O Vestido Vermelho

Marcelo estava doente tinha um tempo. No começo parecia uma gripe comum, mas quando percebeu, estava sem forças para sair da cama. A febre altíssima combinada com dores no peito fez com que se levantasse a suspeita de uma pneumonia. Estava sozinho em casa e não queria falar com ninguém, pois além de doente, andava chateado e abatido.

Porém, sofrendo com a tosse matinal em frente ao espelho do banheiro enquanto escovava os dentes, notou que não poderia mais manter-se naquele estado por conta própria. Um pouco zonzo, foi até a sala de casa e passou a mão no telefone. Ligou para a irmã e pediu ajuda.

Ficou duas semanas internado. A irmã ia todos os dias à tarde levar qualquer guloseima preparada pela mãe, e ficava lá batendo papo com o doente até que este adormecesse. O que ele não sabia, é que numa destas idas de Lúcia ao hospital, ela tinha sido abordada por Camila:

- Lúcia, preciso saber do seu irmão! – disse de repente, segurando a menina pelo braço enquanto ela passava distraída.

- Ei, me solta, me solta... – respondeu irritada.

Ajeitava a manga da blusa enquanto encarava a ex-cunhada, mantendo a feição totalmente transtornada desde que fora interrompida enquanto caminhava.

- Desculpa, Lúcia... – e Camila, ao tirar os óculos escuros, denunciou a si própria com os olhos vermelhos. Era evidente sua preocupação e queria entrar de qualquer jeito no hospital para ver Marcelo.

- Não vai subir coisa nenhuma! Acho que o Marcelo morre se te vir lá em cima, tá maluca? – e saiu andando a passos largos, chacoalhando a cabeça numa surpresa intensa pelo despautério daquele pedido.

No quarto, não sabia disfarçar seu nervosismo. Não via Camila há quase dois meses e pensava que jamais voltaria ver. Lúcia cortava uma torta de maçã e pela terceira vez deixou cair a faca. Marcelo a examinava em silêncio desde a hora que ela tinha entrado. Quando finalmente colocou o pedaço do doce num guardanapo e o ofereceu, ele perguntou simples e direto:

- Teve notícias da Camila?

A menina deixou os ombros caírem e suspirou com desgosto. Esforço inútil esconder qualquer fato referente àquela mulher do irmão:

- Ela estava lá embaixo agorinha mesmo querendo subir. Achei um absurdo!

- Fica tranquila... já avisei a recepção de que ela é proibida aqui. Ontem à noite ela tentou subir também. Eu devo ter atirado pedra na cruz mesmo...

A casa fechada há mais de quinze dias trazia um cheiro de mofo misturado com lixo de cozinha no ar. Encontrou a sala com a mesa de centro fora do lugar, latas de cerveja espalhadas pelos móveis e, para sua tristeza, uma vasilha com um pedaço de pizza já esverdeada pelo tempo. Aquilo tudo revirava o estômago.

Ia andando devagar pela própria residência como se estivesse desbravando um lugar perdido na mata e que a qualquer momento seria atacado por um bicho mutante. Cada passada era uma surpresa desagradável. O banheiro estava inacreditável de tão sujo.

- Ah, acho que eu queria ter continuado no hospital... – afirmou ele com um suspiro de resignação.

O quarto parecia ser o lugar mais limpo da casa, mas ainda assim, ele deu uma batidinha com a mão na ponta da cama antes de se sentar, pra levantar a poeira. Esticou os braços e abriu a janela para que toda aquela luz do sol devastador do meio-dia entrasse no ambiente. Sapatos abandonados ao lado das meias lhe davam desgosto.

