Traquinas
SINCERAMENTE, não sei o que ele estava fazendo naquele sobe e desce. Às vezes me dava um nervosismo incontrolável. Queria descer até a rua e pedir para ir embora, mas uma força estranha me impedia e continuava a olhá-lo, recriminando suas ações. Era um capetinha. Pequeno, de tênis surrado, calção e camiseta regata. Dificilmente olhava para mim. Dava-me a impressão de que ele queria me encarar. Se houvesse um confronto, travaríamos uma briga e tanto.
O seu vai-e-vem me deixava inquieto. Chutava a tampinha de garrafa fazendo com que ela batesse no portão e voltasse para os seus pés. Sem dúvida tenho de admitir que aquilo era uma proeza, jamais conseguira fazê-lo; mas a minha irritação aumentava cada vez mais. Era sem dúvida um convite à luta. Interiormente já estava declarada a nova guerra.
Ia até a esquina e voltava correndo, passando a mão esquerda sobre as plantas. Era para me irritar. Fora eu que plantara as flores, para que quando crescessem pudessem abrigar a parede de tijolos e impedir as pichações. As folhas se contorciam até não poderem mais, mas ele voltava rua abaixo da mesma forma que subira, agora com a mão direita sobre as plantas. Gritar com ele, impossível. Tudo estava amarrado dentro de mim. Era verdadeiramente um traquinas. Quando passava um carro, ficava num pé só, pairando sobre a guia. Olhava-me obliquamente e recomeçava tudo de novo.
Não sei como, achou uma bola velha e murcha entre as plantas. Agora, com certeza chutá-la-ia sobre as plantas, e conseqüentemente sobre mim, tentando me ferir ou, quem sabe, chamando-me para a luta. A força que me impedia era tão grande dentro de meu peito, que cada vez mais estava embevecido pelas traquinagens do menino, e nem sequer conseguia chamar a atenção dele com meus gestos agressivos. Que força era essa, que tinha controle total sobre meus músculos? Por segundos pensava que a força vinha dele. Estava literalmente hipnotizado pelo guri. O seu olhar de reprovação ao meu era assustador.
Subia ele agora arrastando o tênis pelo asfalto até a outra esquina. Que alívio! Foi embora. Eu podia, agora, apreciar a florada do ipê. Triste conclusão. Lá vinha ele com uma armação pelada de uma velha pipa. Tentava colocá-la no ar, porém restava apenas o esqueleto. Parou diante de mim e num convite à briga, quebrou-a atirando ao chão. Fora a gota d’água. Resolvi descer, mas sair do lugar, impossível. Estava preso a uma cela sem grandes e sem paredes. Estava preso em mim mesmo. Era como se um ímã acoplado aos meus pés prendesse-me ao chão e, cada vez que eu tentasse sair, era envolvido pela força oculta, gerada pelo meu inconsciente e retransmitida a todo o meu corpo. Que mistério!
Saiu correndo rua abaixo. Contrariando a minha esperança de que ele fosse embora, eis que surge novamente, dessa vez com um assobio estridente. Parou defronte ao portão da casa em frente e, num assobio sem pausa, tirou de seu aconchego o cão fila. Eram ensurdecedores os dois sons: o latido constante do cão e o seu assobio. Por incrível que pareça, ganhou do animal. Dado por vencido, o cão envergonhado voltou ao seu refúgio. O que aquele menino queria, afinal?
Subira a rua. Parou bem no meio e, num rodopiar, ei-lo em cima de um skate. Fazia várias manobras até o meio da rua a minha frente. Voltava rua acima e novas manobras deixavam no ar. Lá no topo, preparou-se para fazer sua apoteose. Veio a toda velocidade. Defronte ao meu portão, o skate bateu na guia e, num raio de segundos, caiu ao chão. O skate desgovernado foi direto ao tronco do ipê, derramando sobre ele as últimas flores. De olhos arregalados ao céu, ele observava a revoada das abelhas que ora deleitavam-se com o néctar das flores lilases. Com um sorriso maroto levantou-se, chacoalhou as pétalas sobre a camiseta, limpou o calção e voltou rua acima. Raro momento em que eu, interiormente, sorri. Talvez fosse um presságio.
