Navalha

Quando aquela figura adentrou na minha sala vestida daquele jeito, tive de conter, a muito custo, uma gargalhada. O parvo estava vestido com uma capa, um sobretudo de cor creme, com a gola levantada para cima. Além dessa longa casaca, ele ostentava um cachecol de cor marrom enrolado no pescoço, um par de óculos escuros que escondiam seus olhos e em sua cabeça, repousava, com certo charme, um chapéu panamá branco. Quase não o reconheci, na verdade não o reconheci de imediato, somente quando ele retirou os óculos, o cachecol e o chapéu, soube quem ele era. Não estivéssemos no nordeste do Brasil ele estaria adequadamente vestido, até mesmo elegante. Não fosse ele quem era, acharia que estavam querendo pregar uma peça em mim. No entanto, sabendo quem era ele, não me admirei com aquele tipo de atitude, já que ele era um completo imbecil. E depois do que aconteceu neste último ano, parece que o infeliz se perdeu de vez. Já passava das nove da noite quando ele chegou, não tinha mais ninguém na empresa, e eu tinha marcado com ele às duas da tarde. Já tinha me esquecido completamente do idiota, até ele aparecer fantasiado de cidadão londrino em minha frente.

- Plínio, eu marquei com você às duas horas da tarde, já são quase dez da noite porra! Tá de sacanagem comigo é? E por que tá vestido assim? Enlouqueceu? Perguntei seriamente.

- Não queria que me vissem entrando aqui. Por isso esperei que todos saíssem. E para dificultar ainda mais me vesti desta forma. Ele respondeu de cabeça baixa, olhando para o chão.

- E qual seria o problema de alguém ver você entrando aqui? Você era meu funcionário há pouco tempo. Não vejo problema nisso. Falei mostrando um sorriso sarcástico.

- Seria muito humilhante. Ele respondeu olhando friamente nos meus olhos e continuou falando baixando os olhos: - Eu não queria servir de chacota para os outros funcionários.

O oligofrênico tinha toda razão. As pessoas não o poupariam de uma zombaria baixa e cruel. O mundo é cruel. Eu sou cruel. Plínio foi meu funcionário aqui na empresa durante cinco anos. Para ser honesto, esse nerd débil mental, era meu melhor funcionário. O mais competente Analista de Sistemas que já conheci. Contudo, sua primorosa inteligência parecia só servir para a informática, para números, algoritmos e coisas afins, para qualquer outra finalidade ele era a inaptidão em carne e osso. Também era socialmente lamentável. Estava sempre pelos cantos, deslocado e de cabeça baixa, quando conversava gaguejava e tinha um péssimo gosto para roupas. Ele se vestia terrivelmente mal, talvez, por isso, ele aparecer vestido de Sherlock Holmes pós-moderno não tenha me impressionado tanto. No começo do ano passado ele veio até a minha sala pedir um emprego para sua namorada que tinha acabado de se formar. Lembro que me espantei em saber que ele tinha uma namorada. Não dei muita bola, fiz pouco caso, e acabei me esquecendo do assunto. Num certo dia, na comemoração de aniversário de um filho de outro funcionário aqui da empresa, eu conheci Lenora, a namorada de Plínio. Nunca imaginei que um merda desses tivesse competência pra arrumar uma mulher daquelas. Lenora era um monumento. Uma morena linda de corpo perfeito e depois que a contratei, - sim, eu a contratei, e num piscar de olhos, sem precisar de recomendações -, ela também se mostrou tão inteligente e competente quanto Plínio. Então aconteceu o inevitável. Em um ano ela era minha nova analista de sistemas e também minha mulher, enquanto o panaca do Plínio se tornava desempregado, sem mulher e sendo chamado de corno pelos corredores do prédio. Triste fim. Realmente o mundo é cruel, competitivo e não tem lugar para otários como ele. Lenora descobriu isso rapidamente. Mesmo ele sendo um néscio, um homem traído e humilhado pode ser capaz de tudo, e por isso, desde que ele entrou, eu estou empunhando uma arma embaixo da minha mesa, discretamente, para que ele não perceba, mas, caso ele ameace algum movimento estranho, eu cravo ele de balas. Pedi que ele tirasse aquela capa e colocasse no sofá ao lado da cadeira que ele estava sentado. Ele tirou. Então eu vi que ele não trazia nada que pudesse me oferecer perigo e relaxei. Cuidadosamente guardei a arma na gaveta e falei.