E mesmo recém-chegado do hospital, vestiu uma roupa velha e decidiu que iria limpar aquela bagunça. Era questão de honra e de sobrevivência. Depois de ficar bastante tempo perdido em meio aos produtos de limpeza, foi até o telefone com o plano de perguntar à sua mãe qual a melhor maneira de se desentupir uma pia e limpar o chão do banheiro, e descobriu que existiam mensagens na secretária eletrônica. Depois de três mensagens silenciosas, ouviu:

“Marcelo, me disseram que você está internado. Estou muito preocupada... ligo na casa da sua mãe, mas é impossível que me deem alguma notícia sua...”

“Marcelo... preciso tanto falar com você! Quando sair do hospital vou até a nossa casa e você vai me ouvir, sei que vai... acredite em mim, sou vítima disso tudo o que fizeram com a gente!... te amo.”

“Eu vou saber quando estiver em casa. Por favor, me atenda...”

De repente o nó na garganta parecia se tornar uma armadilha envolvendo todo o corpo. Estava parado olhando para o telefone, como se dele fosse sair Camila a qualquer momento. Era de uma petulância sem tamanho, tinha certeza. A esta altura já nem se preocupava mais com questões idiotas a respeito de saciar o ego ferido, mas sim com a falta de respeito latente que aquilo significava para ele.

Que atrevimento depois de toda putaria explícita que ela o tinha exposto deixar mensagens em tom choroso dizendo que o amava. Marcelo jogou longe a vassoura que estava segurando, que caiu depois de bater com força na estante. Os enfeites dançaram com o impacto e um carrinho saiu andando pela prateleira. Em seguida, um porta-retratos despencou das alturas e estilhaçou no chão.

E em menos de quinze minutos voltou a se lembrar do que o fizera viver naquele muquifo por meses. Não tinha forças para mais nada quando se deparava reflexivo a respeito de sua vida. Quando voltou do hospital, era como se tivesse passado um tempo no SPA e acreditava-se revigorado, mas o fato é que estava esquecido dos problemas do lar. Estar ali era alimentar-se da sordidez do amor.

Aquela bagunça toda era a denúncia de um abandono escandaloso e da sua incapacidade de cuidar de si mesmo. Matutando sobre aquilo, a mágoa encolhida no coração foi se soltando e se abrindo no peito com tamanha rapidez que ele não soube suportar. Caiu sentado na poltrona e chorou com aquela força nos gemidos típica dos homens que guardam cada lágrima da vida para um momento oportuno.

Talvez até os vizinhos o ouvissem, mas não importava. Aquela chateação toda tinha que sair uma hora ou outra. Cada vez mais se refestelava na poltrona aos prantos. E quando o choro ia cessando, ia se encolhendo todo como se estivesse preso num útero para homens grandes e sem socorro.

Já era noite e ele se mantinha imóvel na penumbra. Sem fome, sem frio, sem vontade de nada. Ouviu um grito no portão e reconheceu a voz da irmã. Remexeu-se devagar e sentiu todos os ossos estalarem pela má posição. Foi com a cara amassada e o cabelo erguido de um lado só abrir o portão. Lúcia não escondeu a careta:

- Minha nossa, o que aconteceu com você? Está pior do que lá no hospital... – e depois de colocar o primeiro pé dentro da casa – Santo Deus, Marcelo! Alguém morreu aqui?

Ele se comportava como se tivesse perdido a língua, pois não tinha a mínima vontade de falar. Ora, sua situação era óbvia, não adiantava Lúcia fazer duzentas perguntas que ele jamais responderia. Ao longo do tempo em que ela ia falando e andando pelos cômodos, ia pegando os objetos do chão e amontoando num canto. Recolheu os cacos de vidro do porta-retratos, mas deixou evidente que a foto do antigo casal estava intacta.

Ficou espantada com a quantidade de latinhas de cerveja e prognosticava o risco que o irmão corria se virasse alcoólatra por causa da ex-mulher. Pegou a vassoura caída no chão e começou a varrer, mas sempre dizendo que aquilo tudo era uma vergonha, um desamor com a vida e uma tremenda falta de consideração.

