus amiguinhos de menos idade. E ameaçava torturas ainda mais dolorosas se eles contassem a alguém o que ela fazia. Quando algum menino mais ousado a afrontava, ela revelava o que tinha feito com algum gato ou cachorro ou passarinho que estava aos seus cuidados, e eles rapidamente punham-se nos seus lugares. Não era a toa que a maioria dos bichos que ela tirava dá rua, dizendo que iria cuidar, acabavam mortos. Eles serviam como exemplos amedrontadores para seus desafetos. Pouquíssimas pessoas conheciam sua real face, escondida por trás daquele falso véu de bondade. Sempre foi estudiosa e tirava as melhores notas da turma. Todos pensavam que seguiria a carreira de médica, contudo, optou pela enfermagem. “Quero estar ao lado dos mais enfermos e necessitados de cuidados”, ela dizia dissimulando suas genuínas e vis intenções.
3. Um pouco mais sobre o Bêbado.
Agora, depois dessa pequena descrição sobre a infame Enfermeira, voltarei a falar um pouco mais sobre mim. Eu sou muito rico. Não trabalho. Sou um playboy convicto. Não faço absolutamente nada, somente bebo. Meu falecido pai, que Deus o tenha, era um sonhador. Ele sonhava com castelos de areias e transformou esse sonho em realidade. Ele reforçou a areia com brita, vergalhões e cimento e construiu edifícios, muitos edifícios. Ele concretizou, literalmente, sua fantasia e edificou um império imobiliário estimado em muitos milhões de reais. E eu, como seu filho, quando ele se foi, herdei uma fortuna incontável. Sou formado em engenharia, assim como meu pai, no entanto, não tive o mesmo talento dele para a construção. Meu talento se resume em beber. Quando ele era vivo, tentei ser útil, e aparecia no escritório da empresa às terças e quartas. Enrolava por ali até umas cinco horas da tarde e depois ganhava o mundo. Depois que ele morreu e que leguei minha parte da herança, nunca mais dei as caras por lá. Tenho dois irmãos que cuidam muito bem do negócio e que me querem bem longe das construtoras. Aliás, não só da firma, também me querem bem longe da vida deles. Faz dez anos que não os vejo. Não os procuro e a recíproca é verdadeira. E vivi muito bem dessa forma, até conhecer a Enfermeira.
4. O Encontro.
Conhecemos-nos no hospital. Ora, onde mais um alcoólatra e uma enfermeira poderiam se encontrar. Sou um alcoólatra incomum. Apesar de saber que vou morrer de beber, de quando em quando, geralmente quando a coisa está muito feia, vou até uma clínica para cuidar da minha pancreatite crônica. Devido ao meu abuso na bebida meu pâncreas é fibrótico, endurecido e atrofiado. Então, vez ou outra, eu fico internado, por alguns dias, para dar um descanso ao detonado órgão. Foi numa dessas internações que a conheci e me apaixonei pelos seus olhos melífluos e seu corpo atraente e ainda viçoso. Menos de seis meses depois estávamos casados.
4. O Bêbado e a Enfermeira, juntos.
Ela mostrou suas garras logo no primeiro dia, sumindo com todas as bebidas alcoólicas que eu tinha em casa. Sempre com um sorriso meigo naquele rosto de anjo. E dizendo que era para meu bem. Pouco tempo depois descobri que ela trocava meu medicamento para controlar as diarreias por laxantes e que aquilo lhe dava um prazer imenso. Quando eu reclamava que minhas caganeiras estavam cada vez piores, e mais dolorosas, ela chegava a rolar pelo chão de tanto rir. Eu ainda não entendia o motivo daquele riso tão prazeroso. Uma vez escondi várias miniaturas de garrafas de uísque dentro do banheiro. Por trás dos meus sapatos, que ficavam acomodados em uma pequena sapateira pendurada na porta. Ela descobriu e trocou o malte importado por urina, em todas as garrafinhas. Quando fui reclamar ela gargalhou, como sempre fazia, e disse que estava tomando conta da minha saúde. Muitas vezes, quando eu chegava daquele jeito, sem conseguir ficar em pé, sem dizer nenhuma palavra articulada e vomitando por toda a casa, ela aproveitava o meu estado de completa inanição alcoólica e me arrastava deitado, puxando-me pelos cabelos, como se eu fosse um rodo, e minhas roupas pano de chão, e limpava toda a sujeira que eu acabara de fazer. Um dia eu cheguei enfurecido, e parti pra cima dela, decidido a dar uma surra naquela vadia. Foi um grande erro. O primeiro erro foi que eu estava bêbado e ela sóbria. Segundo, eu devia estar pesando, no máximo, uns cinquenta quilos e ela tinha quase setenta, distribuídos pelo seu um metro e oitenta de altura. Terceiro, eu estava desarmado e ela com um taco de golfe na mão. Tomei a maior surra de minha vida. Fiquei mais de um mês sem sair do quarto, deitado na cama, sob os cuidados da minha insana e sádica esposa; a Enfermeira. E ao meu lado, como se estivesse me vigiando, o taco de golfe. Foi nesse meu período de convalescência que ela arquitetou, - usando o poder do meu dinheiro -, e colocou em prática, seu mais macabro plano. Ela me transformou em um dos seus bichinhos de infância. Aprisionou-me, me fez de peixe ornamental e me fechou dentro de um aquário sem água.