Agora, sem manobras ou piruetas, lá vem ele sobre o skate, passando por mim como se dissesse adeus. Na esquina, um barulho enorme. Rua abaixo apenas o skate ziguezagueando, descia sozinho. Na esquina, um homem inconformado. No chão, um corpo caído de um menino sem nome.
O seu vai-e-vem me deixava inquieto. Chutava a tampinha de garrafa fazendo com que ela batesse no portão e voltasse para os seus pés. Sem dúvida tenho de admitir que aquilo era uma proeza, jamais conseguira fazê-lo; mas a minha irritação aumentava cada vez mais. Era sem dúvida um convite à luta. Interiormente já estava declarada a nova guerra.
Ia até a esquina e voltava correndo, passando a mão esquerda sobre as plantas. Era para me irritar. Fora eu que plantara as flores, para que quando crescessem pudessem abrigar a parede de tijolos e impedir as pichações. As folhas se contorciam até não poderem mais, mas ele voltava rua abaixo da mesma forma que subira, agora com a mão direita sobre as plantas. Gritar com ele, impossível. Tudo estava amarrado dentro de mim. Era verdadeiramente um traquinas. Quando passava um carro, ficava num pé só, pairando sobre a guia. Olhava-me obliquamente e recomeçava tudo de novo.
Não sei como, achou uma bola velha e murcha entre as plantas. Agora, com certeza chutá-la-ia sobre as plantas, e conseqüentemente sobre mim, tentando me ferir ou, quem sabe, chamando-me para a luta. A força que me impedia era tão grande dentro de meu peito, que cada vez mais estava embevecido pelas traquinagens do menino, e nem sequer conseguia chamar a atenção dele com meus gestos agressivos. Que força era essa, que tinha controle total sobre meus músculos? Por segundos pensava que a força vinha dele. Estava literalmente hipnotizado pelo guri. O seu olhar de reprovação ao meu era assustador.
Subia ele agora arrastando o tênis pelo asfalto até a outra esquina. Que alívio! Foi embora. Eu podia, agora, apreciar a florada do ipê. Triste conclusão. Lá vinha ele com uma armação pelada de uma velha pipa. Tentava colocá-la no ar, porém restava apenas o esqueleto. Parou diante de mim e num convite à briga, quebrou-a atirando ao chão. Fora a gota d’água. Resolvi descer, mas sair do lugar, impossível. Estava preso a uma cela sem grandes e sem paredes. Estava preso em mim mesmo. Era como se um ímã acoplado aos meus pés prendesse-me ao chão e, cada vez que eu tentasse sair, era envolvido pela força oculta, gerada pelo meu inconsciente e retransmitida a todo o meu corpo. Que mistério!
Saiu correndo rua abaixo. Contrariando a minha esperança de que ele fosse embora, eis que surge novamente, dessa vez com um assobio estridente. Parou defronte ao portão da casa em frente e, num assobio sem pausa, tirou de seu aconchego o cão fila. Eram ensurdecedores os dois sons: o latido constante do cão e o seu assobio. Por incrível que pareça, ganhou do animal. Dado por vencido, o cão envergonhado voltou ao seu refúgio. O que aquele menino queria, afinal?
Subira a rua. Parou bem no meio e, num rodopiar, ei-lo em cima de um skate. Fazia várias manobras até o meio da rua a minha frente. Voltava rua acima e novas manobras deixavam no ar. Lá no topo, preparou-se para fazer sua apoteose. Veio a toda velocidade. Defronte ao meu portão, o skate bateu na guia e, num raio de segundos, caiu ao chão. O skate desgovernado foi direto ao tronco do ipê, derramando sobre ele as últimas flores. De olhos arregalados ao céu, ele observava a revoada das abelhas que ora deleitavam-se com o néctar das flores lilases. Com um sorriso maroto levantou-se, chacoalhou as pétalas sobre a camiseta, limpou o calção e voltou rua acima. Raro momento em que eu, interiormente, sorri. Talvez fosse um presságio.
Agora, sem manobras ou piruetas, lá vem ele sobre o skate, passando por mim como se dissesse adeus. Na esquina, um barulho enorme. Rua abaixo apenas o skate ziguezagueando, descia sozinho. Na esquina, um homem inconformado. No chão, um corpo caído de um menino sem nome.
São Paulo, 2001.