Ainda calado, mas de saco cheio da ladainha dos politicamente corretos que aparentam nunca se abater com nada na vida, ele se levantou e foi se trancar no quarto. Deixou o corpo cair na cama e, de bruços, ficou meditando sobre aquela força doída que trabalhava sobre ele. Um chifre pesa muito, mas uma infinidade deles parecia ser impossível de se aguentar viver sabendo da existência.

Entrava num processo de sonolência, mas ainda assim sentiu uma presença dentro do quarto. Não sabia quanto tempo tinha passado desde que estava ali jogado. Abriu os olhos devagar e ficou olhando para a parede à sua frente. Tinha uma sombra ali. Apoiado nos cotovelos, foi se erguendo. Virou-se de repente e quase morreu de susto quando contemplou Camila parada feito uma estátua do outro lado da cama.

- Vai embora, vai embora agora! Como você entrou aqui? – disse colérico, ajeitando-se na cama com tamanha pressa que parecia mais abobado do que irritado.

- Por favor, Marcelo, fica calmo... eu só quero conversar.

- NÃO! Não, sua vadia! – e ficou em pé, indo para cima dela com a decisão de enforcá-la caso ela o desobedecesse.

Ela permaneceu onde estava e, ali, seus únicos movimentos eram as lágrimas rolando quase que sem intervalos, molhando todo o rosto, chegando a escorrer pelo pescoço.

Ele estava descontrolado e a apertou pelos ombros, mas seu acesso de fúria foi combatido por uma tosse alta e aguda que o fez se torcer todo, fazendo a garganta arranhar de tão ardida que foi a saída de ar. Ela ficou assistindo à crise. Viu que ele sentou na beirada da cama, com uma mão no peito e outra na boca. Os olhos já estavam marejados e o rosto vermelho de tanto que tossia. Parecia que iria explodir.

Aquilo tudo era culpa dela.

Estavam em Campos do Jordão quando Marcelo recebeu a ligação de alguém que ele e ela até hoje ignoravam o nome. Neste telefonema dissecaram todas as andanças dos últimos tempos da pobre coitada da mulher e entregaram nome e sobrenome do amante que ela tinha.

Difícil era entender, mesmo por que aos berros, no meio da briga de cachorros que tiveram na varanda do chalé, ela dizia que o amava. E cada vez com mais convicção. A cada “eu te amo”, Marcelo sentia ímpetos de acertá-la com uma cadeira bem no meio da cara. Era o cúmulo da falsidade jurar apoiada nos joelhos aquele amor eterno enquanto um telefonema denunciava um caso amoroso tão intenso dos últimos seis meses. Estava cego e nem sabia se aquilo era verdade.

“Então é isso, sua vaca ordinária?”. Estas foram as primeiras palavras quando ela chegou das compras. Uma das mãos vacilou e deixou cair três sacolas que trupicaram pelos degraus da porta do chalé. Ele estava de regata branca, no meio daquela ventania de garoa gélida cortante. Peito estufado e alto como se fosse um galo pronto para briga. Cruzou os braços movido pela indignação e procurava manter o ar irônico para causar maior impacto nas reações dela.

Percebendo as sacolas rolarem, ela desceu alguns degraus para tentar resgatá-las, numa confusão mental sobre o que estava acontecendo ali, mas ele se precipitou e desceu partindo para cima dela, agarrando-a pelos cabelos da nuca, trazendo-a quase ancorada para cima.

Ela quase lhe fincava as unhas na pele tentando se esquivar daquele golpe repentino. Fez tanta força que conseguiu empurrá-lo. Ela tinha os olhos tomados pelo choro e os lábios trêmulos quando ele voltou a falar:

- Você nem responde, não é? Já sabe do que eu tô falando, né não? – começou ele de novo, alisando o braço com as marcas das unhas dela.

- Como você quer que eu fale alguma coisa, olha o seu estado! Como é que se conversa desse jeito?

