Lúcido

Enquanto eu lavava as mãos já enrugadas e descamando devido ao tempo em contato com a água fria, ele entrou. Não bateu na porta, não avisou que eu me havia esquecido de trancá-la novamente, nem se anunciou como costumava fazer. Mas eu sabia que era ele.

Ouvi os móveis sendo revirados com agressividade na sala enquanto olhava para mim mesmo no espelho, aquele arranhão no rosto começava a inflamar.

Ele derrubou a televisão e ela se espatifou na madeira do assoalho. Estava procurando. Droga, ele sabia que existia. Isso podia ser um problema para mim.

Saí do banheiro e fui recebido com um soco forte no rosto. Caí no chão. Ele me pegou pelo cabelo e me puxou para cima outra vez.

“Onde está?”

Não respondi. Olhei-o fundo nos olhos.

“Me diga onde está!”

“Não existe.”

Outro soco. Sangue escorrendo do lábio.

Me deixou cair outra vez e voltou a procurar, agora no quarto. Gavetas, colchão, tapete – tudo revirado.

Ele se movia abruptamente, sabia que se parasse por um só instante começaria a chorar. Tentava esconder isso de mim, mas eu o conhecia.

Levantei-me e fiquei de frente para o crepitar lento da lareira. Ele voltou para a sala, bem nas minhas costas. Tentou procurar outra vez nos mesmos lugares. Desistiu e ficou calado, parado, olhando para a parede mais vazia.

“Por que você fez aquilo, cara?” me perguntou, a voz tentando ser racional.

“Você não entenderia...”

“O caralho que eu não entenderia!” gritou. A chama de um pequeno salto sobre a lenha. A mãe sempre disse para nunca falarmos palavrão. “E você sabe a gravidade do que fez? Me diga, sabe como foi errado?”

Da janela dava para se ver as árvores cobertas pelo escuro da noite. Devia fazer umas quatro horas desde que cheguei da casa dele, e faltavam umas cinco ou seis para que amanhecesse.

“Me desculpe” sibilei, sem fazer questão de que ele me ouvisse, mas acho que ouviu sim.

A chama estava perdendo a batalha contra o frio. Ao lado da lareira restavam apenas seis torinhas de lenha em pirâmide, mas eu não as poria no fogo agora.

“Por favor, só me diga por que...”

“Faz diferença? Ela está morta agora. Mortos não voltam.”

“Você esta louco, cara? Num dia vai lá em casa, conversa conosco, ri, depois sai sem dizer nada; e no outro faz uma coisa doentia dessas! Enlouqueceu de vez?” ele se aproximou da lareira também. Ficamos os dois olhando para o fogo.

Até que essa seria uma boa opção, alegar insanidade me traria um fardo muito menor na condenação judicial. Clinicas psiquiátricas são melhores do que presídios.

“Ela mereceu...”

“Cala a boca! Não ouse falar da minha mulher!”

Me calei. O grito que ele acabara de dar ficou ecoando pelas paredes até que os nervos se acalmassem.

“Se eu tivesse chegado antes, chegado em casa e visto você, eu juro que te mataria. Te mataria sem pensar duas vezes.”

“Isso é uma ameaça?”

“E você a ameaçou? A ameaçou antes de afundar a cabeça dela no álcool? Você olhou nos olhos dela antes de matar a minha esposa?”

“Não. Eu sabia bem a razão de estar lá. Fiz tudo depressa. Poderia te-la afogado em água, mas isso demoraria, eu não queria que você aparecesse.”

Não me virei para ele, continuei olhando para frente, mas sentia os seus olhos sobre mim. Agora ele devia ter certeza de que estou louco.

“Voce será considerado uma ameaça à sociedade. Nunca permitirão que volte as ruas...”

O fogo cada vez menor, mais gelado, como nossos rostos.

“Amanhã será um longo dia, não é, irmao?” perguntei e tentei abrir um meio sorriso, mas meu talento de interpretação não chegava a tanto.

“Onde você escondeu o diário?”

“Já disse: não existe.”

“Cara, eu sei que existe, eu a via escrevendo, sabia em que gaveta ela escondia, mas quando eu cheguei lá hoje... Você sabia que eu veria as marcas de arrombamento. Eu sei que você pegou.”