- Sei, sei. Então você se vestiu assim para que não lhe reconhecessem, ainda está envergonhado, é isso?

- É isso. Ele respondeu.

- Tá certo, eu entendo. Já está empregado?

- Sim, já estou trabalhando. Não foi difícil arrumar emprego. Meu problema não é o trabalho.

_ Sei. E namorada já arrumou? Ele me olhou com raiva e não respondeu. Diante de seu silêncio eu continuei:

- Trouxe o cartão?

- Sim, está aqui comigo.

- Então me passe logo para que eu o inutilize, não quero que você fique por aí usando um cartão de crédito dependente da conta de minha mulher. Isso não pegaria nada bem pra mim. Você já deveria ter devolvido isso há muito tempo, já tem seis meses que eu Lenora estamos juntos.

- Eu nunca mais usei o cartão, e por mim, eu mesmo já teria quebrado, entretanto, você não aceitou, não confiou em mim. Calou-se por um momento, pigarreou e emendou: - Vocês já casaram? Falou isso com a voz embargada, o que me fez sorrir de contentamento.

- Ainda não, embora já a considere minha mulher. Mas vamos deixar de conversinha fiada que quero ir pra casa. Sua mulher, ops, hehehe, quer dizer, minha mulher tá me esperando, e não quero demorar. Anda, passa pra cá o cartão.

Ele colocou a mão no bolso de trás da calça, do lado direito, e retirou o cartão. Ficou brincando com o pedaço retangular de PVC azul entre os dedos enquanto me olhava de forma curiosa. Colocou-o na palma da sua mão direita e esticou pra frente, quando fiz menção de pegar, ele puxou rapidamente e disse:

- Antes tem uma coisa que eu queria que você visse.

- O que é? Perguntei impaciente.

- Olhe aqui. E mostrou o lado mais comprido do cartão, se inclinando para frente, para cima da mesa. Eu também me inclinei para ver melhor e ficamos bem próximos, quase encostando nossas cabeças uma na outra. Nesta hora percebi que ele usava uma fina luva transparente em suas mãos.

- O que é isso? Não estou entendendo?

- Não está vendo que esse lado do cartão está como se estivesse afiado?

- Sim e daí? Qual a importância disso? Foi a última pergunta que fiz na minha curta vida. Num movimento rápido, se aproveitando da nossa proximidade ele passou com rapidez, precisão cirúrgica e força, o lado afiado do cartão no meu pescoço, de um lado e do outro, fazendo dois talhos tão grandes e profundos como se tivesse usado uma navalha, ou mesmo um bisturi, seccionando vários vasos dessa região. O sangue brotou rapidamente. Eu só senti um ardor, e vi o liquido vermelho escorrendo pelo meu pescoço e maculando a brancura da minha mesa. Tentei gritar, mas ele me segurou por trás, tapando minha boca. Eu me debatia, tentando desesperadamente estancar a hemorragia. Depois de alguns poucos minutos de inútil luta, minhas forças se acabaram. Ele percebeu e me soltou. Caí de cara no mármore da minha mesa, em cima de uma grande poça de sangue. Meus olhos ainda abertos puderam ver Plínio se vestir com a capa, colocar os óculos, o cachecol e o chapéu na cabeça. Daquele jeito ele ficava irreconhecível. Ouvi-o abrindo a porta e indo embora. Imaginei aquela figura insólita sendo filmada pelas câmaras de segurança espalhadas pelos corredores da empresa e no outro dia, quando me encontrassem morto, ninguém conseguiria identificar o assassino. Antes de morrer ainda pensei que aquele imbecil não era tão burro assim.

J. A. COSTA, 12/11/2012, às 17h:32min.