Ela tentou passar por ele na escada, mas foi impedida:

- Você não quer me falar do Arnaldo Bonassi? Hein? – e finalizou a pergunta gritando quase colado no rosto dela - NÃO QUER?

O bafo quente do nervosismo foi inalado por Camila. Terminou engolindo seco aquela sensação da vergonha generalizada. Já estava aos prantos quando, no lugar de qualquer explicação, pedia perdão e jurava que o amava.

Abraçava-o naquele suor frio, ofegante e tomada pela própria devassidão.

Humilhar-se é o ato natural dos fracos. Ela foi escorregando num abraço alucinado pelo corpo duro e incrédulo do outro, até imobilizar-se de joelhos, enlaçada ao quadril de Marcelo. E dali ela não viu, pois mantinha a cabeça baixa, quase por metê-la entre os próprios ombros, tamanha era sua vergonha, mas ele segurava as lágrimas de maneira tão firme que seu queixo chegava a deformar-se com a força que fazia para ocultar sua miséria.

Não aguentando mais o espetáculo grosseiro daquele sofrimento vexado, ele se desfez do abraço dela e abaixou o corpo, posicionando-se de frente a Camila:

- Escuta aqui... eu vou embora dessa merda. Tô te largando aqui com essa coisarada toda aí que você merece. Quero mais é que você vá pro meio do inferno e desapareça da minha vida. – depois de respirar fundo, continuou– Você é baixa, nojenta... dá vergonha pensar que te levei pra dentro da minha casa... Pega todo esse dinheiro que você andou ganhando e vê se mete pra dentro, até sair pela boca.

Resumindo os fatos, Camila dormia com o chefe da agência de teatro que sempre sonhou em participar. Era a moça do rosto bonitinho que sonhava com fama repentina. Uma coitada de uma ingênua. Muito andavam admirados de sua façanha de ter estado em papel principal em peça de alto escalão com elenco estelar. Quanto talento tinha aquela mulher, que força de vontade e presença de espírito! ...Balela! Seu talento morava no meio das pernas e no fundo de sua garganta.

O telefonema ditava detalhes das atrocidades de camarim. Fizeram vídeos que Marcelo negou assistir. Porém, depois de duas semanas já separados, recebeu por e-mail mais de vinte fotos repugnantes da esposa nas piores posições e em ação numa total depravação jamais vista. Seus olhos queimaram em vista a cada aberração asquerosa advinda daquela tela.

Além do sofrimento escancarado da traição, afinal, quem era a pessoa por trás da denúncia tão bem arquitetada? Quem era o dono daqueles detalhes sórdidos que lhe esfregavam na cara? Era difícil voltar à vida normal examinando rosto por rosto de “quem parecia ser o delator”.

Quantas vezes ela tentou voltar para a casa? Era impossível saber, pois ele mesmo já não sabia quantas vezes já tinha a ameaçado naquele portão. Jurava que iria matá-la todas as vezes que ela surgia. Não se deixava abater, por mais que seu coração se desfizesse por inteiro com a lamentação de arrependimento dela.

- Eu fiz, eu fiz mesmo! – disse numa das vezes – Mas eu fui obrigada... – parecia afogar consigo mesma nas lágrimas, na secreção nasal, na baba e na vermelhidão de seu engasgo seguido de soluços agonizantes – Marcelo, tenta me ouvir, eu imploro... eu fui vítima disso tudo, eu fui! Eu te amo!

Sempre que ela o tocava, ele sentia os pelos arrepiarem-se, e reagia como se lhe tacassem algum tipo de sujeira no corpo. E foi nessa vida odiosa de brigas espetaculosas no portão de casa que ele foi se jogando na própria desgraça de homem traído e envergonhado. Punha-se na janela do quarto, sempre bêbado, em posição como se fosse começar a cantar um fado. Quando se punha para dormir, era por que seu corpo era projetado como um míssil na superfície da terra.