5. Dias de Hoje.
Estou preso dentro de uma espécie de aquário. È uma estrutura feita de vidro reforçado, praticamente inquebrável, a prova de som, transparente, retangular, que está dentro de um quarto. Essa caixa tem três metros de largura por cinco de comprimento e vai até o teto do cômodo. O quarto é uma suíte e está mobiliada com uma cama, uma estante cheia de livros e um notebook sem acesso a rede. Uma tubulação no teto faz com que o ar circule saudavelmente pelo recinto. Este cárcere foi construído no lugar da academia de musculação que eu tinha aqui em casa, montada de frente para a piscina. A Enfermeira retirou todos os equipamentos de ginástica e dividiu o amplo compartimento em dois. Fez ainda mais. Ela isolou este espaço do resto da casa, deixando-o independente. No lado que eu estou ela fez essa prisão. O outro lado ela transformou num salão de festas, aproveitando toda a área de lazer da mansão. O belo gramado, o parquinho, as mesas de sinuca, totó e ping pong, minha estimada máquina de fliper, as duas piscinas e as três quadras polivalentes, tudo isso, ficava disponível para quem alugasse o local. Os dois ambientes eram separados por uma parede feita com um falso espelho. O lado reflexivo ficava voltado para o salão e o fundo falso ficava para o meu lado. De forma que eu podia ver tudo que se passava do outro lado. Um grande, moderno e bem servido bar, ficava grudado a esse espelho. Então, de onde eu estava, dentro da minha prisão vítrea, eu podia ver todas as bebidas, toda a movimentação, toda a alegria aditivada dos frequentadores, podia ver as pessoas bebendo a vontade, ao passo que eu só podia olhar e desejar, calorosamente, ao menos, um gole, um golinho só, era tudo que eu queria. Aquilo era uma grande tortura. A Enfermeira, quando via que eu estava em completo desespero, numa grave crise de abstinência, ela enchia um vasilhame, acoplada a parede de vidro, com meu uísque preferido. Está garrafa tinha um mecanismo de conta-gotas, a bebida só saia de lá aos poucos, lentamente, o que aumentava o meu desassossego. A minha sádica esposa me tortura desta forma, ela não deixava que eu ficasse embriagado, do jeito que eu sempre fiquei, do jeito que eu me sentia feliz, mas, também não permitia a possibilidade de uma total limpeza do meu organismo, ficando sem beber por muito tempo. Ela alimentava e confortava minha fissura, num círculo vicioso vil, de uma forma torturante e tirânica.
Com uma grande surpresa descobri que uma antiga namorada, que passou por maus bocados quando esteve ao meu lado, que é funcionária da empresa da minha família e Engenheira, assim como eu, foi a responsável por aquela sinistra obra. Todo dia a vejo, acho que ela está morando aqui em casa, junto com a Enfermeira. Todas as noites, quando não tem festa, as vejo bebericando, rindo e se divertindo, enquanto me mandam beijinhos e tchauzinhos de forma sedutora. Enchem seus copos com bebida e ficam mostrando pra mim, dançam lascivamente e se tocam de forma sexual, muitas vezes derramam garrafas e mais garrafas de uísque na pia do bar, ou em seus corpos seminus, bem diante dos meus olhos atormentados e pedintes. A crueldade desta enfermeira parece ser infinita, e presumo que meu sofrimento também será.
J. A. COSTA, 26/11/2012, às 13h e 25min.