À Sombra do Sinistro
A vida, essa incrível incógnita feita de pequenos momentos que se somam a alcançar o infinito, nos arrebata, por vezes, da mais calma pasmaceira para o centro de sortilégios inacreditáveis.
Eis que, agora desprovido de tudo, inclusive do que sou e do que fui, visto que nem mesmo o passado ouso aludir que me pertence, encontro-me nesse fio da sorte ou do seu avesso, tendo como única inspiração esse vasto abismo à espera de que nele me lance terminando com tudo...
Enquanto lá embaixo, no fundo desse aberto sepulcro, os demônios aguardam minhas carnes para sobre ela se lançarem com voracidade, rememoro, por um rasgo de momento, do tempo em que era um tipo de rei e que tinha tudo.
Vim ao mundo em um berço paupérrimo, sendo meu pai trabalhador de uma ferrovia que cortava a América do Norte de Leste a Oeste. Vivíamos nos mudando, indo de uma cidade a outra, de uma montanha a um vale e da umidade das montanhas descíamos à secura tórrida dos desertos. Era a nossa vida e a ela nos apegamos como o náufrago à bóia.
Crescendo sem raízes, aprendi que o mundo era minha morada e, tendo minha mãe falecido quando ainda era criança, vi-me lançado à companhia dos que me ensinaram o pior da vida. Meu pai viu-se entregue à bebida e eu e meus irmãos nos tornamos estranhos uns aos outros cada qual partindo para o júbilo de suas desventuras.
Atraiu-me, desde cedo, o verde da mesa do carteado e, junto a homens de pouco valor, tornei-me um mestre nas sortes do engano aos outros. Notei a facilidade dos golpes, a ingenuidade dos ébrios, a entrega dos idosos e, evitando a leviandade dos que como eu eram maus, prosperei.
Ganhei muito dinheiro, vestia-me como um pavão e, tomando aulas de fino trato com uma amante francesa, decidido fiquei a angariar a mão de alguma herdeira rica. Passando por falso empresário dos trilhos, um ramo que aprendi a conhecer, fui bem recebido em casa de uma herdeira de largas terras dotadas do petróleo que começava a jorrar e a alimentar os primeiros veículos automotores.
Não foi difícil, tendo minha habilidade nos jogos, e nas trapaças, passar por alguém de posses. Adquiri até umas terras, na mesa de jogo, contendo centenas de cabeças de gado ao preço de uma armação com parceiros do crime. Nossa vítima, um idoso que construíra com esforço aquela sua única célula de progresso, suicidou-se sem ter a coragem de contar à mulher e filhos que tudo perdera para mim.
Quando entrei em seu quarto e vi a mancha de sangue no chão, a pistola pela poça banhada, aproximei-me e, naquele pálido momento, em um reflexo, vi a figura do Sinistro.
A partir daquele dia não tive mais uma noite de paz. A imagem furtiva do mal sempre me surgia de relance, fosse por uma janela, por uma sombra, por um reflexo no fundo da taça de vinho.
Tendo casado com a fina herdeira, não foi difícil subir pelas escadas sociais. Até na política aventurei-me virando congressista, adquirindo o respeito da sociedade, mas nunca me livrei da imagem do Sinistro que, nos sonhos, me aparecia cada vez mais poderosa, com grossos e peludos membros, sob cascos de vigoroso animal com seus chifres retorcidos.
- Serás meu! – Dizia naqueles pesadelos dos quais acordava em profusa sudorese. Minha esposa atribuía-a ao ¨stress¨, mas eu sabia do que se tratava.
Então, chegou um dia em que me arrependi e, querendo refazer passos que não podia, procurei os herdeiros do homem que lançara em ruína. Sendo seus filhos, muito mais dignos que eu, trabalhavam com afinco sustentando de modo honrando suas paupérrimas famílias. A pretexto de saudar uma dívida antiga, passei-lhes o título de uma terra distante, mas promissora.
Tendo minha consciência aliviada, percebi que minha nova energia enfurecera o meu senhor. De modo inexplicável, todos os meus negócios começaram a ruir, uma onda de quebradeira mundial, nos idos de 1929, lançou-me à baila do fracasso. Tendo alavancado ganhos no mercado de capitais, vi-me, do dia para a noite, na mais absoluta e famigerada miséria.
Não tendo para onde ir, abraçado à minha já não tão jovem esposa, cujo ventre não vingara filhos, enquanto vagávamos famintos pelas ruas, o filho mais velho daquela família cujo pai um dia arruinara, reconheceu-me. Sendo grato por ter-lhes dado aquele quinhão de terras, viu por bem acolher-nos em sua morada.
Triste assim a vida é. Irônica a vida é. Aqueles cuja ruína provocara, mas que resgatei numa crise de consciência, foram os que me estenderam as mãos. No entanto, naquela noite, enquanto dormia sob aquele teto modesto, mas sincero, o Sinistro arrebatou-me e trouxe-me diante daquele abismo para que me lançasse. Abrindo os braços, vi sua figura suspensa no ar esbravejando:
- Tinha esperança em ti, mas te rendeste ao bem. Como poderei vencer tendo fracos como tu? Salta para o inferno. Salta para mim! – Sem ter como resistir àquela ordem, lancei-me ao fim. O vento frio dava a impressão de que a queda duraria para sempre até que, ao esperar o impacto nas rochas, vi que fui acolhido por ternos braços. Era minha mãe embalando-me como se fosse um bebê. Seus lábios vermelhos pronunciaram apenas uma sentença:
- Basta um bem praticado com sinceridade para nos salvar para sempre...