Vivia mal e solitário sem a sua Camila do sorriso perfeito, cabelo dourado, pele clara, lisa e macia como a de uma menina. A Camila dos vestidos longos de cores suaves e os pezinhos branquinhos delicados, calcanhar tatuado com “Alma minha gentil que te partiste...”. E ao se lembrar dos detalhes, automaticamente terminou de parafrasear “... tão cedo desta vida descontente e viva eu cá na terra sempre triste”.

A Camila era aquela que conheceu na porta de um cinema no centro da cidade de São Paulo. Ele, por que perdeu a sessão, e ela, por que cansou de esperar pelo amigo que ela queria que fosse um namorado. O céu foi ficando escuro, corriam os dois protegidos por blusas de lã na cabeça até um ponto de ônibus, tão desprevenidos que estavam. “Será que eu posso pedir seu telefone?” e, a partir daí, viveram a típica história de amor promovida pela vida sem mazelas nem estranhezas fatídicas.

Até aquele dia. Aquele dia em que ele saiu com o peito desprotegido no meio da geada com temperatura abaixo de zero. Não sabia se adoecia por causa daquele frio que aspirava, ou se era por causa da crosta gélida que envolvia seu gosto pela vida. Seu amor por Camila.

E naquele quarto, a sinfonia daquela tosse e a constatação do leve esgotamento do corpo de Marcelo amordaçavam o espírito dela. Sentada ao lado dele na cama, tentou tocá-lo no joelho, mas retrocedeu com medo. Quase sem voz, ele perguntou:

- Até quando isso vai continuar, Camila?

- Não estou mais na agência, Marcelo. Desisti disso tudo!

- Camila... não me interessa o que vai ser da sua vida daqui pra frente. Acredite quando eu falo que, pra mim, você está bem morta e enterrada.

- Eu fui vítima disso, meu Deus, acredita em mim!

- Claro que foi vítima... estava até levando chicotada, as mãos estavam algemadinhas... Apanhando de quantos? Hum... talvez eu tenha visto uns três caras numa das fotos te metendo a vara. Acho que você foi vítima mesmo duma tremenda putaria, isso sim.

Ele ficou de pé e foi caminhando com a mão no peito. Aquilo estava doendo emocional e fisicamente. Ao abrir a porta, encontrou a irmã em estado alerta. Foi objetivo em dizer que iria sair, e que na volta não queria encontrar nenhuma das duas em casa.

Enquanto ele caminhava sem rumo certo, Lúcia tentava com certa educação convencer Camila a sair de lá. Naquele momento ela provava do gosto da insanidade de maneira mais rude. Dias e dias controlada por remédios de tarja preta, com sono superficial acompanhados de espasmos violentos, uma tortura emocional que lhe sugava o sangue. Vivia pálida do susto da perda e do arrependimento latente.

- Eu estou arrependida, Lúcia, acredita em mim, por favor... – e chorava como uma mãe que enterrava um filho – Eles abusaram de mim e fizeram isso pra me destruir...

De repente, ela se colocou de maneira tão firme que seus olhos estavam reluzindo o brilho da loucura. Arregalados como se fossem pular da face. Implorava pelo perdão da cunhada. Lúcia passou da coragem para a covardia ao perceber aquela demência apertando-lhe o braço como se fosse arrancá-lo.

Pediu diversas vezes para que a deixasse em paz e fosse logo embora. Camila não ouvia. Quando conseguiu se desvencilhar, saiu para a rua com a intenção de buscar o irmão onde quer que fosse, pois sabia que a doente da ex-mulher não iria desistir. Enquanto pensava em qual direção iria seguir, parada na calçada em frente ao portão, ouviu um estrondo dentro da casa. Talvez tivesse virado a mesa da cozinha, derrubado a estante da sala, jogado a geladeira no chão...

Por isso, Lúcia correu e também não soube bem para onde iria, mas era como se estivesse salvando sua vida de uma bomba atômica.