“Não estou mentindo. Confessei que a matei, não teria porque mentir sobre isso.”

“Tem sim, se houver algo sobre você escrito lá. E se ela já desconfiasse de que você era...”

“Perigoso?” fiz-lhe o favor de completar a frase.

Ele girou os olhos pela casa mais uma vez, à procura de um possível esconderijo que ainda não tenha sido notado.

“Desista de procurar, eu nem sabia que ela escrevia um diário. Acabou.”

“Ainda essa noite eu ligarei para a polícia. Você Vai pagar pelo que fez. Vai pagar por te-la matado.”

“Não me arrependo” me atrevi a comentar, mesmo correndo o risco de levar mais um murro. As mãos dele se fecharam, mas acabou não fazendo nada.

Silencio.

O fogo quase se apagando em meio as cinzas, se eu pusesse mais lenha agora a chama se apagaria com o peso da madeira.

“Eu vou embora, mas só depois de você me dizer a razão”

“Não há razão. Senti vontade e fiz” a frase rasgou a garganta antes de sair, mas eu não podia demonstrar emoção,. Psicopatas não demonstram.

“Eu sei que não é verdade. Sei que mesmo que tenha sido por um motivo incabível, você foi impulsionado por alguma razão... você é assim, cara.”

“Quando cheguei lá, provei da sopa que ela havia lhe feito. Estava horrível. Joguei tudo pela janela.”

Ele sabia que eu estava mentindo, ela fazia uma sopa deliciosa.

Prendi os olhos apenas na chama, se não o fizesse ele perceberia a ruga no alto do meu nariz, prova de que esse não foi o motivo do meu crime, nem insanidade.

“Em casa ligarei para a delegacia, explicarei tudo a eles.”

“Pode deixar, não vou fugir. Estarei aqui quando vierem me buscar.”

Ele bufou. Não devia mais estar com raiva. Só tristeza pela perda da esposa, que confesso: ele amava demais, e pena do meu estado deplorável.

Foi embora, deixando para trás o caos em que transformou a minha casa.

Da janela, o vi entrar no carro. Ficou sentado por algum tempo com a mão no volante. Ali ele deve ter chorado. Depois ligou o motor.

Assim que até a luz dos faróis traseiros sumiu na escuridão, voltei para perto da lareira. Com um tapa sem força, desfiz a pilha de lenha e as madeiras rolaram pela sala, peguei o caderninho que havia escondido ali em baixo e resolvi que seria melhor lê-lo outra vez, nem que fosse apenas para servir de estimulo para que eu seguisse em frente. Fui direto até a última pagina escrita, aquela com a data de ontem, e reli cada linha:

21/12:

“Está na hora. Não aguento mais. Não aguento essa droga de vida. Esse imbecil em cima de mim. Não há dinheiro que valha isso.

Hoje já providenciei a minha alforria. Comprei veneno. Amanhã ponho na sopa. O idiota adora sopa. Quando ele voltar do trabalho eu estarei livre.

Só há mais um problema. Um problemazinho de nada: o irmão dele virá aqui hoje a tarde, para os dois conversarem. Não posso esquecer essa gaveta aberta, se ele ler isso, pode dar tudo errado...

Que é que estou pensando? Nada dará errado. Não pode dar.

Amanhã à noite ele estará morto e eu terei o meu dinheiro. Meu sim. Só eu sei o que passei com esse homem. Eu mereço.

Amanhã, diário, você terá ótimas noticias.”

Pobre do meu irmão, se soubesse de tudo isso se sentiria tão mal. Ele a amava demais.

Arranquei a folha e a joguei no fogo. Depois outra folha. Depois outra. Ele nunca desconfiará de nada. Sua esposa continuará com a reputação imaculada, talvez algum dia até seja beatificada.

Depois que o caderno acabou e as labaredas já aqueciam a casa toda outra vez, voltei a olhar para a escuridão do lado de fora. Amanhã a polícia virá bem cedo, assim que o sol nascer. Se nascer, porque acho que vai estar nublado, não tem estrela no céu.

Até lá, vou tirar um cochilo. Ouvi dizer que os loucos dormem muito mais do que as pessoas sãs.

J Sant Ana
Enviado por J Sant Ana em 05/11/2012
Reeditado em 12/11/2012
Código do texto: T3970352
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