Depois de conseguir encontrar o irmão sentado num ponto de ônibus três quadras para baixo do quarteirão, descreveu com detalhes o aspecto de loucura de Camila. Nada impressionava o racional, mas tudo fazia seu emocional se comprimir como uma estrela que se despede da vida. Foi convencido a passar a noite na casa de sua mãe, pois voltava a tossir e seria fatal tomar um sereno recém-saído do hospital.

Lá, convenceu as pessoas de que não queria pergunta alguma a respeito da estadia enlouquecida da Camila-detruidora-de-lares em sua casa. A mãe jurou que não falaria do assunto, mas que era fato a necessidade de chamarem a polícia para tirar a desmiolada de lá. “Deve estar quebrando a casa toda, tem cabimento?”

Era impossível dormir naquela noite. O calendário de frente para ele, deitado no sofá, denunciava o dia 20 de outubro. O sol foi forte naquele dia e a casa tinha aquele abafar das noites quentes. Suando, tentava descansar, mas o corpo ia colando no couro do assento. E nestes instantes de silêncio, lembrou-se de um aniversário de namoro comemorado no Hotel Unique, de frente ao Ibirapuera.

Tanto mistério ela fez, tudo para fazer surpresa num deslumbrante vestido vermelho.

Amaram-se tanto naquele dia como se não houvesse mais dia algum para ficarem juntos. Riram tanto de conversas sem pé nem cabeça como se não existisse conversa séria no mundo. Beijaram-se tanto como se fossem se despedir numa viagem sem volta na plataforma da estação. Beberam tanto como se na manhã seguinte entrassem na quarentena. Olharam-se tanto como se fossem obra de arte desenhada à pena. Sentiram-se dentro de si como se cada um fosse um poema.

Tão logo, sua tosse ressurgiu carregada de catarro emaranhado ao seu sangue puro. Doía demais e vieram lhe acudir. De repente, começou a chorar feito uma criancinha de cinco anos, debatendo-se ao negar a ajuda dos outros.

Mal o primeiro anúncio do novo dia se fez pela janela e, com um pano na boca, ele saiu escondido pela porta da cozinha. Foi apressado para casa. Instantaneamente seu desejo de rever Camila tomou conta da sua condição debilitada. Não sabia por que, mas para aliviar-se daquela angústia, precisava vê-la.

Um caminho atordoado. Cheio de gente pra desviar, e mesmo assim distribuiu ombradas e encontrões diversos. Tropeços em relevos de calçada ou pisadas em buracos inesperados completavam a aflição do percurso.

O portão estava aberto, com a porta escancarada da sala denunciando escuridão. E, realmente, viu que a estante estava no chão, apoiada pela beirada no braço do sofá, ficando inclinada como se fosse arte conceitual abstrata. Seu queixo caiu diante do aniquilamento daquela casa. A pia tinha todas as gavetas abertas com a tralha toda jogada no chão. Pisava em talheres e em potes de plástico. Enroscou o pé num pano de prato e quase caiu.

Preocupado, subiu as escadas com o coração na boca. Gosto amargo se espalhando pelos cinco sentidos. Seu quarto estava vazio. Uma foto do casal em cima do travesseiro. Perfume adocicado. O anel de noivado ao lado de uns penduricalhos no criado-mudo. A roupa que ela vestia caída ao lado da cama. Armário aberto com tudo jogado aos quatro cantos.

Janela aberta e cortina dançando ao vento anunciando morte.

Gritou lá de cima o nome dela com uma dor que perdão algum aliviaria das sombras a sua alma. Só não gritou mais alto por que a tosse ajudava a judiar da dor no peito.

Ela estava tão linda como Ophelia de Millais no jardim, só que vestindo um belo e assombroso vestido vermelho. E talvez aos mais atentos, dava pra ouvi-la pedir perdão por mais uma vez.

L Pimentta
Enviado por L Pimentta em 26/11/2012
Código do texto: T4005569
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